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O plano estava relativamente bem desenhado. Eu e o Tozé encontrávamo-nos em frente à Igreja de Santa Isabel e esperávamos que o Manel voltasse da escola. Depois seguíamos todos juntos para ver as meninas a passear no jardim da Parada de mãos dadas com as criadas. Era um plano que tinha sido afinado ao longo de vários meses e tínhamos até falado com a malta da rua do Cabo para ver se se queriam juntar, mas no dia ninguém apareceu.
Eu e o Manel tínhamos decidido que a parte mais difícil do percurso seria entre Santa Isabel e a Rua da Estrela, naquele pedaço estreito da Saraiva de Carvalho. Aí teríamos que correr que nem doidos se quiséssemos ter alguma esperança de sobreviver.
– Sobreviver, avô?
– Pois.
– Sobreviver ao quê?
– Aos matulões da Machado de Castro.
Quando o Manel chegou, vinha meio carrancudo porque tinha levado uns tabefes do pai por ter tirado más notas. Umas das coisas que sempre nos impressionou, a mim e ao Tozé, era porque é que o Manel se sujeitava a isso de ir à escola e não passava o resto do tempo com os miúdos da rua como nós.
Naquele dia, pedimos ao Chico, que vivia no 102 da Saraiva de Carvalho, que fosse à janela e nos acenasse se visse algum matulão. De acordo com os nossos cálculos, eram 50-50 por cento de chances de apanhar um desses bandidos no caminho, mas se nos deitassem a mão estávamos bem tramados.

Um amigo nosso tinha-nos contado que um amigo dele tinha sido atirado para o fosso da Machado de Castro por um desses rapazes e que nunca mais ninguém o tinha visto. A história era triste: o rapaz tinha-se cruzado por azar com um desses gandulos que lhe tinha pedido meio tostão e ele, que andava sempre à rasca de dinheiro, deitou-se à pancada e acabou no fosso.
– Parece-me exagerado, avô.
– Pois também achei. Deitar assim um miúdo para o fosso por meio tostão…
– A história, avô…
– A mais pura das verdades. O Manel não mentia.
Nunca percebemos bem de onde vinham os matulões da Machado de Castro. As nossas mães diziam que eles viviam todos lá para baixo, para os lados do Casal Ventoso, e nós sempre achámos que deviam comer mais do que nós naquela parte do bairro.
Estavam sempre zangados sem razão nenhuma, eram todos enormes e tudo indicava que gostassem de mandar miúdos para o fosso. Um deles era aprendiz numa loja de ferragens na Rua Correia Teles e costumava-se dizer que tinha lá os corpos dos miúdos todos que tinha deitado para o fosso.
Quando ouvimos o assobio do Chico de que a costa estava livre, desatámos a correr Saraiva de Carvalho acima. A rua é estreita, estás a ver, e os bandidos tinham tudo bem montado. Um matulão punha-se estrategicamente no final da rua, junto ao final da Silva Carvalho. O outro, uma vez os miúdos entrados na armadilha, cortava a retirada na Rua do Cabo. Era 50-50, foi o que eu pensei. Desatámos a correr. O meu coração batia, batia, batia até que passámos a Machado de Castro e o fosso sem ver nenhum matulão. Já estava a respirar de alívio – porque também não era muito de corridas, logo eu que jogava sempre a baliza – quando se dá o incidente.
Mal viramos a cabeça para contemplar o nosso sucesso, damos com o Tozé lá atrás a admirar uns azulejos que ele dizia que o pai dele fazia.
– Anda daí, ó parolo!
– Parolo é a tua tia!
Olha não sei se foram os gritos, se foi o ‘a tua tia’, que alertou os matulões. Mal tinha acabado de dizer a tua tia e já lhe aparecia um matulão que lhe deitava as mãos à goela.
– Bolas, avô… e o que é que fizeram?
– Não podíamos deixar o Tozé cair nas mãos do bandido e ir parar ao fosso.
– Pois, e eram três.
– Ah isso pouco importava, eles eram como gigantes.
O Chico gritou da janela para irmos ajudar e com todas as forças que tínhamos desatámos a correr Saraiva de Carvalho abaixo e mandámo-nos à pancada ao matulão. O Tozé mordia e esperneava para que não o atirassem para o fosso enquanto eu dava caneladas no matulão.
O gigante tinha certamente dois metros, ombros largos como cabides e uma pele escura de quem trabalhava há pelo menos 10 anos. Usava camisas de gente grande, daquelas sem alças com marcas de suor, e devia ter para aí 20 anos. A luta foi intensa: eu atirava-me às costas dele na esperança de o fazer tombar, enquanto o Manel lhe atacava os joelhos (tinham-nos dito que os gigantes caíam sempre pelos joelhos). Tudo improvisado já se sabe, nunca ninguém está preparado para enfrentar um matulão.
Depois de uma grande luta, lá conseguimos deitá-lo abaixo com um estrondo. O matulão admitiu a derrota e, mesmo quando ia a desferir o último golpe, olhei por acaso para o lado.
– Ah sim? E o que viste?
A menina mais bonita que já tinha visto. Era a menina dos olhos verdes de Campo de Ourique.
* Lisboeta de gema, dividido entre o Saldanha e Campo de Ourique, Francisco de Abreu Duarte é doutorando em Direito e Tecnologia, fotógrafo amador e viajante profissional. Viveu em Bona, Nova Iorque, Bruxelas e Florença. O coração esteve sempre em Santa Isabel onde passeava com o seu avô.
Parabéns Francisco Duarte, que ideia tão gira o teu avô iria gostar imenso destas crónicas. Grande beijo
Que bonito e que boa leitura se faz viajando no Tempo parabéns
Os matulões da Machado de Castro! Fez-me recuar uns bons anos. Passava por eles a caminho do colégio mas uma régua de madeira utilizada para o desenho acompanhava-me sempre pois se os matulões chegavam mais perto com piropos a régua funcionava. Fui professora de Matemática e nunca concorri para a Machado, traumas ou manias que ficaram? Não sei 😂
Grande escola de vida,tenho orgulho de por lá ter passado aprendi de tudo por lá com grandes Professores e bons colegas