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Quando as salas de espetáculo fecham portas, na rua, abrem-se janelas. Junto ao Instituto de Apoio à Criança (IAC), na Zona J, em Chelas, o entusiasmo fervilha. As crianças alinham-se em frente ao muro baixo da praceta, transformada em palco improvisado, para observar a performance que começa. Quem passa, curioso, para no passeio; outros, espreitam do conforto de casa. Mica Paprika, malabarista, lança o primeiro pino ao ar: seguem-se risos e boa disposição. Há dois anos que estas crianças não assistiam a um espetáculo, desde que a pandemia se instalou.

A performance é parte da 2ª edição do Festival PARApeito, que durante o mês de junho entreteve lares, escolas, hospitais e instituições sociais de Lisboa com espetáculos ao vivo. O objetivo? Levar a cultura a quem dela esteve ausente — sem quebrar o distanciamento social. O projeto é organizado pelo centro cultural Lugar Específico, na Alameda, e financiado pela Câmara Municipal de Lisboa. 

A ideia surgiu por necessidade: “Eu via os miúdos em casa e via amigos meus com os filhos a fazer anos fechados lá dentro, e só pensava: coitados! Que tristeza! Era tão fixe que eu pudesse enviar qualquer coisa à janela deles, uma animação”, relembra Susana Alves, curadora e produtora do festival. “Nessa altura, foi também o boom dos domicílios, entregas que chegavam a casa vindas de qualquer lugar. O PARApeito é isso: são pequenas atuações que vão a casa das pessoas. À porta, para serem vistas da janela.”

O artista Mica Paprika, que atuou na Zona J, em Chelas, no âmbito do Festival PARApeito, com produção e curadoria de Susana Alves, responsável pelo centro cultural Lugar Específico. Foto: Rita Ansone

O concurso da Câmara permitiu dar forma à visão de Susana e a primeira edição deste festival prête-à-porter chegou ao Instituto Português de Oncologia (IPO), Casa Acreditar, Hospital de Santa Maria e Hospital Pulido Valente, munida de artistas de circo e contadores de histórias. O nome é, como tudo o mais, uma brincadeira: parapeito significa um refúgio de trincheira, o limiar que suporta uma janela — ou um mimo “para o peito”, para quem dele mais precisa. 

Neste segundo ano, acrescentaram-se aos repetentes os centros sociais e lares de idosos da Sé de Lisboa, São Cristóvão e São Lourenço; o Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa (antigo Hospital Júlio de Matos); a FALO — Fundação António Luís Oliveira; o Instituto de Apoio à Criança (IAC) e cinco escolas do Agrupamento Nuno Gonçalves. Na Zona J, a tarde ventosa não impede Mica Paprika de girar os pinos bem altos no ar. É a segunda vez que o PARApeito visita o IAC no mês, mas a sede de contacto humano não se esgotou.

O Festival foi muito bem acolhido em zonas normalmente desprivilegiadas. Foto: Rita Ansone

Um festival porta-a-porta para apoiar as artes

Os primeiros a acolher a iniciativa foram, para espanto da organizadora, os locais mais resguardados: hospitais e casas de saúde. Em dezembro, o clima era de medo. “As pessoas estavam com uma bolha tão grande à sua volta que havia uma sensação de estranheza”, explica Susana.

“Fomos as primeiras pessoas de fora a entrar [na Casa Acreditar] desde março. Imagine-se: primeiro, aquilo já é um pesadelo. Não há nada pior que uma pessoa que é mãe imaginar ter o filho doente. E depois estar ali fechado, sem qualquer tipo de atividade que as retirasse dali. Essa performance foi muito emocionante, eu chorei do princípio ao fim, foi muito mágico.” 

Mas não eram só as crianças que precisavam de moral. Os artistas também estavam desanimados e os trabalhadores da cultura precisavam de trabalhar. O PARApeito assume como missão que as suas performances produzam algum impacto social em termos de arte-educação, que aproximem a cultura da comunidade, mas também que apoiem artistas, financeira e criativamente, numa fase de desamparo e fragilidade. 

Atuação em Chelas, nos últimos dias do festival. Foto: Rita Ansone

A escolha das apresentações para o festival refletiu essa urgência. Do open call da 2ª edição, foram selecionadas propostas com temáticas do corpo, da resiliência, de questões humanas e da memória, adaptáveis ao espaço exterior e ao curto tempo disponível.

Foram privilegiadas artes frequentemente esquecidas ou consideradas menores: em particular, o circo. Muitas vezes de fora dos apoios estatais ou dos palcos principais, os artistas de circo partilharam, nos fóruns da Ação Cooperativista (espaço de partilha e de luta para os trabalhadores da cultura durante a pandemia), as frágeis condições em que se encontravam. 

