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A processar…
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Um filme, como qualquer obra de arte, tem leituras muito diversas. Não só artísticas e estéticas, não só sociológicas ou políticas. Um filme, como qualquer obra de arte, pode provocar paixões insuspeitas. Já viajei e me desloquei muitas centenas de quilómetros para poder estar no cenário de um qualquer filme que eu amo.

Há anos, estava eu no intervalo de uma sessão do Quarteto (que saudades!), quando meti conversa com um casal que se encontrava na fila da frente. Estrangeiros, visitavam Portugal, sobretudo Lisboa, porque tinham visto, e amado, “A Cidade Branca”, do suíço Alain Tanner, um dos grandes filmes rodado na capital portuguesa, por estrangeiros, e que maior sucesso público terá conhecido.

Como se vê, tal como eu, e tantos portugueses apaixonados por cinema, me desloco para poder estar num local descoberto pelo cinema, também há pelo mundo fora quem venha a Portugal para conhecer as belezas naturais do nosso país e desfrutá-las intimamente. Portugal devia apostar mais nesta vertente. O que já tem acontecido, com vantagens óbvias.

Aquando da estreia desta obra de Alain Tanner em salas portuguesas, corria o ano de 1983, escrevi: “Portugal tem sido, nos últimos meses, cenário eleito para dezenas de equipas cinematográficas, oriundas de vários países, que aqui têm rodado outros tantos filmes (ou partes de filmes), demonstrando-se assim, também por este meio, que o nosso país se encontra num bom momento, cinematograficamente falando. Na verdade, muitos têm sido os cineastas estrangeiros que se têm sentido atraídos pela beleza da nossa paisagem, os encantos dos nossos monumentos, a qualidade do nosso pessoal técnico… e a barateza da mão-de-obra que aqui encontram (é bom não esquecer!). Mas nada disto seria possível se o nosso cinema não tem atravessado fronteiras com o vigor com que o tem feito nos últimos anos, espantando tudo e todos, ainda que cá por dentro as coisas se não venham a passar do mesmo modo. É, todavia, uma realidade que não permite já dúvidas, esta força imensa que representa, no conjunto da cultura portuguesa actual, o nosso cinema”.

E continuava: “Voltando aos estrangeiros que nos procuram, aí estiveram Wim Wenders, Raul Ruiz, Eduardo de Gregório, Ruy Guerra, Alain Tanner. Vem aí Clive Donner e, tudo indica, Stanley Kubrick (o que acabou por não se verificar, nota de 2011). Ao lado destes, vários outros aqui estiveram, estão e estarão. Diversas equipas de canais de televisões estrangeiras encontram-se em Sintra, Lisboa, Algarve, norte do país, rodando séries, ou episódios, para TVs de França, do Canadá, da RFA. Enfim, Portugal começa a ser badalado intensamente nos meios cinematográficos de todo o mundo. O que tem obviamente vantagens, e algumas desvantagens (as equipas portuguesas são poucas para as encomendas, e quem mais sofre são os directores portugueses que querem trabalhar, mas a quem começa a faltar técnicos para dar continuidade ao seu trabalho).”

Encerradas estas recordações, falemos de “A Cidade Branca” (Dans la Ville Blanche), onde Lisboa surge na óptica de Alain Tanner, num filme de puro fascínio imagético, que se sente logo pelas imagens iniciais, quando um navio avança na bruma do alvorecer, entrando Tejo adentro.

Filme sem história, vivendo essencialmente da criação de um clima, “A Cidade Branca” é esse tempo de pausa na vida de um marinheiro que aqui faz escala e por aqui fica uns dias, gozando a brandura do clima e dos costumes (enfim, sempre acabará por ser vítima de um roubo, e posteriormente de uma agressão) e apaixonado por uma mulher.

Marinheiro em crise, Bruno Ganz revive aqui muita da sua própria experiência e da do director. Na verdade, Alain Tanner foi marinheiro antes de se deixar prender pelo cinema, e esta sua história ribeirinha mais não é do que o desfiar de recordações, servindo possivelmente ela mesma como descanso na carreira do autor, continuamente em busca de um tempo perdido e de uma utopia prometida.

“Sonhei que a cidade era branca, o quarto era branco, a solidão era branca, o silêncio era branco.” História, pois, igualmente, de uma solidão e de um silêncio que encontra refúgio num paraíso perdido, algures no sul da Europa.

