Pedro Hossi é de vários lugares – nasceu em Luanda, viveu em Nova Iorque e Los Angeles – mas é em Lisboa que neste momento quer estar. “Sei de onde venho”, diz. “Eu amo a cidade de Lisboa e isso faz de mim, desde logo, um lisboeta”.

Atualmente ator de cinema e tv, descobriu o teatro há 20 anos, com o mesmo encenador com quem leva agora a cena o monólogo “Uma noite na Lua”. Um reencontro após uma solidão forçada pela pandemia e que o trouxe de regresso ao palco, desta vez no Estúdio Time Out, no Mercado da Ribeira. A peça pode ser vista até ao dia 31 de agosto.

Nasceu em Luanda, veio para Portugal com dois anos e depois regressou novamente a Luanda. Como foi crescer entre Lisboa e Luanda?

Estive em Luanda dos 14 aos 16, o que foi péssimo academicamente. Quando vim aos dois anos para Portugal, a minha família toda veio também: mãe, avós, tios, … Mas depois a minha mãe regressou a Luanda – foi mãe muito nova, aos 15 anos. Acabei por ficar a viver com os meus avós. A minha mãe foi trabalhar para a TAAG [Linhas Aéreas de Angola], o que me permitia viajar, nunca perdi o contacto com ela. Aos 14 anos regressei a Luanda, porque a minha mãe queria passar mais tempo comigo e então fui estudar na Escola Portuguesa de Luanda.

Como foi essa experiência?

Academicamente foi muito mau, mas em termos de vivência vou levar para sempre aqueles dois anos no meu coração: abriu-se um universo para mim.

Era muito diferente ser adolescente em Lisboa, nos anos 1990, e ser adolescente em Luanda?

Sim. Aqui a minha adolescência foi muito ligada ao desporto, à dança – dançava breakdance -, mas a ida para Luanda abriu-me outro universo. Os primeiros amores foram em Luanda, as festas de quintal, a Kizomba, isso acontece tudo lá. Foi uma altura muito bonita da minha vida. Foi lá também que descobri as motas – que ainda hoje são uma paixão. A primeira mota que tive foi lá, fiz motocross, foi sempre uma vida muito boémia. Depois, eu próprio quis regressar a Lisboa e recuperei rapidamente o tempo perdido academicamente.

Mas nunca perdeu essa ligação a Angola. Ainda dança Kizomba?

Claro, eu adoro dançar. Ia muito às discotecas africanas, em Lisboa, mas a verdade é que nunca fui muito da noite… Depois, aos 21, 22 anos fui para Nova Iorque.

Já tinha decidido estudar teatro?

Sim, eu tinha feito essa peça com o António Terra – “Perdoa-me por Me Traíres” -, e fiquei com a sensação de que tinha de ir à procura de formação. Fui para o Lee Strasberg [Theatre and Film Institute], uma das mais famosas escolas de teatro. Fiz uma audição e uns meses depois soube que tinha sido aceite. Foi então que a minha vida mudou completamente. Há um antes e um depois de Nova Iorque. Foi chegar a uma cidade que é diferente de tudo aquilo que conheci na vida, muito ligada à cultura, à arte, ao teatro.

Quanto tempo ficou lá?

Um ano e meio, inicialmente, depois terminei o curso, ganhei uma Bolsa de Estudos que me permitiu estudar em Los Angeles. Mas Nova Iorque foi importantíssimo para mim, fazer parte daquele grupo de pessoas que se formaram naquele ano no Lee Strasberg. Foi como uma experiência religiosa, porque foi o descobrir daquilo que eu queria fazer para o resto da minha vida e como o fazer: apaixonei-me perdidamente pelo teatro. É a partir daí que a minha vida profissional começa. Saio de Nova Iorque e vou para Paris fazer teatro, estive lá seis meses, depois fui para Los Angeles e aí foram dez anos da minha vida, que seria difícil sintetizar numa conversa. Foram várias vidas nesses dez anos.

Já alguém aqui disse, também em entrevista à Mensagem, que Lisboa tem ecos de Nova Iorque. Concorda?

Sim, há uma parte de Nova Iorque que é muito boémia – downtown. Tem muitos bares e restaurantes, está sempre muita coisa a acontecer. Esta parte de Lisboa onde estamos agora a conversar [Mercado da Ribeira, Cais do Sodré], tem muitas semelhanças com Downtown, em Nova Iorque. Lisboa mudou muito…

Quando é que acha que a cidade começou a mudar? Foi para melhor?

Acho que Lisboa está uma cidade muito mais dinâmica, quero acreditar que tenha mudado para melhor, apesar das situações complicadas, como o preço das rendas.

Depois de Nova Iorque, Paris, Los Angeles, quando é que regressou a Portugal?

