Para os imigrantes sem número de utente, as dificuldades não acabaram, mesmo para os que já se conseguiram vacinar contra a covid-19. Após os atrasos no agendamento da vacinação, agora são os impedimentos para descarregar o Certificado Digital Covid – dificuldade assumida pelo próprio Serviço Nacional de Saúde (SNS).
“Nesta fase, podem solicitar a emissão do Certificado Digital COVID da UE os cidadãos com número de Utente do Serviço Nacional de Saúde (SNS)”, indica o portal do SNS24. Ou seja, os outros ficam de fora, mesmo se já tiverem sido vacinados. A população sem número de utente, que compreende imigrantes regularizados e não regularizados, em lista de espera nos centros de saúde, está excluída, para já, do acesso ao certificado, nas suas três modalidades: certificado de vacinação, certificado do teste, que comprova um resultado negativo num teste rápido ou PCR para a covid-19, e certificado de recuperação da doença.
A DGS já deu indicações de que a restrição seria temporária até que as condições técnicas permitissem o alargamento do pedido de certificado a todos os cidadãos. Mas a DGS e a taskforce não respondem sobre prazos.
Problema 1 – nulidade de certificados covid-19
Apesar de ter já reportado esta dificuldade ao Alto Comissariado das Migrações (ACM), Kamal Bhattarai, fundador do NIALP (Nepalese Intercultural Association of Lisbon, Portugal), associação de apoio ao imigrante no Martim Moniz, relata um outro problema, geral à União Europeia: a nulidade dos certificados digitais de toma da vacina emitidos em países com acordos de vacinação considerados inválidos na UE.
“Chegam-nos muitos casos de pessoas que trabalham cá ou têm mesmo nacionalidade portuguesa e número de utente, mas foram passar o verão aos seus países de origem e vacinaram-se por lá. Ora, o certificado que receberam não serve para viajar pela Europa nem para regressar para Portugal. Algumas pessoas ficaram retidas no aeroporto porque não sabiam disso”, conta o nepalês.

O grande problema é que cada vez mais o Certificado Digital Covid é um salvo conduto para a livre circulação dentro do país e do espaço Schengen. Na vida prática, não ter acesso ao certificado significa não poder viajar livremente pela União Europeia sem restrições adicionais de viagem, como testes ou quarentenas.
Significa também não poder dar entrada em eventos culturais, desportivos e familiares, espetáculos de grande dimensão ou em espaços fechados, no interior de restaurantes durante o horário restrito, ou fazer o check in em hotéis e estabelecimentos turísticos.
Embora, claro, existam outras possibilidades para o curso normal da vida, como a apresentação do teste negativo, rápido e PCR, para aceder ao interior de estabelecimentos, e PCR para viajar para fora do país.
É por isso que Kamal vê este problema como secundário quando comparado a carências mais fundamentais. “O SNS tem de resolver. Há muitos outros problemas que o sistema não contempla e que são para nós são fonte de grande preocupação”, diz. Por exemplo, o agendamento da segunda dose em território nacional para quem tomou a primeira no estrangeiro.
Problema 2 – dificuldades no agendamento da segunda dose
A toma da segunda dose da vacina para imigrantes regressados a Portugal está prevista no plano de vacinação, desde que a primeira toma no país de origem tenha sido com uma patente que também seja administrada por cá. No entanto, “mesmo [migrantes] que foram vacinados noutros países europeus e depois vieram para cá também não estão a conseguir receber a segunda dose”, afirma Kamal Bhattarai.