Bruno Ganz é um alemão bem nosso conhecido de filmes como “O Amigo Americano” ou “O Círculo da Mentira”, respectivamente de Wim Wenders e Volker Schlonderff. Ele afirma-se como o protagonista certo para mais uma peregrinação intimista de Tanner, autor de vários outros títulos estreados no nosso país, alguns deles com sucesso crítico e também de público: “O Último a Rir”, “A Salamandra”, “O Regresso de África”, “O Centro do Mundo”, “Jonas que Terá 25 Anos no Ano 2000” ou “Os Anos Luz”.

Quem se der ao trabalho de comparar o espírito e algumas das características comuns a todas estas obras, verificará com certeza que “A Cidade Branca” prolonga este itinerário: um acentuado gosto pela marginalidade, pelo ser solitário em confronto consigo próprio, arriscando a ruptura com o sistema, apostando na utopia, lançando-se numa viagem sem destino certo, em busca de si mesmo.

Esta peregrinação pelas ruas de Lisboa é uma deambulação fascinada por um tempo e um lugar de uma maior convivialidade do que aquela que transparece das imagens da sua Suíça alemã, onde se encontra a mulher do marinheiro, a quem este escreve e envia cassetes de super 8 com imagens “roubadas” nesta cidade portuária.

As viagens ao longo das ruas sinuosas de Lisboa são motivo para uma sucessão de silêncios e olhares, de gestos e aproximações, de meias palavras e de fugas nocturnas, o que tem evidentemente a ver com a procura (não confessada) de um paraíso perdido, uma pacificação interior, um regresso a si próprio, ao que de mais autêntico e profundo existe no homem. “Estou bem, sou livre. Não faço nada. Organizámos a liberdade. Eu não. Sou livre.” Paul olha o Tejo da sua varanda, numa pensão rasca da Lisboa ribeirinha (anterior à Expo), numa imobilidade que tenta abolir o tempo e o espaço.

Tempo de repouso, mas também de exaltação amorosa, quando encontra Rita, “uma criada de quarto com um diamante negro no meio das pernas”, o que permite a Alain Tanner algumas cenas de uma sensualidade explosiva, como essa apenas entrevista numa penumbra rasgada pela paixão, no canapé de uma sala abandonada ao desejo. “Amo-te eternamente. O corpo de uma mulher é muito grande.”

Não sendo uma vulgar visão turística estereotipada, este olhar romântico por Lisboa é um retrato invulgar da nossa capital, no início dos anos 80 do século passado, escolhida para porto de refúgio de uma crise. “Sou um mentiroso que tenta dizer a verdade”.

Retrato que permite a Acácio de Almeida imagens de uma beleza surpreendente, assinando assim uma fotografia notável. Como excelente é ainda o trabalho de Teresa Madruga, num papel à sua medida, que ela cumpre integralmente, com sugestivo mistério e segurança técnica.

Título original: Dans la Ville Blanche ou In the White City ou A Cidade Branca

Realização: Alain Tanner (Suíça, Portugal, Inglaterra, 1983); Argumento: Alain Tanner; Produção: Paulo Branco, Alain Tanner, António Vaz da Silva; Música: Jean-Luc Barbier; Fotografia (cor): Acácio de Almeida; Montagem: Laurent Uhler; Direcção artística: Maria José Branco; Som: Jean-Paul Mugel; Companhias de produção: Channel Four Films, Filmograph S.A., Metro Filmes, Télévision Suisse-Romande (TSR), Westdeutscher Rundfunk (WDR); Intérpretes: Bruno Ganz (Paul), Teresa Madruga (Rosa), Julia Vonderlinn (Élisa, a mulher suíça), José Carvalho (o patrão), Francisco Baião (o ladrão), José Wallenstein (outro ladrão), Victor Costa (rapaz do bar), Lídia Franco (rapariga no bar), Pedro Efe (amigo na taberna), Cecília Guimarães (senhora no comboio), Joana Vicente (jovem no comboio), etc. Duração: 107 minutos; Distribuição em Portugal: Atalanta Filmes; Classificação etária: M/ 12 anos; Estreia em Portugal: 21 de Abril de 1983.


*Lauro António é realizador e crítico de cinema – lendário em Portugal. Lisboeta de gema, foi a cidade que também cunhou o seu gosto pelo cinema, e ele próprio mudou a história do seu cinema.

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1 Comentário

  1. Um belíssimo texto, uma crónica que fez recordar um dos mais conseguidos filmes de Tanner, A Cidade Branca que vi e revi no Porto. Parabéns.
    Manuel Vitorino

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