A Heloísa oferece consultoria em personal stylist e a Cláudia, em marketing digital. Já as explicadoras Tita e Mary podem ajudar nos TPCs das crianças. A Nara está disponível para a prática de conversação em inglês pelo WhatsApp, enquanto a Grace orienta na formatação de trabalhos académicos. A Gabriela escreve cartas de amor, mas se o problema é justamente não ter um amor para se oferecer uma carta, quem sabe a Eva não traz boas notícias do tarot.
Ancorada na filosofia da gift economy, o grupo Vai e Volta tem usado o Facebook para construir, a partir de Lisboa, uma rede de solidariedade em língua portuguesa. A ideia é que especialistas em áreas diversas partilhem conhecimento de forma gratuita entre os integrantes do grupo, mesmo que, na prática, esses serviços, tenham preços diferentes.
O grupo segue a tendência desenvolvida pelo matemático e filósofo norte-americano Charles Eisenstein, baseada na perceção de que um conhecimento não deve ser vendido, mas trocado por um outro conhecimento. Em português, “gift” foi traduzido para “dádiva” e, assim, cada membro do Vai e Volta, em vez de pagar por um determinado serviço, oferece uma “dádiva” em troca.
“Uma dádiva é qualquer serviço que envolva o meu tempo, geralmente relacionado com a minha atividade profissional, embora não seja obrigatório.”
Patrícia Martins de Andrade
Por detrás da intensa troca de dádivas está a brasileira Patrícia Martins de Andrade. Formada em Gestão Empresarial e em Direito, aos 57 anos Patrícia vive a reforma em Lisboa, mas não de braços cruzados. Inspirada no desejo de “levar a abundância de conhecimento onde ele falta”, Patrícia e mais três amigas criaram em julho de 2020 o grupo que, a partir das Portas de Benfica, liga brasileiros, portugueses, moçambicanos, cabo-verdianos e angolanos, espalhados em mais de 30 países.
“Gosto de pensar o Vai e Volta como o filhote de uma evolução da economia”, explica Patrícia. E essa “evolução” tem regras simples: para se tomar uma “dádiva”, é preciso oferecer outra em troca. “O conceito da gift economy entende como dádiva qualquer serviço que envolva o meu tempo, geralmente relacionado com a minha atividade profissional, embora não seja obrigatório”, esclarece.
Patrícia explica ainda que não há um número de limites de serviços de que cada integrante pode usufruir no grupo. “A única limitação envolve o tempo livre que o profissional dispõe para atender um dos membros. A depender da agenda, há quem só consiga oferecer uma hora por mês para uma pessoa, apenas”, diz.
Marketing digital e cartas de amor
Dois ou três atendimentos mensais é o limite possível para a consultora em marketing digital Cláudia Sá. Brasileira e filha de portugueses de Viana do Castelo, Cláudia vive em São Paulo, mas através do Vai e Volta tem prestado consultorias a membros do grupo em Portugal e até na Escócia. “Sempre dediquei parte do meu tempo ao trabalho voluntário e aceitei de pronto o convite para participar”, diz.

Cláudia já atendeu sete participantes do grupo e tem ainda uma “vasta lista” à espera. “Normalmente, faço quatro reuniões com cada um deles, entre a avaliação de um diagnóstico, a elaboração de um plano estratégico e consultorias adicionais”, explica a paulistana, de 37 anos, que em troca pelos seus serviços tomou em troca uma “dádiva” em constelação familiar, realizada por uma profissional portuguesa.
Também brasileira, mas a viver em Lisboa, a jornalista Gabriela Abreu, 27 anos, tem se oferecido para escrever cartas de amor aos integrantes do grupo. O texto romântico segue numa “carta virtual”, com um layout criado pela própria Gabriela, para o interessado imprimir e enviar à pessoa amada. Entretanto, aparentemente, o romance não está tão em alta como os segredos das redes sociais.

“Só escrevi duas cartas até agora e estou a escrever a terceira”, conta Gabriela, rindo-se da falta de popularidade das cartas de amor em tempos de Messenger e WhatsApp. Em troca, a jornalista, que organiza quinzenalmente o debate feminista Sarau Delas, em Campo de Ourique, tomou como “dádiva” uma leitura de tarot.
A angolana Njiza Rodrigo da Costa também atendeu apenas três pessoas do grupo, mas por pura falta de tempo. Coach bastante requisitada nos meios corporativos, Njiza decidiu abrir espaço na sua concorrida agenda seduzida pelos propósitos da gift economy. “Acredito que esse mito da escassez tem que acabar. O que há, mesmo, é muita acumulação”, explica.
A viver desde os 3 anos em Lisboa, Njiza tem ajudado empresas e profissionais liberais a encontrar fórmulas para superar os desafios no trabalho e também na vida profissional. Como costuma receber novos clientes através de recomendação dos antigos, ela aproveitou a experiência no Vai e Volta para experimentar a vivência digital.
“Acredito que esse mito da escassez tem que acabar. O que há, mesmo, é muita acumulação.”
Njiza Rodrigo da Costa.
“Só consegui estar disponível para fazer uma consultoria em grupo e outras duas individuais”, conta a coach de 45 anos, que no período de confinamento buscou por tranquilidade na Beira-Baixa e tem atendido através de sessões virtuais. As facilidades das ferramentas digitais, entretanto, não se traduziram numa agenda mais livre. “Ainda não consegui tomar a dádiva que gostaria, pois, o meu desafio maior ainda é encontrar tempo.”
Autoconhecimento e solidariedade
Patrícia Martins Andrade espera que o tempo aumente o envolvimento das pessoas no grupo que administra, hoje com cerca de 2 mil participantes, a maioria (60%) de brasileiros, muitos a viverem em Portugal, seguidos por portugueses (30%) e moçambicanos (9%).

Apesar da oferta de serviços de campos profissionais mais “clássicos”, o Vai e Volta costuma atrair mais especialistas das áreas ligadas ao autoconhecimento. “O que é natural, pois são pessoas que normalmente vibram no tom da gift economy, já acostumadas a partilha do saber”, explica Patrícia.
Prestes de completar o primeiro ano de existência, Patrícia espera que o Vai e Volta alcance o equilíbrio em breve, o que seria um sinal de que setores tradicionais da sociedade e acostumados ao paradigma do “valor da hora de trabalho” estariam mais sensíveis à perceção de que não há um tempo que valha mais do que outro, e sim, de que é tempo de sermos mais solidários uns com os outros.

Álvaro Filho
Jornalista e escritor brasileiro, 50 anos, há sete em Lisboa. Foi repórter, colunista e editor no Jornal do Commercio, correspondente da Folha de S. Paulo, comentador desportivo no SporTV e na rádio CBN, além de escrever para O Corvo e o Diário de Notícias. Cobriu Mundiais, Olimpíadas, eleições, protestos – num projeto de “mobile journalism” chamado Repórtatil – e, agora, chegou a vez de cobrir e, principalmente, descobrir Lisboa.
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