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A processar…
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Aurora era uma mulher algures para lá da normalidade. Vestia roupa ligeira no Inverno, gorro no Verão. Metia-se intensa em assuntos supérfluos e passava leve pelos pesados. Falava em cascata, não havia dique ou águas paradas que a detivessem. Durante uns tempos desaparecia, provando que escondia alguns mistérios, mas voltava mais descontida, pronta a inundar o café.

Se a vida tivesse banda sonora, a dela seria a sirene de uma ambulância.

Manhã cedo, quando entrava no café, a banda sonora ouvia-se baixinho, a despertar, e Aurora conseguia conter-se numa senhora de sessenta anos em tudo parecida com o próprio cartão de cidadão, mas um tanto sentadora de proximidade.

Para mim, o pequeno-almoço é meia-de-leite e solidão: ainda que as restantes mesas estejam vazias, uma sentadora de proximidade opta pelo ombro a ombro.

De começo não me preocupei porque Aurora não falava. Sentava-se só por sentar. Porém, um dia percebeu que eu lia o jornal atento às páginas de cultura, e noutro encontrou-me de livro na mão. Estalou em Aurora a mulher que vai a todas.

«Eu conheço muito bem o Tolentino…», respirou ela para cima do meu pescoço. «Como gosto do Frederico Lourenço e da Hélia Correia… Uma tarde fui à Culturgest e o que vejo, quem vejo? O próprio do ALA num avistamento daqueles! Nunca mais me esqueço, foi uma alegria que subiu da palma dos pés ao cimo da testa. Mas, sabe, não há nada como o lançamento da revista de uma companhia de teatro. Apareço apenas euzinha, falam todos para mim.»

Isto da primeira vez. Da segunda, a mesma ladainha de quem gosta de ver a cultura in loco. E sem me largar, o ombro bem encostado ao meu ombro, a ler o meu o jornal, a olhar para mim, a comentar a coluna onde os meus olhos paravam. E da terceira, quarta e quinta, bem como daí em diante durante semanas, já sentada todas as manhãs quase ao meu colo, à boleia do meu pequeno-almoço, substituindo-se à minha solidão.

Era a Aurora mulher diabo.

Eu queria ler em paz, sem a cabecinha dela enfiada na mira da minha leitura, a contar – com dó e desprezo – que esses novos escritores são todos a mesma trampa. A mesma poia. Sabe como é, semelhante fedor.

Além de paz, eu queria passar o resto dos meus vinte e quatro anos a escrever o livro que faria de mim o autor da mesma trampa, fazedor de poia, estreante de tal fedor.

Todos no café se incomodavam com o espectáculo: Aurora fizera-se hárpia sobre a minha cabeça. Entre as mesas, pousando baixo, sentia-se o peso da pena e da irritação: eram os olhares baixos perante os loucos. Por fim, decidi acabar as minhas manhãs com Aurora.

Senti que a perdia. Não ela mesma, a mulher do cartão de cidadão, mas as outras mulheres que estavam por trás daquela. As que eu podia inventar. Aurora como polícia sinaleira na rua da Escola Politécnica. Ela num corredor do São José pedindo, pedindo. Ela no Alvito, depois de subir a pé só para dizer que consegue. E consegue, está em cima de Monsanto, mas recusa-se a olhar para a paisagem. E Aurora simplesmente no quadriculado de Campo de Ourique a fazer de Charlot. Contudo, não a pus no livro nem a inventei o suficiente para a aturar.

Veio fitada, sentou-se juntinha a mim repetindo a história da ocasião em que ouvira embevecida o Tolentino. Algo sobre poesia. Interrompi-a: «Aurora, desculpe, mas isto acabou. Eu quero sossego!» Aurora agora era a mulher do desentendimento. E eu a repetir: «Sossego é o que eu quero. Deixe-me em paz!»

 Aurora levantou-se, ajeitou o gorro de Verão, explicou que a idade era um posto e que tinha todo o direito, decerto imbuída pelo Cardeal Tolentino, de disparar a palavra em quem entendesse.

«Ponha-se a andar!», disse-lhe.

Ela agora sabia que era assunto sério, que perdera o público das manhãs no café, mas só desistiu quando toda a gente – num som triste que substituiu o da ambulância como banda sonora – começou a bater palmas. Lá saiu ela, mulher rabo entre as pernas.

Isto pesou-me, apesar da leveza do pequeno-almoço sem Aurora equilibrar a balança. Só que, a partir daí, ela era o bairro: sempre que eu passeava por Campo de Ourique, encontrava-a na esquina seguinte, na esplanada contígua, na rua mais à frente, nós em rota de colisão.

Entretanto saiu o tal livro. Durante uns tempos, arrastado por O Meu Irmão, quase não passei por Campo de Ourique. Quando voltei à rotina, Aurora já era mulher esquecida.

Fatalmente esbarrámos, mais ombro a ombro do que nunca, na esquina da Infantaria 16 com a Ferreira Borges: ó Aurora!, ó Afonso! Desembaraçámo-nos, eu sem o que lhe dizer, ela igual. Até que Aurora disse: «Você desculpe-me!»

Queria desculpá-la, pedir também desculpa, quando ela disse: «É que eu não sabia!» Não sabia? «O seu livro! Não sabia que estava a perturbar a criação.»

Antes da escrita vem a meia-de-leite. O que Aurora perturbava era o pequeno-almoço. Ia a dizer-lhe «tudo saldado, tudo saldado», quando ela se tornou mulher vingativa. Fria como a salva de palmas: «Seja como for, li o seu livro… É muito confuso, não percebi nada.» Que parte não percebera? «Comecei pelo fim porque o jornal dizia que era a melhor parte, e quando cheguei ao início aquilo pareceu-me empastelado!»

O meu segundo livro já não teve a companhia de Aurora. Se a encontrar na rua, convido-a para o pequeno-almoço. E pergunto-lhe se de trás para a frente este também é uma merda. Aposto que sim, e a culpa não é dela.


Afonso Reis Cabral

Nasceu em Lisboa em 1990. Cresceu no Porto, mas voltou às origens para frequentar a esplanada da FCSH. Aos 21 anos, escreveu os primeiros capítulos de O Meu Irmão numa mezzanine com vista para a Tapada das Necessidades. Mudado para Campo de Ourique, escreveu os primeiros capítulos de Pão de Açúcar num terraço com vista para as Amoreiras. Há muito destas paisagens nos seus livros, embora Lisboa não esteja lá.

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1 Comentário

  1. Achei lindíssimo este pequeno texto, despertou a minha curiosidade para comprar o livro.
    Gostei da forma de escrita, sóbria , comevedora, tocante.
    Parabéns ao autor.

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