– És do futuro? – grita um rapaz que, tal como nós, aguarda um sinal verde para seguir a sua viagem.

– Sim, e dentro de momentos vão sair as asas – responde Andrew Campbell, divertido. Deve estar a pensar: foi o que disse, não há como explicar o que é conduzir isto, apenas mostrar.

E sentir.

Pelo som produzido pela engrenagem desta geringonça inventada na Suíça, que dá pelo nome de TWIKE – gémeo da bicicleta, mas híbrido, a eletricidade -, fica a impressão de que descolaremos a qualquer momento. Apesar das promessas, não saímos do chão. Retirado o tejadilho, seguimos com o fresco nas cabeças carecas, e, de um ângulo pouco olhado para Lisboa, conversamos sobre três rodas.

Ao meu lado viaja Andrew Campbell, um ativista da mobilidade suave que conduz este veículo estranho. Todos os anos, escolhe um destino – já fez mais de 300 mil km. Este ano, a viagem do nómada digital de 48 anos tinha como destino o extremo sul de Portugal, passando por Lisboa. Andrew foi a primeira pessoa a pedalar na ponte 25 de Abril com trânsito normal.

Twike Lisbon
Andrew Campbell junto do seu veículo, com o qual chegou da Suíça a Lisboa. Foto: Rita Ansone

Este triciclo híbrido foi inicialmente produzido pela Suíça para a Exposição Mundial de Vancouver , em 1986, e passou a ser feito em série desde 1996. Este, especificamente, o TW560, é de fevereiro de 2000. Há cerca de 1000 pelas estradas. E são feitos na Alemanha de forma completamente manual, mas, mesmo assim, levam apenas uma semana a ser acabados.

Toda a gente nos sorri

Urge estabelecer uma equivalência que aproxime o leitor. Imagine que Lisboa nem sempre foi a sua morada e que a primeira forma de descobrir a cidade foi sobre carris, no eterno elétrico 28.

O encanto e o divertimento de uma nova forma de sentir as ruas e as suas linhas, com forças mecânicas que nos empurram de um lado para o outro, é o mesmo no Twike. A deslizar sobre ruas estreitas, a bom ritmo, fica para trás um rasto de Lisboa antiga, de cheiros vários e com som a fado. Dificilmente se esquece.

O veículo é pequeno mas permite dois passageiros. Foto: Twike560

– Até os condutores sorriem – digo, com um sorriso que saía da geringonça.

– Toda a gente – devolve Andrew, confiante.

A Lisboa e a Portugal, um país que viu mudar, Andrew chegou em 1991 pelos caminhos feitos de ferro e através do programa que ainda hoje vive, o Interrail. Viajar longe, com baixo impacto em emissões, relacionando-se com os locais eram as premissas antes, e são-no agora.

Para perceber a sensação de viajar no Twike, veja este vídeo.

Nesta viagem recente, que o trouxe de Zurique a Lisboa por umas semanas, tinha o objetivo de alcançar o ponto mais a sul em Portugal: 38°19’52.4″N e 37°00’05.4″N são as coordenadas desta incursão.

Custou-lhe apenas 15 € em eletricidade, e assim foi, num desafio que passou por pedalar ao atravessar a ponte 25 de Abril.

Ao que parece, com o trânsito normal, ele e a mulher foram as primeiras pessoas a fazê-lo. Tal não passou despercebido, não desafiou a lei, apenas o pensamento de alguns condutores. Fê-lo porque pode: o TWIKE tem matrícula e é legalmente considerado um carro, apesar de ser frequentemente confundido com uma nave espacial.

– Mano, o gajo pode andar na autoestrada com esta cena e tem 460 km de autonomia – explica alguém, em bom português, após dois dedos de conversa, a um transeunte.

A velocidade máxima que este triciclo dos anos 1980 atinge são 100 km/h.

A longa viagem do TWIKE

No Miradouro da Nossa Senhora do Monte, o veículo criou um ajuntamento. Vários idiomas misturaram-se para colocar questões. Para todas, existiam respostas na ponta da língua, devolvidas por Andrew, no idioma da formulação. Ele é um poliglota, nasceu no Canadá, é filho de mãe austríaca e pai inglês, e viveu em sete países ainda antes de completar 14 anos.

– Mas como soube que era eu o dono do veículo? – pergunta, em francês, a uma senhora que apareceu quando já estava longe do carro, de bebida na mão, a inspirar os sons do mundo que se misturam naquela que é das melhores vistas da cidade.

