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A cena revela seu verniz sacrossanto: cliente e funcionário ajoelhados, reverentes, diante de prateleiras repletas de garrafas de vinho do Porto, os rótulos enfileirados a compor um colorido mosaico, o vitral no altar de uma secular catedral no coração da Baixa Pombalina, consagrado não à sobriedade, mas aos prazeres da mesa.
Desde 1860, quando as memórias de Lisboa eram a preto e branco, a casa Manuel Tavares já coloria a retina e a rotina dos lisboetas ávidos por bons vinhos, queijos, enchidos e frutos secos. Uma tradição que começou com o homem que até hoje batiza a loja ao pé do Rossio, perpetuada com a merecida dedicação pelos novos donos.
Foto: Ana Luísa Alvim / CML
“Mais do que a tradição, o nosso esforço é para manter o espírito da Manuel Tavares”, reforça a gerente Clara Ladeira, que a partir do minúsculo escritório na cave do prédio, um misto de sacristia e casa de máquinas da “catedral”, aciona as rodas dentadas que não deixam as seculares tradição e espírito perderem a tração.
O Rosebud do “Cidadão João”
O ofício de Clara começou em 1993, quando a Manuel Tavares trocou de mãos pela primeira e única vez desde a abertura das portas. “Isto, há 28 anos”, contabiliza a gerente, os dedos ágeis a martelar 2021 menos 1993 nas teclas de uma calculadora, para não se deixar trair pela memória.

A calculadora e a folha de Excel são os fiéis escudeiros de Clara desde que o sogro, João Batista Pires, comprou a loja Manuel Tavares à família que a fundou e lhe confiou a missão de gerir uma das mais tradicionais “mercearias finas” de Lisboa, mas não só isso, também a missão de conservar as suas memórias de infância.
“O meu sogro em miúdo trabalhou nas lojas de Manuel Tavares”, revela a gerente, recorrendo novamente à calculadora, numa operação em que um dos fatores é a idade do sogro. “Isto foi há 60, 70 anos, e à época, havia outras casas espalhadas por Lisboa, mas o curioso é que o meu sogro não chegou a trabalhar nesta, no Rossio”, conta.
O atual dono chegou a trabalhar por trás do balcão de uma das lojas: mais do que um negócio, uma memória afetiva.
Quando comprou a casa, João Batista Pires já não era o miúdo de há 60, 70 anos, zeloso de ganhar a vida atrás do balcão das lojas Manuel Tavares, mas um bem-sucedido empresário do ramo da alimentação. A aquisição, portanto, nunca fora um mero negócio e envolvia um capital ainda mais valioso, incalculável até, o sentimental.
Clara sabe disso, sempre soube, que se o sogro era uma espécie de Citizen Kane do setor alimentar, a casa Manuel Tavares era seu o Rosebud. O fator afetivo foi o que a fez perceber que, para além da calculadora e das folhas de Excel, um negócio pode ser movido pelo motor das sensações.
A meca dos comes e bebes
Uma perceção que se traduziu numa fama que já cruzou as fronteiras de Portugal, a de Meca dos comes e bebes, destino obrigatório para os apreciadores do género. Já sob a nova direção, a Manuel Tavares coleciona galardões internacionais, o último deste ano, de uma das 50 melhores lojas de comida do mundo, segundo o Financial Times.
A fama internacional é o que fez o turista ajoelhar-se e ouvir o sermão do funcionário sobre como harmonizar um Porto com as demais iguarias da casa. Vendedores capazes de catequizar os clientes para que não incorram em pecado na hora da comunhão do vinho com o chouriço e o queijo é também uma das valias da casa.
E não apenas em relação aos clientes estrangeiros. “Como todo o comércio na Baixa, houve nos últimos anos um aumento na frequência de clientes estrangeiros, mas continuamos a atender bastante portugueses, em número maior até do que os que vêm de fora, durante a Páscoa e o Natal”, diz Clara.
Há uma cuidadosa curadoria na seleção dos produtos, preocupada com a qualidade, o sabor e a procedência.
É óbvio que uma fama não se mantém apenas com boas intenções. Há uma cuidadosa curadoria na seleção dos produtos, preocupada com a qualidade, o sabor e a procedência. E uma indisfarçável obsessão pela distinção, como no caso do Queijo da Serra – “certificado”, ressalta – um dos dez melhores do mundo, produzido em Seia.
“Temos o que há de melhor dos produtos, privilegiando dentro do que é possível, a produção de origem portuguesa”, resume a gerente. Afinal, convenhamos, não é fácil oferecer 42 variedades de amêndoas durante a Páscoa sem que um ou outro dos frutos secos tenha cruzado a fronteira.
Clara passeia pelas folhas do Excel e exibe a infinita lista de produtos disponíveis. Diplomática, prefere não mencionar marcas em específico, a fim de não provocar suscetibilidades. As exceções são os exóticos chouriços de veado e de javali, e os pernis “pata negra”, com lugar de destaque na apetitosa montra.
Entretanto, a joia da coroa da casa são os vinhos, cerca de quatro mil rótulos. “A nossa garrafeira é uma das melhores do país”, orgulha-se Clara. Entre eles, os “topo de gama” Barca-Velha e Pêra-Manca, que para além dos nomes que remontam uma antiga história de piratas, têm garrafas que podem custar pequenos tesouros.
Tesouros cobertos por finas camadas de pó
Nada que se compare ao vinho do Porto Messias que, apesar do minimalismo invocado pelo rótulo espartano – apenas a data da colheita, 1956 – costuma estar associado à nobreza de sabor e sensações de uma safra especial, além de um valor que nos questionamos o que pensaria o original messias a respeito: € 2.990,00 a garrafa.

A tarefa de fotografar a garrafa exige a logística de manuseio de um objeto de valor. Não só para retirá-la por detrás das grades numa área de segurança da cave, mas para preservar uma de suas mais importantes características: a espessa camada de pó que reveste o vidro e forma um véu claro sobre a superfície escura.
A casa orgulha-se de ter uma das maiores garrafeiras do país, com cerca de quatro mil rótulos
“O pó é extremamente importante”, explica Clara, sobre como o prosaico acumular do que é um pesadelo para o comum dos mortais, mas que funciona como uma espécie de pedigree no caso de produtos valorizados pelo passar dos anos. Uma rápida vista de olhos pela cave e constata-se o prejuízo que uma desavisada empregada de limpeza poderia fazer.
Clara olha o relógio na parede do escritório-sacristia. Tem de sair. Lembra que posso ficar à vontade, o tempo quiser, a percorrer a casa, viajar pelo tempo. Antes de partir, a gerente usa mais uma vez a calculadora e confere algo na folha de Excel. O trabalho não para. Sabe que a fama é frágil como uma fina camada de pó.

Álvaro Filho
Jornalista e escritor brasileiro, 50 anos, há sete em Lisboa. Foi repórter, colunista e editor no Jornal do Commercio, correspondente da Folha de S. Paulo, comentador desportivo no SporTV e na rádio CBN, além de escrever para O Corvo e o Diário de Notícias. Cobriu Mundiais, Olimpíadas, eleições, protestos – num projeto de “mobile journalism” chamado Repórtatil – e, agora, chegou a vez de cobrir e, principalmente, descobrir Lisboa.
✉ alvaro@amensagem.pt
Gosto muito da loja da R. da Betesga. Compro lá o “meu” presunto e o pessoal é simpático!