Instabilidade política, crise económica, hiperinflação, desemprego. A partir dos anos 80 do século passado, de país de imigrantes, o Brasil tornou-se país de emigrantes: Estados Unidos, Japão e, depois, inundado por recursos europeus, Portugal. Em busca de trabalho chegaram as primeiras levas de brasileiros; na vanguarda, dentistas e publicitários. No final da década, toda a gente. À época, eu queria ir para a Índia, viver num ashram, ao pé do mestre, mas calhou, em junho de 1987, chegar a Portugal, a Cascais mais precisamente.
Calhou porque meus avós são portugueses, minha mãe é portuguesa, oito tias e tios e imensos primos, todos portugueses. Toda a família materna a viver na linha de Cascais, linha que meu avô ajudou a construir. Eu, aos vinte e poucos anos, sem dinheiro para chegar à Índia, convenci minha mãe que me trouxe para conhecer a família, o país, e aqui estabelecer-me. Secretamente, planos feitos, Portugal seria a porta de entrada, meu destino europeu estava traçado: a Suíça. Trabalharia nas colheitas e, com os bolsos cheios de francos, voaria para Mumbai e, então, Poona, meu destino final.
Mas, qual o quê! Cascais no verão… praia todos os dias, folia todas as noites. Deixe-se estar mais um pouco, a Suíça logo se vê, o guru pode esperar… fui ficando. Sentia-me em casa. Longe da terra natal, inesperadamente, senti-me aconchegado junto às minhas raízes e acolhido na pátria que acabara de conhecer.
No final do verão, fui mesmo à Suíça. No início do outono, voltei. Descobri Lisboa, cidade deteriorada, quase em ruínas, que renascia à maneira dos mais jovens, uma geração eufórica com o porvir. Eu, filho do mesmo ânimo, mais um entre tantos, descobri o Bairro Alto: festas, bares e poucochinho fado. E, lá, uma namorada. Todo o inverno passado entre Santo António dos Cavaleiros, onde ela morava, quase minha casa também, e a Parede, acolhido pela tia, uma segunda mãe para mim. Elas a sofrerem por antecipação sempre que eu ia ou vinha à noite, a cruzar do Rossio ao Cais do Sodré, sozinho em zona tão perigosa.
Chegada a primavera, à boleia de um camião, primeiro França e depois Itália. Em Roma, sobrevivi uns meses a limpar para-brisas nos semáforos. Outra vez à boleia, dessa feita com uma arquiteta, amizade nascida naquelas encruzilhadas, fui para Estugarda. Trabalhei — umas semanas — nas obras e, com ela, voltei a Roma, só por um mês. Completamente falido e nenhum cêntimo no bolso, entrei num comboio em direção ao ocidente. A cada expulsão e novo ingresso, eu avançava: Ventimiglia, Nice, Toulon, Marselha, Nimes e Montpellier, Girona, Barcelona, Lérida, Saragoça, Guadalajara, Mirabel e Badajoz, finalmente, Santa Apolónia e, a pé, até o Cais do Sodré, à Parede. Depois de dias em jejum, cheguei alquebrado à casa da tia. Fui recebido com um prato fundo de comida arranjada, de última hora, pela prima.
Ao todo, foram quinze meses, e umas quantas histórias, até cruzar o Atlântico de volta ao Brasil. Entre altos e baixos, os anos seguintes foram bons para mim. Com a economia nos eixos, o país cresceu. Eu tive bons empregos, fiz carreira como executivo de multinacional, empreendi e casei-me. Voltei algumas vezes a Portugal, onde pouco circulava para além da linha de Cascais. Vinha para matar as saudades das tias — e dos comeres que elas preparavam —, rever a família e aquelas paragens. Em 2002, por insistência e iniciativa de um amigo advogado, lusodescendente, tornei-me português. Ele tratou de todo o processo: “não preciso disso para nada!”, resmungava eu, sem imaginar o futuro, a cada vez que o amigo me solicitava algum documento.
Em 2014, as notícias que chegavam de Portugal eram boas. Passada a crise, entre 2009 e 2012, com o turismo em crescimento, considerei aproveitar o bom momento e investir no país. E assim, no final daquele ano, minha esposa e eu comprámos um apartamento em Lisboa. Entre pesquisa e compra da casa, os dois meses que passámos em Portugal mexeram connosco. Foram dias extraordinários. Redescobri Lisboa bem diferente daquela que conheci, mais sofisticada e aberta ao mundo.
Optámos por um apartamento soalheiro, com vista para o rio, onde pudéssemos passar alguns meses por ano e receber os amigos. Em 2015, não pudemos, nossos compromissos em São Paulo nos deram trinta dias de férias, nada mais. Em 2016, entre idas e vindas, conseguimos passar seis meses por cá. Queríamos mais. Em 2017, após um inverno nevado nos Estados Unidos, decidimos: vamos viver em Lisboa. Sentíamos falta da luz, das colinas, dos becos, do casario, dos tantos cheiros, da comida, do Tejo, do Cristo-Rei, da ponte, do céu sempre azul… Tudo nos faltava.