– Perguntei ao rapaz das bebidas -, respondeu ela [risos].

Quando prosseguimos, diz:

– Esta é a magia. Posso estar em qualquer sítio do mundo e não tenho de fazer nada para estar em contacto com as gentes.

Sente-se um local esteja onde estiver.

Andrew ouviu falar deste veículo nos anos 1990. Começou por ser uma forma ativa – e eficiente – de chegar a casa após 14 horas de trabalho. Percebeu logo o impacto de o conduzir: olhares, acenos e longas conversas. É impossível ignorar o statement que faz.

Embora seja um anúncio compacto e andante à eficiência energética, em vez de ativismo, Andrew sugere, sem pretensão, que o que faz é “be-ism”. Feitos os trajetos, está apenas a deslocar-se de forma a abrir portas para educar, disponível para partilhar o seu conhecimento. Pretende, com isto, deixar um legado: a multiplicação. Não de TWIKEs, mas das ideias que movem este veículo. (Ainda assim, também os sogros optaram por também adquirir o gémeo da bicicleta).

– As pessoas estão condicionadas. Comprar, usar, deitar fora. Ter algo durante muito tempo não é sexy. Para ter este carro precisei, de forma muito consciente, de decidir querer. Pode não ser o melhor, mas faz bastante sentido.

Com o Twike, problemas só com os carregamentos

É neste “carro”, com cerca de 200 kg, que Andrew se tem deslocado para os mais diversos pontos do globo, da Rússia à Índia, espalhando este “be-ism” eficiente. Foi graças a isso que em Bombaim falou para 2000 estudantes universitários acerca de mobilidade.

Mas ter um “carro” tão chamativo tem as suas desvantagens. Algures nessa viagem, centenas de pessoas cercaram-no num misto de curiosidade e excitação. Além de sudorese, isto provocou um grande engarrafamento. Apesar dessa única vez em que não pôde dar respostas, Andrew diz que continua confortável com quem quer que seja, onde quer que seja:

– Despejem-me em qualquer cidade, em qualquer parte do mundo.

O Twike na Índia.

Atravessar a Índia até foi fácil. Havia sempre onde carregar a bateria, nem que fosse através de um gerador. Na Europa, especialmente em Portugal, é difícil aceder aos postos de carregamento, o que não é um problema para ele, mas para outro tipo de elétricos.

Vivemos um novo paradigma, já não existe ansiedade do alcance, agora é do carregamento. Tem quase 10 cartões, não é suficiente. Um sistema integrado também não é solução. Muitas estações de carregamento na Suíça, onde vive, de forma a facilitar a vida aos de fora, permitem pagar encostando o cartão de crédito:

– Em que país é pedido o cartão do fornecedor para colocar gasolina? Nenhum. Também deveria ser assim para os elétricos. Porque se pensa apenas localmente? Poderiam pensar em todos os que virão a Portugal com um veículo que necessita carregamento.

Lições de energia

A cápsula futurista que Andrew conduz é uma lição sobre consumo: é feita com a premissa antiga de durar. Tem um esqueleto fixo que pode sempre ser atualizado. Se uma peça falha, conserta-se. Se existir uma a merecer atualização, em nome da eficiência, fá-lo.

A primeira bateria era feita de níquel e cádmio, agora, apesar das imperfeições, tem uma de lítio. A tecnologia atualmente não está a ser pensada com a possibilidade de atualização. Um carro destes, assim como um telemóvel como o fairphone, para estabelecer um paralelo, nem sempre é atraente. Compra-se um telemóvel pela nova e melhor câmara. Porque não mudar apenas a câmara?

– Tenho-o há 20 anos e durará mais 20. Por requerer menos, faz menos mal. É reparável e hackeável. Aceitará, quando chegar, a nova tecnologia de bateria. Devemos ter produtos hackeáveis. Um Renault 4 ainda dá para arranjar, um Tesla não. Afinal, como é que se arranja software?

Quando algo se estraga, a maioria das vezes é ele próprio a reparar.

Foto: Rita Ansone

Os três engenheiros suíços que inventaram este veículo, reparável vez após vez, não tinham olho para o negócio. Após venderem as primeiras 100 unidades, ocorreu-lhes expandir o projeto com um crowdfunding da época, tendo atingido um total de 1000 unidades. Infelizmente, a empresa, por inaptidão comercial, já não existe.

