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O paralelismo para os lisboetas é simples: o bairro Vale do Forno, em Odivelas, faz lembrar o Martim Moniz. Porta sim, porta sim, o caril e o ramen lutam pela supremacia dos nossos olfatos. Os letreiros de cabeleireiros são como as caixas de correio: ambos têm assinatura indiana. Nas lojas, jazem indicações para marcação de atendimento no SEF ao lado de cartazes onde se promovem cartões de telemóvel descartáveis “com 1000 minutos para o estrangeiro”.
Há muito que esta terra é também de quem não nasceu cá, mas há tantos nacionais quantos estrangeiros. Ou não haveria também o cheiro a frango de churrasco no ar, um largo com cartas em cima dos bancos e cervejas nas mesas.




Até há quatro anos, o mundo existia em pontas soltas neste bairro. Foi assim até ao dia em que Ana Sofia e Natália Miron, brasileira e moldava, se tornaram as mães do Vale do Forno.
A partir deste sítio, criaram o projeto Transformar, que aproximou 11 nacionalidades e línguas, antes tão distantes entre si, e prometeram salvar uma morada que todos preferem negar no currículo. Reduziram o insucesso escolar visto como inevitável para os jovens da zona, salvaram alguns da fome, outros da violência doméstica e acolheram até crianças vítimas de tráfico sexual.
O bairro onde nasce a esperança
Ficará sempre conhecido como o ano em que Portugal recebeu um europeu de futebol e os anfitriões choraram a final, mas 2004 é para Ana Sofia e Natália também a maior viragem de página nas suas vidas.
Ambas marcaram encontro com Portugal já adultas. O bairro foi um acaso. Sofia ficou com o apartamento de um tio que estava prestes a partir, Natália seguiu o rasto de uns amigos até aqui.
Ana Sofia tinha 30 anos e sotaque do nordeste brasileiro, quando aterrou em Lisboa. Nasceu em Angola, de onde saiu brevemente para Portugal como retornada, “demasiado criança” para se lembrar deste país. Não tardou até atravessar o oceano rumo ao Brasil, com a avó. “Por isso é que o sotaque é um bocadinho esquisito”, apressa-se a justificar.
Na infância, viveu em Minas Gerais, em adulta, no Recife, onde teve morada num bairro social. “O bichinho disto tudo já vinha daí”, diz Ana Sofia, que “achava fantásticos os projetos sociais que se faziam nas favelas”. O pai ficou sempre por Portugal, a mãe foi para a Suíça, em sentido inverso ao da filha.
A situação financeira, a crescente violência no Brasil e o afastamento do resto da família (quando Sofia já tinha um filho nos braços) determinaram, já aos 30 anos, a sua vinda para Portugal. É capaz de se ter cruzado todos os dias com Natália, mas nem por isso adiantaram a amizade, que só chegou há quatro anos, aquando do arranque do projeto Transformar.

A vida de Natália também desaguou neste bairro em 2004. Nasceu na Moldávia, de mãe russa e pai ucraniano. Portugal foi um desafio do marido, que veio a abrir caminho com o irmão de Natália, para trabalharem na construção civil, dois anos antes de ela se juntar a eles, com o filho, “à procura de um futuro melhor para a família”.
No casal, são ambos licenciados – ela como professora do Ensino Básico, o marido como assistente social e psicólogo -, “mas lá aquele ordenado não dava para nada”. Portugal era a esperança.
O primeiro destino foi uma pequena casa junto à Praia das Maçãs, em Sintra, onde ainda vive o irmão. Foi pelo mar da Praia das Maçãs que começou a apaixonar-se por Portugal, confessa. Depois, Pontinha e, a seguir, este bairro, em Odivelas, do qual não sabia mais do que: “ali moram os meus amigos”.
Arranjar emprego em Sintra estava complicado, por isso, a vinda foi meramente estratégica: mais perto de Lisboa, o casal poderia aceitar mais trabalhos. Aqui, começaram por viver num quarto, até alugarem uma casa para a família.

Em 2004, o largo onde nos sentamos para conversar era um pedaço de terra e as ruas estavam por asfaltar. Na altura, um sentimento: “medo”, diz Ana Sofia sobre a primeira impressão do bairro onde a pobreza vivia à janela e a droga era inquilina. “Não vou mentir. Na altura, tinha uma fama horrível, havia muitas pessoas ilegais no bairro, casas com dez ou 15 pessoas a viver.” Depressa, se tornou aquilo que se designa uma AUGI – Área Urbana de Génese Ilegal.
“Depois, isso foi mudando. A situação do Brasil melhorou e muitos regressaram para lá. Outros voltaram para o Leste da Europa. Mais tarde, começaram a vir mais famílias, africanas sobretudo, e, nos últimos quatro anos, indianos e paquistaneses”, diz Ana Sofia, apontando para o comércio em redor.





