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Quando poucos se aventuravam a usar a bicicleta como meio de transporte numa Lisboa ainda sem rede ciclável, João Pimentel Ferreira já o fazia. Nascido em 1980, viveu até aos 18 anos em Braço de Prata, antes de se mudar para o Parque das Nações.

Teve, desde cedo, um olhar crítico sobre a cidade, que pode ter começado quando era jovem e tinha dificuldades em encontrar lugar para jogar à bola com os amigos. Num ambiente dominado pelo automóvel, ou iam para longe ou jogavam num parque de estacionamento. “Estávamos sempre a fugir, porque de vez em quando a bola batia num carro e era um problema”.
Quando, mais tarde, começou a utilizar a bicicleta em Lisboa, “em 2007 ou 2008”, socorria-se do blogue pessoal para as suas observações críticas sobre a capital e a qualidade das poucas ciclovias que iam começando a aparecer. “Era uma forma de partilhar esses dilemas e esses desafios”.
Já considerava o automóvel um bem “oneroso”, sobretudo na cidade, com outras opções de mobilidade. Um dia, “num café com uns amigos de infância”, entre a conversa e a “simples aritmética”, chegou a uma conclusão: “a maior parte das pessoas não tinha a mínima noção de quanto é que na realidade custa um automóvel”. Naquele mesmo café, os amigos ficaram “escandalizados” quando se aperceberam de um valor “muito superior” ao esperado.

Os cálculos não eram assim tão difíceis, mas as contas que fazia iam buscar os custos, “escondidos”, que a maioria ignorava. Não é só a gasolina. Há lavagens e há limpezas. Paga-se o estacionamento, a portagem, a ocasional multa. A revisão, o IUC, os juros do crédito e, entre outros, esconde-se ainda a desvalorização do veículo.
“As pessoas acham que não é um custo, quando do ponto de vista contabilístico é um custo como qualquer outro. A pessoa perde aquele valor se depois quiser vender o carro”, diz. E todos os meses o valor cai.
Quanto custa ter um carro?
“Um carro não é um investimento, é um bem de consumo”, sublinha João. Ao fazer os seus cálculos, reparou que “não havia propriamente uma forma simples, prática, uma calculadora na internet que fizesse [as contas] de forma eficaz”. Munido dos seus conhecimentos de programação, avançou ele. Assim nasceu, em 2012, o Auto Custos.
“Já que o português médio não é muito rico, poderia ser um fator dissuasor saber quanto é que custa, mas não sei se foi eficaz”. Quis que a ferramenta tivesse um impacto real na cidade. “O propósito inicial era que as pessoas refletissem, de facto, sobre qual o custo total de ter um automóvel e pensarem que com esse dinheiro talvez pudessem investir em outras coisas”. João tem, contudo, “consciência de que para quem vive fora de Lisboa é muito difícil prescindir do automóvel”.

Entretanto, passada quase uma década, continuou a perder muitas “horas” no projeto e internacionalizou-o. Para além da página em português, o portal tem agora também endereço norte-americano e inglês e tradução para várias línguas, com os cálculos mensais adequados à realidade destes e de vários outros países.

A página que criou com estatísticas globais, evidencia que é em países como a Dinamarca ou Noruega que o custo mensal associado à posse de um automóvel é maior, sobretudo pela maior carga fiscal sobre estes veículos. Na Dinamarca, o custo anual de um automóvel é estimado pelo portal em 7248 euros. Em Portugal, o custo médio total é de 4003 euros. Por cá, uma pessoa “precisa de trabalhar três meses por ano para pagar o carro”.
“As pessoas sabem que o gastam, mas nunca fizeram a soma. É como os fumadores, que sabem quanto custa o maço de tabaco, mas não têm noção de quanto é que custa fumar por ano”.
Dos Países Baixos para o “estacionamento selvagem” de Lisboa
Apesar de uma ligação mais profunda ao lado oriental da cidade, João tem “uma ligação muito visceral a Lisboa”. Algumas das suas primeiras experiências profissionais levaram-no por alguns dos locais mais emblemáticos do município. Em 1997, trabalhou na construção do Atrium Saldanha como ajudante de eletricista e no ano seguinte foi maquinista de aparelhos lúdicos no Jardim Zoológico.
Em 2013, “altura da austeridade”, João foi dispensado. Era funcionário público. Uma oportunidade de trabalho levou-o a Delft, cidade dos Países Baixos onde vive desde então. É examinador de patentes, mas, nos tempos livres, os conhecimentos de programação adquiridos no curso que tirou no Instituto Superior Técnico permitem-lhe ter uma participação quase física no espaço público de Lisboa.
Depois do Auto Custos, partiu para o projeto seguinte. Em 2017, lançou uma aplicação móvel que agiliza a denúncia de ocorrências relacionadas com um problema que sempre identificou em Lisboa: o “estacionamento selvagem”.