Antes ainda voltei a Luanda. Foi lá que fiz a minha primeira novela, chamava-se “Jikulumessu”e foi um projeto que teve muito sucesso e era muito polémico. A minha personagem era um homossexual, casado com uma mulher e que tinha dois filhos, mas que se apaixona por um homem. Quando o primeiro beijo entre as nossas personagens foi para o ar, a novela foi suspensa. Foi em 2014, 2015…  Isso acabou por trazer muita publicidade à novela que, quando regressou, tinha uma audiência muito superior à que tinha antes de ter sido suspensa.

É depois desse êxito que decide voltar a Lisboa?

Sim, mas pensava voltar para Nova Iorque depois. Recebo uma proposta de trabalho da SIC para fazer a novela “Coração d’Ouro” e fui ficando… A seguir a TVI contratou-me e fiz “Ouro Verde”.

Sempre teve casa em Lisboa?

Tinha a casa dos meus pais, que apesar de não viverem cá, sempre mantiveram a casa – na altura era no Estoril. Mas já vivi em muitos lugares de Lisboa: na Graça, em Alvalade, na Estrela. Tenho-me movimentado um pouco pela cidade. Agora estou em Paço de Arcos e não quero sair – adoro a zona.

Sente-se lisboeta? Em quê?

Antes de mais eu amo a cidade de Lisboa e isso faz de mim, desde logo, um lisboeta. Cresci aqui. Conheço as ruas todas, tenho um sentido de orientação muito bom, não me perco em Lisboa. Grande parte dos meus amigos são de Lisboa, tenho família em Lisboa, o meu clube não é de Lisboa – sou adepto do FC Porto, influência do meu avô – mas grande parte da minha vida foi cá e grande parte das minhas memórias está ligada a Lisboa.

Onde encontra África em Lisboa?

Em todo o lado. Não só nas pessoas, mas na música. Eu acho que África faz parte de Lisboa, é um casamento quase perfeito. O José Eduardo Agualusa, que é um grande amigo meu, dizia uma coisa interessante: o Bairro Alto começa a fervilhar com um bar africano – o bar do Hernâni. A impressão digital africana está num dos bairros mais emblemáticos de Lisboa e depois na forma como o Bairro Alto se alastrou, mas começou por ali, com esse ADN africano, estamos a falar das noites…

E apesar disso, o racismo… Como vê o homicídio de Bruno Candé?

É um fenómeno global. Portugal é racista, mas não estou a apontar o dedo apenas a Portugal. É algo que deve ser confrontado, mas com seriedade, as pessoas precisam de dialogar sobre essas questões. Temos de viver em sociedade onde quer que estejamos e só se consegue fazer isso de forma eficaz quando existe harmonia. Sobre o homicídio do Bruno Candé… é trágico o que aconteceu, da forma como aconteceu. Ninguém quer que volte a acontecer. O que podemos fazer para o evitar? Temos de falar, de conversar. Acho que hoje se fala mais sobre a questão do racismo e quero acreditar que as coisas vão melhorar, porque sou otimista.

Já foi alvo de racismo em Portugal?

Claro. Já ouvi o “Vai para a tua terra”, já me chamaram de “preto”, mas eu sei de onde venho.

De todas as cidades onde já morou, a melhor cidade para se estar neste momento é mesmo Lisboa?

É. Eu acho que neste momento não trocaria Lisboa por cidade nenhuma. Porque me sinto bem aqui, sinto-me seguro. Lisboa dá uma qualidade de vida muito grande, por mais que existam algumas limitações. Temos um clima fantástico, culturalmente há muito coisa a acontecer. Para mim isso é muito importante. Hoje, Lisboa é um centro, temos grandes artistas a morar em Portugal. Esta Lisboa é completamente diferente daquela Lisboa que existia quando fui para Nova Iorque estudar.  

Sente-se mais português ou angolano?

Sou angolano, tudo começa aí. Sinto-me igualmente português, porque cresci aqui, mas também me sinto um cidadão do mundo, porque vivi em vários sítios e fui sempre recebido como um local. Nunca me senti um estrangeiro. Tem que ver com a forma como olho o mundo. Sei que existem fronteiras, mas olho para além delas. Faço parte da raça humana e habito o planeta Terra.

“Uma noite na Lua”, do autor brasileiro João Falcão, já foi interpretada por outros dois atores. Que peça é esta?

Foram feitas duas interpretações. A primeira pelo grande Marco Nanini e mais recentemente pelo Gregório Duvivier. Obviamente que há aqui uma grande responsabilidade em seguir as pisadas de duas pessoas por quem eu tenho o maior respeito e admiração. É um monólogo. A peça fala-nos de um escritor que nunca escreveu, um homem que se encontra à beira do precipício, que perdeu tudo. Não tem gás, não tem telefone, perdeu a mulher da vida dele e prometeu a um ator famoso com quem se encontrou numa festa – quando a peça arranca ele está a voltar dessa festa – uma peça. Diz-lhe: “Eu tenho a tua peça, aquela que tu procuras, já está escrita”. Quando ele entra aqui [aponta para o palco], o que as pessoas veem é uma tentativa deste homem arrumar não só os seus demónios, mas também de exorcizar a partida da mulher. Ao mesmo tempo em que tudo isso acontece, ele está a ter vários diálogos com vários eus e está ainda a escrever a peça. Porque a beleza disto – e o João Falcão fez isso com um brilhantismo incrível – a tal peça que ele prometeu ao ator famoso está a acontecer em tempo real. No fim, tudo faz sentido, quem vir a peça vai perceber. Tem sido um belo desafio. Há aqui outra componente que acho importante falar…

Qual é?