“Aqui, aluga-se ao colchão. Não é à cama, é ao colchão”
Vale do Forno é sobretudo um bairro onde todos passam e poucos vão ficando. “Temos muita gente a entrar que vem por dias. Vêm diretamente do aeroporto, têm conhecidos aqui. Estamos sempre a vê-los a chegar lá do metro. Passados uns dias, vão para o destino que querem, onde têm trabalho.”
As rendas são “mais em conta” e a localização a poucos minutos de Lisboa, de autocarros ou metro, torna-se privilegiada. Mas nem sempre chegam para viver nas melhores condições. Natália acrescenta: “Aqui, aluga-se ao colchão. Não é à cama, é ao colchão”.
A pobreza mostra-se em cada canto. Apesar do asfalto na estrada e de haver hoje vizinhos de rosto familiar, o bairro, que se cruza com outros dois como se fossem um – o Encosta da Luz e o Serra da Luz -, é um antro de prédios com restos de antigamente.
As crianças brincam no meio da rua, junto a carros de sucata ou com as ovelhas que ali habitam. Correm o viaduto de betão de uma ponta à outra, em direção a um descampado, com uma garrafa que será bola de futebol ou os utensílios necessários para uma boa partida de críquete. “Lá vão os indianos”, anuncia Ana Sofia, ao ver a bola e o taco.

O nascimento das mães do Vale do Forno
Esta sempre foi uma comunidade gerida pela diferença, a cultural e a linguística, como uma manta de retalhos. Mas as feridas desta diferença são ainda mais nítidas dentro das próprias estruturas familiares. A pobreza ou a dificuldade no domínio da língua portuguesa por parte dos pais perpetuam o insucesso escolar das gerações mais novas do bairro.
“Nós sabíamos disto tudo, mas encolhíamos os ombros e andávamos”, confessa Ana Sofia, que sentiu que tinha algo a fazer quando passou a integrar a Associação de Pais da escola primária onde os seus filhos e grande parte das crianças destes três bairros estavam. Isso seria o embrião do projeto Transformar.
Foi aqui que se deparou com os cenários de risco que muitas famílias viviam dentro das suas casas. Primeiro, a fome. Leva a mão ao peito por segundos, como quem cala a dor do que tem para contar: “Comecei a perceber as dificuldades alimentares. Uma funcionária da cozinha [escolar] dizia que tinha de acrescentar mais comida à sexta-feira e à segunda, porque os miúdos ficavam sem comer.”
Além da fome, descobriu a indiferença ou dificuldade perante a educação. No final de contas, “eram sempre os miúdos do bairro que reprovavam”. “E, depois, pensei: ‘Claro. Se uma mãe não sabe português, como é que há de ajudar os filhos com os trabalhos de casa?’ Já para não falar das questões culturais, porque em algumas culturas o ensino não é prioridade, muito menos a educação de raparigas. O que acontece com muitos é que vão para a primária sem saber falar uma palavra em português.”

“Abanámos um bocado este bairro”, lembra Natália.
Ambas trabalharam por transformar o Vale do Forno num lugar onde todos passassem finalmente a gostar de morar e não o lugar que todos se esforçam por esconder quando dão a morada. Conta Ana Sofia que o filho redigiu o seu primeiro currículo este ano, quando fez 18 anos, e “disse que não ia meter o código postal”.
“Eu gosto de viver aqui, mas quero que os meus filhos não tenham vergonha de dizer que moram no Vale do Forno. Não queremos que os miúdos sejam os adultos que hoje vemos no largo”, aquele onde se sentam tantos desempregados ou pessoas sem rumo.
Decididas a abraçar esta missão de construir um bairro melhor para os seus e para as gerações futuras, estas duas mulheres começaram por um passeio no parque – literalmente. Era lá, afinal, o ponto de encontro de dezenas de crianças, todos os dias. Chegados da escola ou na falta dela, juntavam-se ali, nem sempre com as melhores motivações.
Infiltraram-se nesta rotina, a pouco e pouco, “subtilmente”. “Começamos a fazer atividades e mais atividades”, como quem propõe um simples e amador jogo de futebol ao final da tarde.
“Um dia, pedimos para eles desenharem o país de onde tinham vindo”, conta Ana Sofia, “e foi aqui que percebemos que tínhamos pelo menos 11 nacionalidades no bairro”, que precisavam de ser unidas. Pouco depois, recorda, “já estavam os pais sentados a desenhar também”. Esta comunidade vivia “sedenta por atividades”. “Tudo o que fazemos chama logo quase toda a gente. Fizemos uma aula de Zumba e as pessoas ficaram tão felizes.”
Procuraram um espaço e tornaram a missão oficial, através da criação de uma associação – a Wizardsmile -, de onde nasce o Transformar. A Paróquia de Famões ajudou a encontrar um espaço situado entre os três bairros, cedido depois pela associação de proprietários daquela encosta. Mas, no primeiro ano dos quatro que já levam de missão, todas as despesas foram arcadas diretamente pelas duas fundadoras – como os lanches que disponibilizavam três vezes por semana, nos dias em que a associação abria.