Artistas de circo, contadores de histórias, músicos e bailarinos de vários pontos do país acorreram à chamada às ruas e instituições de cariz social de Lisboa, para atuar para uma plateia invertida, na 2ª edição do festival. De entre eles, a companhia Coração nas Mãos, com a peça Rizoma, o Circo Caótico e Mica Paprika, artistas de circo; Elsa Serra e o Monstro Coletivo, contadores de histórias; o LAP – Laboratório de Artes Performativas e outros artistas experimentais. Foi no Lugar Específico que se processou esta escolha, pela mão da Susana e restante equipa. A arte e a educação passaram por aqui.

Um Lugar Específico, para arte e educação

Sentada numa secretária branca por detrás da montra envidraçada, Susana Alves desenrola o novelo de histórias que este lugar acarreta. Afinal, apesar de só ter dois anos, é o sonho da sua vida. “Antes, isto era um cabeleireiro”. Agora, é uma pequena loja bem iluminada, com uma cave que serve todos os gostos — faz as vezes de espaço de espetáculos, oficina de arte para crianças ou de galeria temporária —, e a ambição de se tornar num mini centro cultural de bairro. No fundo, é um Lugar Específico.

Susana Alves foi mediadora cultural até estabelecer-se por conta própria. Foto: Luzia Lambuça.

Depois de 12 anos a trabalhar como mediadora cultural para a Culturgest, mais uns dividida entre a Gulbenkian, Museu Berardo e outros “cromos” da caderneta cultural citadina, Susana viu-se a mãos com a tarefa de criar e dinamizar uma programação cultural própria. Mas, com a pandemia e o espaço fechado, o projeto, que ainda dava os primeiros passos, teve de se reinventar. Não fosse o nome “Lugar Específico” uma adaptação do conceito de site-specific, vindo da arte contemporânea, que significa um objeto ou instalação artística pensado de propósito para o lugar que ocupa, que com ele convive e a ele se adapta.   

“Nessa altura percebi que a batalha era grande: tinha de fazer a programação, criar uma atividade, dinamizá-la, depois não tinha inscritos… E ao mesmo tempo lançar [ideias e promoção], nós existimos!”, conta Susana.

“Com o pandemónio, o espaço fechou e por um lado foi um alívio. Eu pensei: pronto, agora não tenho de dinamizar o espaço, posso-me dedicar àquilo que eu sei fazer, que é criar projetos de mediação cultural e arte educação.” E foi assim que nasceu o PARApeito, como um projeto, também ele, de educação para as artes como forma de interação com o mundo.

Como o trabalho de uma mediadora cultural nunca acaba, é preciso saber o que o público retirou da experiência. Em cima da secretária branca, Susana espalha os desenhos que as crianças do Agrupamento de Escolas Nuno Gonçalves fizeram depois de assistir à peça Rizoma. Quase todos mostram a mesma imagem: uma mão solitária que se ergue de um grande vaso, virado de pernas para o ar. 

“Quando novos ou velhos podem ver um espetáculo assim, [cumprimos a nossa missão de arte educação]”, frisa Susana. “O artista de repente deixa de ser um alien para ser uma pessoa de carne e osso, que está ali junto. Eu acredito que essa semente fica. Talvez as pessoas fiquem com essa abertura, para depois aceder a um espaço cultural sem sentir estranheza.”

O último pino cai na praça

Do outro lado da troca, o feedback é igualmente positivo. Em Chelas, os responsáveis do IAC observam, junto das suas crianças, o espetáculo conduzido pelas mãos de Mica. “Já não tínhamos uma coisa assim aqui desde que começou a pandemia e que o festival esteve aqui, há duas semanas”, afirma Bruno Pio, da equipa de Serviço Social.

O artista Mica Paprika, antes de o vento interferir com a sua performance. Foto: Rita Ansone

O Instituto de Apoio à Criança é uma associação para a capacitação e integração de crianças e jovens em risco ou de famílias multiproblemáticas, que atua em bairros com cunho de intervenção social. O projeto Rua – Família para crescer é parte desta receita para a inclusão; mas as iniciativas de fora nem sempre abundam, lamenta Carlos Moreira, técnico de animação. “A energia é muito boa, sente-se o entusiasmo e eles também precisam”, diz. “É ótimo termos acesso a este tipo de iniciativas e era muito bom que [o Festival] continuasse mesmo depois da pandemia”. 

O projeto continuará? Na voz de Susana e do Lugar Específico, a resposta é clara: a vontade é muita, mas é preciso continuar a haver financiamento. Desta vez, o vento prega-lhe uma partida, e um pino de Mica cai no chão da praça. Das crianças levanta-se uma leve risota: mas não faz mal, a festa continua.


Luzia Lambuça é vilafranquense de coração e lisboeta por opção. É estudante de Ciências da Comunicação e está a estagiar na Mensagem de Lisboa ao abrigo da parceria Repórteres de Bairro. Este texto foi editado por Catarina Pires.  

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