Acho que coletivamente somos bombardeados com pensamentos quase a toda a hora. As pessoas não falam muito sobre isso, mas acho que é uma coisa que nos toca a todos. Temos uma série de diálogos a acontecer dentro da nossa cabeça e às vezes estamos a dialogar com alguém que não está à nossa frente e o que se passa aqui [na peça] é que tudo aquilo que ele pensa, ele fala. Diz isso mesmo: que é um homem em cima de um palco pensando.

E escreve?

Não escreve, na verdade a peça passa-se toda na cabeça dele. Depois tem uma revelação: “A peça, a minha peça, está toda aqui na minha cabeça”. Essa questão dos pensamentos é algo que me toca… Todos sofremos desse mal e aqui vemos alguém que também o sofre, mas verbaliza.

É um mal? Porquê a carga negativa?

Acho que é um mal, porque muitas vezes estamos no passado ou no futuro e raramente estamos no presente e é isso que cria toda a turbulência dentro da nossa cabeça.

É a primeira vez que faz um monólogo? A pressão é maior?

O meu grande medo, inicialmente, era a questão da memorização: são 31 páginas. É um texto escrito num ritmo por vezes frenético, é muita coisa a acontecer. A nossa encenação vive muito do jogo de luzes que foi montado, ou seja, estou muitas vezes a contracenar com as luzes, mas isso também faz que a peça seja muito dinâmica. Quando vou ao teatro, gosto de ver obras dinâmicas, não sou adepto do teatro lento. Tivemos a preocupação de criar algo que também vai ser entretenimento, não convida só à reflexão, mas também entretém as pessoas durante uma hora e dez [minutos].  

Descobriu alguma coisa sobre si enquanto preparava a peça?

Não sei se posso dizer que descobri, mas voltando à questão da memorização – isso deixou-me apreensivo. Acho que quando queremos fazer algo com foco, com empenho, as coisas acontecem. Não foi uma descoberta, foi mais um lembrete: com trabalho, nada é impossível.

Como tem vivido a pandemia? Onde estava em março do ano passado?

Nessa altura tinha começado um projeto na TVI, a novela “Quer o Destino”. Gravei dois ou três dias e mandaram-nos a todos para casa. Foi um período muito estranho, aquele primeiro confinamento.

Especialmente duro para os artistas…

Sim. Muitos de nós trabalham a recibos verdes, não temos contratos de trabalho. Foi uma altura muito complicada – e ainda continua a ser – para a cultura, no geral. O primeiro confinamento foi difícil, o segundo mais difícil ainda, porque já não era novidade, mas foi um tempo que aproveitei para mim, para ler, para escrever, para cuidar de mim.  Foi um tempo que me dei a mim mesmo… Passei esses confinamentos sozinho, porque moro sozinho.

Essa solidão deu frutos?

Sim. A ideia de fazer esta peça vem daí, desse momento em que tive tempo para pensar naquilo que queria fazer. A ideia de fazer a peça nasceu nessa altura, depois deu-se o reencontro com o António Terra, que é o encenador.

Como foi esse reencontro?

A minha primeira experiência num palco foi há vinte anos e sob a direção do António. Depois fui para os EUA, onde vivi bastante tempo (também vivi em Paris, onde fiz teatro), e agora recentemente tivemos esse reencontro e ficámos com muita vontade de criar algo.

Sentia falta de fazer teatro?

Sentia que estava na hora de voltar. Não pensava: “Só tenho feito televisão e cinema, tenho de fazer teatro”, mas havia algo que se estava a tornar óbvio. Queria voltar e com alguma coisa que fizesse sentido para mim, não tinha de ser necessariamente um monólogo, mas algo que me permitisse crescimento. Estava à procura de um desafio.

“Uma noite na Lua” está em cena no Estúdio Time Out, no Mercado da Ribeira, até ao dia 31 de agosto, de terça a sexta-feira, às 20:00.


Paula Freitas Ferreira

Nasceu em Moçambique e viveu em muitas cidades até chegar a casa, Lisboa. Acredita que os lugares são impossíveis de contar sem ouvir as pessoas e as suas histórias. É jornalista desde o ano 2000 e passou pelas redações do 24horas, Sábado e Diário de Notícias. Colaborou com a Notícias Magazine e escreveu três livros.

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1 Comentário

  1. Portugal é uma região geográfica, um território físico, logo não pode ser ou deixar de ser racista. Portugal tem, infelizmente, pessoas racistas, mas também tem outras que não o são. Então qual a razão da generalização? E existe um mínimo percentual para se poder fazer um julgamento desses, ou basta haver uma única pessoa racista para justificar a designação?

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