“Ao fim ao cabo, éramos mães destas quase 40 crianças e jovens” – Ana Sofia ri. Começaram com 12 crianças, dos 6 aos 18 anos, vindas dos três bairros, mas rapidamente o número aumentou. Não precisaram de estratégias de marketing ou de bater porta a porta. Tinham, do seu lado, o mais antigo e eficaz de todos os métodos: a palavra corrida. “Os miúdos diziam: ‘eu não vou para casa, vou para a associação’. Os outros, com curiosidade, iam também”, lembra Natália.
Na sala que lhes foi cedida pela Paróquia de Famões, ajudaram os mais pequenos com os trabalhos de casa, criaram assembleias para discutir temas difíceis como higiene, a fome e até orientação sexual – todos os temas trazidos por eles ou por força das circunstâncias -, ensinaram para a vida através de desenhos e brincadeiras e levaram estas crianças a ver o mundo além do bairro.
Ana Sofia e Natália ganharam a confiança da comunidade. E até o agrupamento escolar já as procurava diretamente para resolver os problemas de algumas crianças, mesmo antes de contactar os pais.
Passaram inclusivamente a ser contactadas para resolver problemas externos ao bairro, como o caso de ‘Cristiana’ (nome fictício), uma menor que foi resgatada pela mãe do Rio de Janeiro, onde se descobriu estar às mãos de um traficante de droga numa favela, como sua escrava sexual. “É uma grande história de superação. Esta jovem teve uma evolução tremenda só por estar cá”, conta Ana Sofia.
Regra geral, o resultado “foi notório” na vida escolar destas crianças. Debater avaliações de testes ou de final de ano passou a ser assunto levado a sério e “houve crianças que passaram de seis negativas para duas” – o suficiente para transitar de ano.



A partir deste canto, mudaram o bairro também. Residentes num lugar onde há pobreza extrema, crianças vítimas de tráfico sexual e de negligência parental, caminharam todos os dias com o fardo do que sabiam estar a acontecer dentro das casas dos seus vizinhos.
“No início, não conseguia dormir com tantos casos de violência doméstica que viemos a conhecer”, recorda Ana Sofia. E nunca largaram as mãos à comunidade: ajudaram com as documentações e até luta contra a pandemia, quando Natália se prontificou a dar boleia a todos os que fossem tomar as vacinas contra a covid-19.
O que as vacinas não conseguiram deter foi o encerramento do espaço físico desta associação (entretanto devolvido à Paróquia), que está desde o início da pandemia sem conseguir prosseguir com os seus objetivos no bairro.
No parque, Ana Sofia e Natália analisam os rostos, na iminência de não reconhecerem já alguns. “Passou tanto tempo, já nem sabemos como estão as crianças”, lamentam. À espera de uma nova morada, estas mulheres olham, entristecidas, para um bairro que volta lentamente à estaca zero.
Se quer ajudar o projeto Transformar a encontrar um espaço físico para funcionar, contacte-nos:

Catarina Reis
Nascida no Porto há 27 anos, foi adotada por Lisboa para estagiar no jornal Público. Um ano depois, entrou na redação do Diário de Notícias, onde aprendeu quase tudo o que sabe hoje sobre este trabalho de trincheira e o país que a levou à batalha. Lá, escreveu sobretudo na área da Educação, na qual encheu o papel e o site de notícias todos os dias. No DN, investigou sobre o antigo Casal Ventoso e valeu-lhe o Prémio Direitos Humanos & Integração da UNESCO, em 2020.
✉ catarina.reis@amensagem.pt
Obrigada Catarina por nos dar conhecimento desta realidade, que é uma verdadeira lição de vida.
Curioso terem ido a Vale do Forno, porque no centro de Odivelas é impressionante a presença de imigrantes de todo o mundo, nomeadamente ao nível dos negócios. Há uns dias abriu uma loja chamada “Global Foods” e há uns 4 barbeiros quase na mesma rua (cortes a 4€!). São dezenas de negócios. Dá que pensar no deserto em que estaria transformado o centro da cidade sem o dinamismo destas pessoas.
Obrigado pelo serviço que a Transformar presta a uma cidade que desespera por quem lhe queira bem.
Excelente artigo (texto e fotos). Uma realidade muito escondida e ignorada, mas que está bem perto de nós. Um exemplo de vida de duas voluntárias inspiradoras, são casos como este que é preciso divulgar e dinamizar na certeza que uma sociedade inclusiva e com condições de vida. Será esta a melhor forma, para todos termos um futuro diferente.
Existe uma Ipss no Bairro do Vale do Forno gerida com fundos públicos, ajuda da câmara e doações de várias instituições, que tem muito espaço para ceder a essa instituição, moralmente deviam ser os primeiros a prestar- se a essa ajuda, um edifício novo com todas as condições, construído em 80% com fundos europeus.
Façam a pergunta a essa instituição ou a câmara municipal de Odivelas, qual o motivo para estas pessoas não serem ajudadas, façam o presidente da câmara e o presidente dessa instituição darem a cara lado a lado, pode ser que assim façam alguma coisa.
Vergonha de políticos.
Dra. Catarina Reis muito interessante as histórias destas duas heroínas! Sofia e Natália Obrigada Maria