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O Festival de Avignon foi fundado no pós-guerra, quando a França precisava de resolver a questão que tinha com o seu passado próximo. Esse pano-de-fundo foi contado num pequeno romance de Louis Aragon, Servidão e Grandeza dos Franceses, publicado logo em 1945. Um homem de teatro, Jean Vilar, ator e encenador, fundou o festival em 1947 e foi o seu patrão até morrer, em 1971. O Festival de Avignon tornou-se o maior acontecimento cultural anual do seu país.
Jean Vilar, diretor do Festival de Avignon, 1968
A ideia era fazer um teatro para todos, popular e de alta qualidade. Vilar concretizou-a da forma mais radical: levou o festival para uma cidadezinha do sul, Avignon, cheia de história, que roubara a Roma a exclusividade de Papas, longe de Paris e do seu tanto charme que asfixia à volta, na Provença dos campos de lavanda e do vinho Châteauneuf-du-Pape.
Cultura popular, mas exigente: quem lá vai tem que dar-se ao trabalho de ir. O Festival de Avignon fica a 700 quilómetros da capital.
E esta semana fomos sobressaltados pela notícia da contratação internacional de um português, que, ao nível de alto topo, só nos tem calhado no futebol e, com alguma surpresa, também na política. Acresce, que a distinção aconteceu num género que é exercido onde raramente metemos os pés: teatro.
Pois, apesar disso, da primeira vez que o Festival de Avignon, velhinho de três quartos de século, foi buscar um diretor estrangeiro, escolheu o português Tiago Rodrigues, de 44 anos e desde 2014 diretor do Teatro Dona Maria II, em Lisboa.
Certamente que a semana vai encarregar-se de dizer mais sobre quem, fora dos amantes de uma arte entre nós pouco frequentada, evoca, assim de repente, um Prémio Pessoa e uma recente peça em que Tiago Rodrigues é encenador e autor do texto. E esta só famosa por causa do polémico título: “Catarina e a Beleza de Matar Fascistas.” Do resto, desatenção, e ficámos a perder.
Logo no dia do anúncio da nomeação, o Público fez-lhe uma bela entrevista. Puxou para título esta frase dele: “Conquistei o mais belo festival do mundo com uma carta de amor.” Amor – “de amor ao festival e à cidade” – e trabalho, pois ele diz que apresentou um documento: “São 18 páginas de promessas”.
Cidades, teatro, cafés: a Europa
Os até agora distraídos ficaram a saber que Tiago Rodrigues é um homem de palavras, daquelas coisas voláteis que quando acertam é fundo, sonoras como o que é dito por quem está habituado a boa acústica e bonito como um jardim de cerejeiras.
A Mensagem, um jornal de cidade, desta Lisboa, e de uma certa ideia de cidade, ficou particularmente agradado com as palavras que, na entrevista ao Público, Rodrigues disse:
“Mas há uma ideia que me é muito querida, e que vem de um intelectual que também me é muito caro, George Steiner, que dizia que enquanto houver cafés haverá Europa. Essa ideia da Europa animada pelos cafés, pelo convívio, pela livre troca de ideias, está no centro do meu olhar para o Festival de Avignon, que considero não só o mais belo festival do mundo como também um dos cafés mais luminosos da Europa. Essa abertura ao outro, à novidade, e a noção de memória são elementos que considero muito importantes.” Palavras do Senhor Teatro.
Começamos, pois, a conhecer melhor quem já devíamos conhecer mais. E, talvez, agora nos assalte um sentimento de perda: então, um homem destes vai-se embora? Calma, ao contrário dos futebolistas conquistados pelo mundo, que só regressam reformados (salvo o Pepe) e dos políticos que prolongam o prestigiado cargo internacional com uma sinecura num grande banco (e, alguns deles, até é bom que por lá fiquem), ao contrário desses, a arte compagina bem o seu exercício noutros países, connosco a beneficiar aqui tão longe. Tiago Rodrigues nos mostrará, ou não.
A injustiça a Jean Vilar: “Vilar, Béjart, Salazar!”
Entretanto, já ele o disse na sua carta de amor que herda diretamente de Jean Vilar a ideia democrática de cultura, apesar de este ter desaparecido já há exatos 50 anos. Ora cabe aqui lembrar um episódio. A três anos da sua morte, na sua cidade, no seu festival, Vilar viveu uma injustiça que o amargurou até ao fim. E esse vexame – pelo menos a expressão dele – começara, semanas antes, em Lisboa, no Coliseu dos Recreios, a 100 metros de onde até agora Tiago Rodrigues dirige o D. Maria II.
Maurice Béjart, no Festival de Avignon, 1968
Para o festival de 1968, Vilar tinha programado três companhias francesas e duas estrangeiras, o Ballet du XX siècle, fundada na Bélgica pelo coreógrafo francês Maurice Béjart (alargar a outras artes, como a dança, era uma das apostas de Vilar), e The Living Theatre, grupo de teatro anarquista de Nova Iorque. O verão chegou depois de maio e, nesse ano, foi a única coisa tradicional que aconteceu a França. As troupes teatrais francesas estavam em greve e a Avignon só chegaram as duas companhias estrangeiras.
The Living Theatre, no Festival de Avignon, em 1968
O Maio de 68 tinha irrompido por Paris fora, sob o lema sôfrego de “o que queremos: tudo e já!” O teatro não escapou e fê-lo até de forma mais teatral. O Odéon, teatro nacional, foi ocupado, e a sua lotação, normal de mil pessoas, passou para três mil… Atores e aprendizes, os 40 anarquistas do Living Theatre nas suas sete quintas, estudantes, namorados efémeros e rotativos, contestatários em geral, casais com bebés, ateliers de discussão sobre “espetáculo-mercadoria” e um slogan: “Não nos demoremos no espetáculo da contestação, mas passemos à contestação do espetáculo.”
