Receba a nossa newsletter com as histórias de Lisboa 🙂
“Vamos ao Nimas”, de 1975, é o meu primeiro filme assinado a solo. Antes tive algumas experiências que não posso dizer que tenham sido filmes “meus” (dois ou três programas para os Serviços Cartográficos do Exército, divisão de Foto Cine, e o “maldito” “Grande, Grande era a Cidade”).
Trata-se de um documentário de cerca de 18 minutos, em 35 milímetros, a preto e branco, que acompanha a derrocada dos chamados “piolhos”, cinemas populares que, entre finais dos anos 1960 e meados de 70, começaram a desaparecer da paisagem urbana de Lisboa, tal como aconteceu noutros locais do mundo, acompanhando a evolução social e progresso tecnológico do próprio cinema.
Julgo que por isso mesmo é um documento importante, sob vários pontos de vista. Mas vamos por partes. Nimas, porquê?
Pois bem, “nimas” era a designação popular para se referir o cinema, enquanto sala. Ninguém (ou quase ninguém) dizia que ia ao nimas, quando se dirigia ao Monumental ou ao Tivoli. Eram salas de “gente fina”, de burguesia. Mas quem ia ao Olympia ou ao Salão Lisboa ia ao nimas. O nimas era o piolho, com os seus filmes de acção, cowboiadas, policiais, aventuras, um ou outro melodrama xaroposo, comédias descabeladas, tudo isto antes de 25 de Abril de 1974, porque depois o prato forte passaram a ser os pornográficos. Por pouco tempo, diga-se de passagem, porque essas salas estavam condenadas a desaparecer rapidamente. Por quê pagar para ver um porno, quando há aos milhares na internet?

Para se perceber essa evolução é preciso recuar um pouco no tempo, até à época áurea do cinema, nas décadas de 1930 a 60 do século passado. Nesse período, o cinema era rei e senhor do espectáculo, muito embora desde os anos 1950 a televisão começasse a emergir como grande rival que tudo iria conquistar.
Mas existiam salas majestosas, templos sagrados da sétima arte, nos centros das cidades, salas mais pequenas em zonas residenciais, e salas populares em bairros limítrofes ou zonas muito povoadas pelo lúmpen. Exemplifiquemos com o caso de Lisboa: existiam as grandes salas, Império, Monumental, Tivoli, São Jorge, e algumas mais, onde se estreavam os grandes filmes. Frequentadas por uma elite intelectual e burguesa (não só necessariamente, mas predominantemente).
Depois dos filmes estarem em estreia, durante várias semanas (normalmente para Lisboa comprava-se uma cópia e esta era explorada intensivamente em duração), passavam para salas de “continuação de estreia”, salas mais pequenas, em bairros residenciais, como o Paris ou o Europa (em Campo de Ourique), o Imperial ou o Lys (na zona de Almirante de Reis), o Restelo (em Belém), etc.
Muitas vezes as cópias seguiam depois para as colónias e, no regresso, iam então abastecer as salas populares, que eram muitas e se encontravam ou na zona central de Lisboa (nos Restauradores, onde se encontravam o Olympia, o Arco Iris, o Restauradores, o Arco Bandeira, por exemplo) ou nos bairros populares, em redor de Lisboa (Salão Lisboa, Cine Oriente, Campolide, Royal, Texas, Encarnação, etc.).
Depois desse percurso todo, depois do regresso de África, as cópias eram fragmentos de filme, trailers avantajados, expurgados de todos os beijos e outros cenas que interessassem aos projecionistas de qualquer Cinema Paraíso.

O filme “Vamos ao Nimas” acompanha o desmoronar dessa configuração de geografia cinematográfica da cidade. Tive a sorte de filmar mesmo a destruição do Chiado Terrasse, que iria ceder o seu lugar a um banco. Esse é outro fenómeno curioso que o filme testemunha. Essa passagem de sala de cinema a outro culto (o Max passa a igreja, muito antes do Império lhe seguir os passos), a outro tipo de negócio (centro comercial, armazém, etc.), ou encerrar simplesmente as suas portas, à espera de melhores dias (caso do Olympia, por exemplo).
Com o incremento da televisão, compreensivelmente o público menos abonado economicamente começou a ficar mais em casa, e foram os cinemas mais populares os primeiros a sofrerem com a concorrência. Mas também conflui para este facto uma outra característica: a melhoria das condições sociais vai tornando cada vez menos significativa a percentagem de lúmpen nas grandes metrópoles. Em Portugal, isso é muito sensível após o 25 de Abril de 1974.
É esse documento sobre uma determinada época que “Vamos ao Nimas” hoje se assume, tanto mais que não há muitos outros testemunhos visuais desse tempo e dessas salas. Salas com usos e costumes muito castiços que, presentemente, se nos afiguram pelo menos “estranhos”.




Por exemplo, nalguns deles, ao intervalo, os espectadores vinham para a rua, e os porteiros carimbavam-lhes as mãos para se confirmar que eram mesmo esses os compradores de bilhete. Mas havia sempre os espertos que passavam o carimbo a amigos ou conhecidos, comprimindo as mãos umas nas outras. Também em certas salas, quando tocava para o intervalo, muitos espectadores atavam o seu lenço (muitas vezes não muito limpo) à cadeira, para assegurarem que no fim do intervalo tinham direito ao mesmo lugar.
Filme nostálgico? Nem por um momento. Não se tem saudades desses tempos. Quando muito pode-se ter uma certa nostalgia de um cinema que foi apanágio da grande época de ouro. Mas a vida continua e as transformações na fisionomia da geografia cinematográfica das grandes cidades continuou. Hoje tudo é diferente, com os multiplexes e as pequenas salas, os Imaxs e o streaming. Mas um dia destes falaremos sobre isso.
VAMOS AO NIMAS
Realização, produção, ideia e montagem: Lauro António (Portugal, 1975); Texto: Maria Eduarda Reis Colares; Locução: Lia Gama, Nuno Martins; Fotografia (p/b): Moedas Miguel; Assistente de imagem: João Abel; Assistente de realização: Luís Sarmento; Assistente de Montagem: Emília de Oliveira; Som: Luís Barão, Raúl Ferrão (sonoplastia); Duração: 18 minutos; Subsidiado pelo IPC; Estreia: 12 de Julho de 1975 (em complemento dos cinemas Tivoli, Estúdio Apolo 70 e Olympia – Lisboa).
*Lauro António é realizador e crítico de cinema – lendário em Portugal. Lisboeta de gema, foi a cidade que também cunhou o seu gosto pelo cinema, e ele próprio mudou a história do seu cinema.
Belo texto, meu Amigo. Grande, grande, ABRAÇO
Excelente crónica (mais uma) do cineasta Lauro António.