O stock remanescente de peças foi comprado por entusiastas do veículo e estima-se que possam ser produzidas apenas mais 100 unidades deste modelo de 1996. Apesar da possibilidade de surgir uma nova versão, não pensa abdicar deste, sabendo que o novo não terá este encanto:

– O melhor sobre este veículo, desenhado há tanto tempo, é continuar a servir um propósito diário, suscitando interesse nas pessoas – diz, fascinado.

É no blogue, TWIKE560 – por ser o número 560 na linha de produção manual – que Andrew narra as suas aventuras como se ele fosse o carro ou como se ambos fossem um. Para alguns leitores pode parecer estranho, contudo isto acontece pelo estatuto de híbrido entre humano e elétrico: pode ser movido pela energia elétrica, com ajuda dos pedais – ou exclusivamente por estes.

Tem todo o gosto em responder às perguntas, porém a maioria – dizem os anos – fica respondida com uma consulta às questões frequentemente colocadas e respondidas no blogue.

Por falar em perguntas, são estas que o deixam mais otimista quanto ao futuro. Crê que mais e mais pessoas estão a perceber que a mobilidade precisa de ser repensada e reestruturada. As perguntas de agora são mais interessantes do que antes:

– Há 15 anos perguntavam-me porque não usava um motor a diesel, hoje não. Querem saber como e o que me move. Pela sua expressão, quando explica, deve despertar uma espécie de fogo de artifício no olhar das pessoas.

Um veículo que faz repensar a mobilidade

Apesar de conduzir o pináculo da eficiência, que até recarrega nas descidas, Andrew não rotula os carros bons ou maus:

– Estão nas estradas. Não posso dizer eliminem todos. Existem usos para o carro a que os veículos elétricos ou outros não respondem.

Ainda.

Para ele, a solução é clara, está ao nível do Estado. Temos de nos questionar sobre que cidades queremos; se queremos mais carros elétricos, onde e com que tamanho. Se queremos, tem de ser dado dinheiro às pessoas, apesar de também afirmar o seguinte:

– Os carros elétricos não salvam o planeta. Não são o fim para o consumo desenfreado ou um sistema monetário que não está bem. Temos de refletir também sobre questões como: porque continua a ser mais barato comprar à China do que localmente?

Consciente de que não vai salvar o mundo, mostrar que pode deslocar-se de forma eficiente é a sua ínfima parte, e quer que todos reflitam se estão a ser eficientes:

– Um carro normal, pesado, capaz de carregar litros de coisas sem fim, mas que está vazio a maior parte do ano, não é eficiente. Quando percebermos isto, talvez tenhamos um passe integrado que nos permita usar diferentes meios, quando cada um é necessário.

A intermodalidade, segundo este, é a chave para reestruturar a mobilidade.

– Até para um ciclista pode fazer sentido a pergunta: porque hei de ter uma cargo bike de que só preciso uma vez por ano? Aquilo que preciso talvez seja de uma bicicleta mais leve e compacta e, quando precisar, talvez faça mais sentido alugar uma carrinha para as mudanças – reflete, com clareza.

A viagem de perguntas está a chegar o fim, mas ainda há tempo para elencar o que o traz, vez após vez, a Lisboa: destaca a gastronomia e a sua diversidade.

Além disso, os contrastes das suas facetas: a parte velha e as novas. Há a cidade, há o rio e o mar está a 15 minutos. E, mesmo com o TWIKE, são os colegas portugueses que o levam a sítios que doutra forma não conheceria.

– Poderíamos beber muito bom vinho português e discutir estas questões que não se esgotam – mas a viagem chegou ao fim, onde começou, numa garagem em Alcântara.

A entrada e saída do veículo requer habituação. Foto: Rita Ansone

Sair deste veículo é tão simples como entrar, mas tem uma certa arte: primeiro a mão no joystick, depois um pé na parte estrutural do chão e mão na estrutura lateral. A diferença: para o trânsito já não se pode olhar da mesma forma.

Ficam as questões sobre como nos movemos, do passado para o futuro.

*Leonardo Rodrigues é aluno de Ciências de Comunicação, na Universidade Nova, e também autor do projeto Lisboa Quase Verde. É autor do blog Leonismos.com

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3 Comentários

  1. Muito bom. Um trabalho de reportagem óptimo, para divulgar formas alternativas de mobilidade amigas do ambiente. Mais um grande artigo. Parabéns.

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