A ocupação durou um mês (de 17 de maio a 14 de junho). A polícia, cercara o teatro desde o princípio, mas no dia final acordou-se a evacuação do teatro sem que os ocupantes fossem identificados. Num aniversário redondo, em 1998, a revista L’Express teve acesso aos arquivos policiais e contou pormenores deliciosos.
Aquele que guardou para último é de uma ironia amarga. Um dos desocupantes do teatro L’Odéon fez-se passar por médico, de bata branca e estetoscópio nas orelhas. Escreveu L’Express: “Intrigados, agentes do RG (o SIS francês) seguiram-no até ao hotel. Depois de inquérito, revelou-se ser um escroc de origem sul-americana que vendia informações à DST, a contraespionagem francesa.” Sob as pedras da calçada, estava a praia, diziam os sonhadores de Maio 68. Mas também o esgoto do costume.
Maio acabou naquele dia, 14 de junho, com a rendição do Odéon. Entretanto, a 6 de Junho, em Lisboa, o Coliseu dos Recreios encheu-se para ver o que nunca vira, dança moderna: o Romeu e Julieta, do Ballet du XX siècle.
No fim do bailado, Portugal em três frentes de guerras coloniais ouviu o coreógrafo Maurice Béjart pedir, do palco, um minuto de silêncio “contra todas as formas de violência e de ditadura”. Na manhã seguinte, a Pide foi buscar Béjart ao hotel e expulsou-o de Portugal.
Já com o verão bem entrado, o Ballet du XX siècle e Béjart partiram para Avignon como estava programado, e também The Living Theatre desceu de Paris e da aventura do Odéon. Jean Vilar, na falta das companhias francesas em greve, acrescentou um festival internacional de cinema, 120 filmes de 23 países, e concertos de música nos claustros papais.
O ano de todas as emoções parecia que tinha reentrado nos carris. Vilar sabia que não era bem assim, porque ele próprio acabara de abdicar de um dos seus sonhos. No princípio do ano tinha aceitado com entusiasmo o convite do ministro da Cultura André Malraux para transformar a ópera francesa, como fizera com o teatro, em mais popular, democrática e descentralizada.
Mas o diretor do Festival de Avignon não gostara do tom com que De Gaulle, regressado do medo de maio, voltara à política. Escreveu a Malraux, desfazendo o acordo.
Para Jean Vilar, manter o Festival de Avignon era o seu destino. Já para Julian Beck, o rebelde patrão do Living Theatre, a prioridade era outra: manter a chama da revolução. O nome da sua peça Paradise Now parecia um slogan na Sorbonne de Daniel Cohn-Bendit, o paraíso já, agora. E ao título respondiam corpos nus, enlaçados, coletivos no palco. Como o mundo explicaria logo nos anos seguintes, essa nudez rapidamente deixou de ser castigada e de assustar.
Depois, Beck e os seus radicais quiseram mais, saltar do palco: “o teatro tem de sair da sua prisão”, e “invadir a rua”, gritou o profeta. Mais, desagradecido, o americano cuspiu na mão do festival que o convidara e abrigara. Chamou ao Festival de Avignon “supermercado da cultura.” Tudo somado, simples debate.
Mas foi aí que o insulto saltou. Nunca se soube vindo de quem, porque as explosões revolucionárias não são um convite para tomar chá, como disse Mao, especialista célebre. Gritou alguém: “Vilar, Béjart, Salazar!” Em francês tudo nessa tolice rima.
O admirável organizador democrático da cultura, Jean Vilar, que, por exigir toda liberdade incondicional, acabara de recusar uma função que ele sabia extraordinária; o criador de beleza, Maurice Béjart, que arriscara palavras justas num país amordaçado e foi expulso; e um ditador. Todos juntos: “Vilar, Béjart, Salazar!”, gritou a multidão em Avignon, em 24 de julho de 1968.
Julian Beck, em Poltergeist II
Três anos depois Jean Vilar morria, com obra feitíssima e duradoura, mas com o insulto a moê-lo. Uma vintena de anos depois, Julian Beck esteve ao nível de que nunca deveria ter almejado mais, protagonizando o velho descarnado que assustava criancinhas no filme de terror Poltergeist II, O Outro Lado.
E ficou um aviso para Tiago Rodrigues, nada é fácil, sobretudo quando se quer fazer o que se tem de fazer. Mas tranquilizem-se os distraídos, a revista cultural francesa Télérama tirou-lhe bem a pinta: “Tem ar de lenhador”.

Duas imprecisões : Maurice Béjart não era belga, mas sim francês de Marselha, embora o Ballet du XXe Siècle esse sim fosse belga ; a “simples revista de televisão francesa”, apesar do seu nome “Télérama”, é de facto o principal semanário cultural francês…
Que maravilha!
Muito bom, o que é normal, vindo de quem vem!
Caro Professor e camarada Nobre-Correia, emendas feitas! É um prazer para nós a sua leitura atenta. Esperamos que continue. Obrigada!
Estive no espectáculo do Béjart no Coliseu e falta referir que Robert Kennedy foi assassinado nesse dia, o que muito impressionou o púbico maioritariamente antissalazarista presente na sala
Muito bom.
Um lenhador sabe onde e o que cortar. Bela imagem da revista Télérama! E um texto que mete no mesmo saco tais nomes. E o deste, de 44 anos…
Um lenhador sabe onde cortar e o que cortar. Este homem do teatro sabe o que fazer. E já agora, parabéns pelo texto: juntar este nome a tais nomes do Festival é obra.