O procedimento para agendar a segunda dose, nos casos em que se aplica, é bastante simples, mas nem sempre funciona, dizem os imigrantes. A diretiva do SNS é que os visados devem contactar o centro de saúde da sua área de residência para fazer o pedido de agendamento da segunda dose, tal como sucede para o requerimento de número de utente. Mas, mais uma vez, estão dependentes da eficiência dos centros, com recursos mais ou menos limitados.
À Casa do Brasil também chegam dúvidas e queixas sobre o procedimento para agendar a segunda dose. “A orientação que temos para dar nesses casos é que se a vacina que a pessoa tomou no país de origem corresponder a uma das que estão a ser [administradas] na União Europeia, a pessoa tem de se deslocar ao seu centro de saúde, informá-lo da sua situação, apresentar o comprovativo de primeira dose tomada no país de origem e a partir desse momento o centro de saúde faz uma comunicação para agendamento junto do SNS, para que a pessoa receba a segunda dose”, explica Vítor Hastenreiter, funcionário da associação de apoio ao imigrante brasileiro.
A problemática parece ser transversal, mesmo para quem tem número de utente e bom conhecimento dos seus direitos. Valentina Vasconcelos é brasileira, tem 21 anos e é licenciada em Sociologia pela Universidade Nova de Lisboa. Reside legalmente em Portugal há mais de quatro anos e tem número de utente. Deveria ter sido vacinada no país, mas umas férias insólitas vieram mudar o curso da história.
“Fui passar férias na Roménia em junho e estavam a dar vacinas a quem quisesse, sem custo, mesmo à entrada do aeroporto. A Roménia tem muito pouca população vacinada, porque as pessoas se recusam a receber vacina. Então eles estavam a dar aos turistas, para não estragar. Aproveitei, levei a primeira dose da Pfizer”, conta.
Já de volta a Portugal, Valentina fez o procedimento indicado para agendar a segunda dose, mas o centro de saúde nunca lhe respondeu aos e-mails. “Na altura, fiquei super feliz, achei que, sendo a Roménia um país da UE, não teria nenhum problema voltando para cá, mas estava enganada. Já passou quase um mês e meio e ainda não consegui marcar a segunda dose”, relata.

Tentou ligar várias vezes, até que foi atendida por uma funcionária, que disse não ter conhecimento de situações daquele tipo. “Depois de lhe explicar várias vezes, ela disse que fez o registo, mas mais uma vez não deu em nada. Tentei então registar-me na plataforma como se fosse a minha primeira dose, mas mesmo isso não resultou”, explica Valentina. “A minha impressão é que vai muito de quem te atende. Recebi sempre informações desencontradas e os próprios profissionais não estão bem informados dos procedimentos”.
Fernanda Hermeto, médica luso-brasileira em Portugal, deparou-se com um problema semelhante. Vacinou-se com a primeira dose de Pfizer no Brasil e embora tenha feito o procedimento correto para agendar a segunda em Portugal, conseguir tomá-la foi quase uma sorte. No dia da marcação agendada pelo centro, os profissionais de saúde ficaram confusos com a situação. Fernanda já havia esclarecido que podia vacinar-se naquele dia, e fez finca pé. Lá se vacinou. “Tudo correu bem, mas se fosse uma pessoa menos informada, ou com receio, por ser estrangeira, como às vezes tratam mal a gente, já não sei se dava certo.”
Problema 3: muitos imigrantes ainda esperam primeira dose
Para as pessoas sem número de utente, a DGS disponibilizou, em março deste ano, uma plataforma própria para o requerimento da vacinação. Após os atrasos reportados, em julho, o SNS começou a chamar população migrante desta franja. Segundo o governo, em declarações ao jornal Público, serão cerca de 8600 os já vacinados de um universo de 150 mil inscritos na plataforma online. A taskforce diz que tem ainda feito um esforço para vacinar pessoas migrantes via empresas, para chegar a população com menor literacia digital.
Mas muitos continuam sem ser contactados. Quando contactadas pela Mensagem sobre os atrasos, a DGS e a taskforce de vacinação não apresentaram resposta até à data de fecho desta reportagem.
Os responsáveis da Casa do Brasil afirmam não terem nenhum relato de uma pessoa não utente do SNS que já tenha sido vacinada. É o caso de Carmen Ayres, de 70 anos, imigrante brasileira e residente legal. Não tem número de utente e ainda não foi chamada pelo SNS após inscrição na plataforma. Já não conta as vezes em que foi ao centro de saúde pedir que lhe atribuíssem um número: a primeira vez foi em novembro de 2020. “A partir daí começou minha luta para conseguir esse bendito número de utente.” Diz tentar ser compreensiva com os profissionais, apesar dos muitos “nãos”, mas não abdica dos seus direitos. E diz já ter sentido situações de discriminação.
“[Na Casa Aberta] eles me recusaram e ainda disseram para mim…”. Hesita. “Que eu era imigrante e tinha de ir no sítio em Lisboa onde estavam vacinando todas essas pessoas que não eram daqui. Eu disse, poxa, eu não sou daqui, mas tenho passaporte, título de residência, moradia, estou aqui com a minha filha, que é casada com um português. E eu não posso tomar vacina? Não é bem assim que a gente trata as pessoas. Eu queria muito me vacinar, queria muito. De algum jeito.” A idade acarreta receios, por isso, Carmen sai pouco de casa nestes dias.