Em cima de passeios, passadeiras, no meio de rotundas. Os automóveis mal estacionados fazem parte da paisagem urbana da cidade e são um obstáculo à mobilidade sustentável que João defende. Para ele, a denúncia é “um ato de cidadania e de participação cívica”.
Mesmo à distância, agiu. A aplicação móvel que desenvolveu, disponível para dispositivos Android (e com uma adaptação disponível para dispositivos iOS), agiliza o processo de participação: “Basta deparar-se com o carro mal estacionado, abrir a app, [que] deteta logo o local, a morada, o número da porta. Só temos de tirar a foto e selecionar o tipo de infração – se está no passeio, na passadeira, se está numa rotunda – e depois carregar num botão”. A app gera uma mensagem e a denúncia segue por email para as autoridades competentes.
O ponto 5 do artigo 170º do Código da Estrada foi o ponto de partida. Para João era a prova que faltava para avançar no desenvolvimento da aplicação: afinal, as autoridades poderiam levantar autos a partir de denúncias via e-mail.
A autoridade ou agente de autoridade que tiver notícia, por denúncia ou conhecimento próprio, de contraordenação que deva conhecer levanta auto
Artigo 170º do Código da Estrada
Bastam “20 segundos”. E garante que funciona: recebe relatos de “infratores [que] são autuados” e de pessoas que “perderam mesmo pontos na carta”. Instalada mais de 10 mil vezes, a aplicação está hoje ativa em mais de 2600 dispositivos móveis, tendo sido ponto de origem para o envio de 2505 denúncias em todo o país. Destas, 549 foram dirigidas diretamente à Polícia Municipal de Lisboa.

O trabalho de atualização da app veio possibilitar a colocação da chave móvel digital nas denúncias, elemento oficial de identificação que evita a deslocação do denunciante às autoridades, em casos em que este era chamado para autenticar a denúncia. “Quem tem a chave móvel digital, à luz da lei não precisa de se deslocar à esquadra”. Este é, contudo, um “constrangimento” que surgiu há pouco tempo, garante. “A polícia foi sempre complicando [a denúncia]”. Culpa do aumento das denúncias que a sua aplicação possibilitou, diz.
Mais recentemente, aventurou-se no lançamento de uma outra aplicação. À semelhança do que fazem portais como o Na Minha Rua, da Câmara Municipal de Lisboa, esta aplicação permite a submissão de ocorrências na via pública para várias autarquias do país.

Frederico Raposo
Nasceu em Lisboa, há 30 anos, mas sempre fez a sua vida à porta da cidade. Raramente lá entrava. Foi quando iniciou a faculdade que começou a viver Lisboa. É uma cidade ainda por concretizar. Mais ou menos como as outras. Sustentável, progressista, com espaço e oportunidade para todas as pessoas – são ideias que moldam o seu passo pelas ruas. A forma como se desloca – quase sempre de bicicleta –, o uso que dá aos espaços, o jornalismo que produz.
✉ frederico.raposo@amensagem.pt
Conhece outras aplicações úteis? Diga-nos quais:
Façam os cálculos com carros velhos e abaixo dos 5000 euros e vão ver baixar as custas anuais mesmo tendo em conta a manutenção.
Fiz essas mesmas contas e não gasto mais de 900 euros anuais.
Num país pobre, não podem ser usados dados de carros novos, são irrealistas. Além disso, todo o mundo sabe que a compra de um carro é um gasto a fundo perdido. E o mesmo só serve para colmatar o mau tempo, a falha de transportes, e principalmente o relevo acidentado. Isto não é a Holanda. A bicicleta tem como para-choques o corpo do ciclista.