Como nós, muitos mais brasileiros vieram nestes últimos anos: uns por indignação com os políticos, outros por medo da violência urbana, todos em busca de qualidade de vida. Iêda e eu viemos porque aqui nos sentimos acolhidos, porque, ainda que conservemos os nossos costumes e sotaques, sentimo-nos parte da nação portuguesa, dessa gente que há séculos espalhou-se pelo mundo, e, misturada a outros povos, transmitiu e absorveu novos saberes, crenças, estéticas e valores; gente que se aculturou, amalgamou-se e que, agora, prole de muitas ligas, torna com suas cores, sabores, modos e suingues: goeses, damanenses, diuenses, macaenses, cabo-verdianos, guineenses, angolanos, moçambicanos, brasileiros, venezuelanos…
Ao cabo, nada novo, sucessão de câmbios, cruzamentos e fusões anteriores, inauguradas há milénios, entre iberos e celtas e fenícios e gregos e hebreus e cartagineses; entre lusitanos e romanos; mais alanos e vândalos e suevos; e mouros e ciganos… É da nossa índole.
Hoje o caminho é inverso, vivemos em Portugal e viajamos para o Brasil — para ver a família e matar as saudades dos calores, cores e sabores de lá. Geralmente, seis semanas por ano. A cada regresso, quando o avião paira sobre a ponte antes de aterrar e vejo toda a cidade, salta-me o coração: é minha Lisboa! A cada volta é sempre igual. Se vou longe, dois meses no sudeste asiático a fugir do inverno pouco rigoroso de cá: taquicardia; se saio curto, logo ali à Espanha: palpitações; se fico confinado em casa, degredado pelo vírus: bradicardia.
E quando, finalmente, ponho os pés na rua, feito bicho solto, ando a esmo, palmilho desnorteado cada canto: da Lapa a Marvila, por Arroios e Olaias; de Alvalade a Santos, com o Campo Pequeno e a Baixa pelo caminho; de Alcântara ao Alvito e até a Praça de Espanha; Mouraria, Castelo, Graça e Alfama; Santo Amaro, Belém, Ajuda e Necessidades; Estrela, Campo de Ourique, Campolide, Rato e São Bento: sorvo a cidade.
Em Lisboa a síntese do cosmopolitismo luso; amostra de diversa e exótica nação. Feliz por viver numa terra assim. A cada dia, descubro e redescubro a cidade. A cada descoberta um pouco de quem eu sou.
* Osvaldo Alvarenga é cronista, autor de “Santos e Sardinhas, lisboa em crônicas” e escreve para o Diário do Turismo. Foi Presidente da Equifax do Brasil, Sócio da mapaBRASIL, co-realizador da Data Management Conference Latin America, Diretor da Data Management Association (DAMA) – Chapter Brazil e Conselheiro da Associação Brasileira de Marketing Direto (ABEMD) e dos Doutores da Alegria. Vive em Lisboa desde 2017.
Excelente. Subudha, nome de guru de Osvaldo Alvarenga, amigo desde 1980, é ótimo pra contar histórias. Sempre foi. Mas sou suspeito. Pois, afinal, somos amigo’irmãos.
Eis um retrato fiel e poético dessea tempos e ventos que nos levam e trazem. E que compartilhamos e cumpliciamos nas mesmas dimensão e sintonia.
Bela história contada pelo gosto de ser-se alfacinha.
Linda e poética. Em tempos de prisão domiciliar seja pelo vírus, seja pelo medo da violência, seja pelo cansaço de ver tanta coisa errada por aqui, dá mesmo vontade de ter coragem de soltar as amarras e criar novas raízes. Parabéns ao escritor e sua linda Iedinha. Saudades de vê-los por aqui.
Não vejo a hora de ser minha cidade de residência essa Lisboa que é também minha cidade desde a primeira vez que aí pisei. 🙂 Contando os meses. <3
História linda e muito incentivadora… conheci Porto, quando fui participar de um Congresso de Tipografia, fiz tudo a pé… conheci uma boa parte da cidade caminhando… não esqueço o apoio que vcs me deram.
Abraços
Eu quero conhecer mais Portugal com calma…
Muito bom, o seu testemunho. Claro, diversificado, muitas latitude e meridiano, belo percurso dd vida. Um frase chave: sentir que faz parte da nação. Como Lisboeta e Português rstou grato e de alma cheia com o seu relato e de observaçãoes tao bonitas que nao vou deixar cair no lixo das esquecidas, porque são valiosas. Saude tranquilidade.
Osvaldo,
Belíssimo texto, quanta informação que desconhecia!
Seu texto já era bom, mas neste você aprimorou.
Gostei muito.
Parabéns e um grande abraço pra vc e pra Ieda
Mais um gol de placa. A gente viaja nos seus textos. Forte abraço