Amanda Pinheiro, de 25 anos, já tentou de tudo para se vacinar. Diz já se ter inscrito dezenas de vezes na plataforma online para não utentes (uma é suficiente e recomendada), mas até agora não obteve resposta. Amanda só recentemente viu a idade de vacinação descer, mas é cardíaca. Só que a plataforma não contempla quem é ou não doente de risco.
“Vivo em Portugal há dois anos, já tentei dar manifestação de interesse [para número de utente] de várias formas, mas sem título de residência, não consegui. Aliás, não consegui nem marcar ainda para o obter no SEF.” Os tempos de espera são imensos e, com a reestruturação, “as marcações estão demorando por volta de dois anos”, diz. “Sem número de utente você não pode se vacinar porque não chamam. Mas também não pode ter acesso à saúde a um preço razoável.”
Problema 4: muitos sem número de utente, mesmo provisório
Serão 223 mil as pessoas migrantes com processos de residência pendentes no SEF, e mais os que aguardam por um número de utente. Para o obter, é preciso ter título de residência válido. Uma vez regularizado, pode fazer o pedido, presencialmente, via e-mail ou telefone, para o centro de saúde correspondente à sua área de residência. Mas os tempos de espera variam, consoante o centro. Atualmente, em Lisboa, a estimativa situa-se nos 6 meses.
“A orientação que temos para obtenção do número de utente é a seguinte: se a pessoa já tem o título de residência, ou uma pessoa que tem o comprovativo de que está em processo de regularização junto do SEF, deve enviar o documento para o centro de saúde da morada mais próxima do título de residência, com o NIF e o comprovativo de morada”, explica Vítor Hastenreiter, da Casa do Brasil.
Quem tiver uma manifestação de interesse de título de residência completa até março deste ano, está equiparada a uma pessoa regularizada. E tem direito a um número de utente provisório. “Mas acontece que para a obtenção desse número provisório é também um drama”, acrescenta Vítor. “Hoje atendi duas pessoas que fizeram o pedido de número de utente [provisório] em fevereiro e tiveram a resposta esta semana.”
No entanto, para quem apanhou a carroça depois de março, a situação complica-se. Djenabu Djaló é guineense, tem 31 anos e reside legalmente no país. Trabalha como empregada de limpeza numa empresa e quer ser vacinada. Ainda sem o título de residência, não consegue obter número de utente, apesar das múltiplas tentativas: já foi ao centro de saúde de Alverca, onde reside, da Póvoa e Vila Franca de Xira. “A senhora que me atendeu do SNS explicou-me que dão número de utente provisório para vacinar. Dei-lhe o meu telefone, mas não me chamaram de volta”, conta Djenabu.

Sem acesso a computador, foi difícil fazer a inscrição online, desabafa. E como ela, conhece “muitas companheiras africanas na mesma situação”, também sem número de utente. Além da vacina, quer muito obtê-lo para seguir em frente com tratamentos e consultas no centro de saúde. “É possível fazer, mas é custoso sem número, não tem como. Comecei a trabalhar em abril, as moedinhas não dão para isso.”
Para quem de facto conseguiu receber número de utente provisório, tão valioso para o agendamento da vacinação, o destino do mesmo é incerto. Será que este número provisório se transformará no definitivo, ou terá de ser processado novo pedido? Não há nenhum despacho oficial e as informações que Vítor recebeu, na Casa do Brasil, são contraditórias. “Eu liguei duas vezes para o SNS esta semana e disseram que também não há previsão para quando se irá regularizar essa situação. Uma das pessoas disse que não há previsão, a outra que demora 3 semanas. É muito mais que 3 semanas, claro.”
*Luzia Lambuça é vilafranquense de coração e lisboeta por opção. É estudante de Ciências da Comunicação e está a estagiar na Mensagem de Lisboa ao abrigo da parceria Repórteres de Bairro. Este texto foi editado por Catarina Carvalho.
Eu sou brasileiro, sem utente e fui vacinado por muita insistência e choro. Me prostrei em frente ao centro de vacinação e conversei, gritei, briguei pra que me aplicassem a vacina. Sou então o único caso desse tipo? Xenofobia é mato por aqui.
Eu sou português e estou em fila de espera para tomar a vacina há meses. Que grande xenofobia que deixa os estrangeiros furar a fila enquanto quem paga impostos cá desde sempre continua à espera.