Tenho muitas saudades de uma boa noite de copos.

Nunca fui um grande apreciador de discotecas. A noite de Lisboa passou-me largamente ao lado, não sou cara conhecida nem habitué de sítio nenhum, não tenho muitas histórias no Lux ou no Urban, e não conheço os bares do Bairro Alto como a palma da mão.

Quando saí à noite, fui para onde me levaram os amigos que gostavam da noite. Primeiro, acabado de fazer dezasseis, no Loft e no ABS – saltei o célebre Garage, onde julgo nunca ter entrado. Recordo-me, dessas noites, sobretudo das esperas na fila e do medo de ser barrado à porta por algum porteiro que, guiado por critérios não raras vezes insondáveis, decidisse não ir com a minha cara. Os pequenos poderes da noite agoniavam-me e eu preferia ficar em casa a deixar que algum careca de maus modos me dissesse que eu não estava bem vestido o suficiente para entrar num sítio onde o chão já colava às solas dos sapatos.

Depois fui a muitos outros sítios da moda, sempre esporadicamente, quase só para conhecer. Não guardo muitas memórias extraordinárias. A roupa terminava inevitavelmente impregnada de fumo que eu não fumei e de álcool que eu não bebi.

Sei que estou a dar uma imagem de chato, mas tenham paciência comigo.

Expliquei sempre para mim este desafeto às discotecas com o facto de não dançar bem. Durante muitos anos, a minha insegurança juvenil levou-me a crer que eu não gostava de fazer coisas nas quais não era bom. Hoje ainda danço mal, mas importo-me menos.

E tenho mesmo saudades de uma noite de copos. As discotecas diziam-me pouco, sim, mas os copos antes das discotecas são outra história. O encontro com os amigos nas ruas do Bairro ou do Cais, a conversa e a risada, o deixar para trás o dia, a semana, aquele formigueiro atrás dos olhos depois da sétima imperial, os abraços aos conhecidos, também já meio baços, que não víamos há anos e cumprimentávamos com mais efusividade do que a justificada. Disso tenho saudades.

Algumas das minhas melhores memórias na noite são passadas no meio da rua, com amontoados de gente nos passeios. Como aquela noite no Cais, em que depois de cantar Arctic Monkeys numa sessão de karaoke no Viking, um amigo impressionou uma celebridade que encontrámos à porta com o seu conhecimento da expressão “grandes seios” em todas as línguas do mundo (soubemos mais tarde que ele inventou metade das que exibiu). “Brian, top marks for not trying”.

Tenho saudades das noites dos Santos Populares, não daquela confusão toda em que ninguém se mexe e ninguém vai a lado nenhum, mas de encontrar a minha malta, do cheiro a sardinha, de ouvir pianolas a tocar funk e artistas populares a cantar músicas brasileiras com sotaque português. “Quero que você me aqueça nesse inverno e que tudo mais vá pro inferno”.

Tenho saudades de gente ao molho, eu que nunca gostei de gente ao molho, a cantar o Homem do Leme dos Xutos e Pontapés como se estivéssemos num estádio, apesar de estarmos só numa rua estreita da Bica, cheia de andaimes de onde balançam colunas de som. Não sei se há muitos povos que aproveitem estas noites de desbunda para relembrar grandes baladas aos altos berros, mas eu lembro-me de estar algures na Graça a ouvir um monte de gente a cantar Adelaide Ferreira em uníssono, e foi lindo. “Dava tudo para te ter aqui, ao pé de mim, outra vez”. E dava.

A noite é o espaço por excelência da confissão e do desabafo. Quem nunca disse à noite coisas que teve medo de dizer de dia que atire a primeira pedra. Há partes da amizade que só se forjam depois do jantar, e desconfio muito da genuinidade de relações que ainda não se batizaram numa noite de copos. Se a pandemia acabou com a noite, de que são feitas as amizades recentes?

Numa série que guarda muito conhecimento da vida – e muita coisa que devíamos esquecer – o personagem principal diz-nos que nada de bom acontece depois das duas da manhã. Eu nunca fui de ficar até muito tarde: até às duas houve sempre muita noite para aproveitar. Mas verdade seja dita: das duas para a frente, estando com amigos, enfrenta-se tudo. É esse tudo que se enfrenta junto que traz as histórias que hoje lembro.

Junho aproxima-se e eu tenho bilhete comprado para Lisboa. Há muitos cuidados a ter, claro. Há medo no ar. A responsabilidade de não desfazer o tanto que já andámos vai manter a noite refém, açaimada, uma noitinha. Mas a minha gente está por lá, com tanta fome de vida como eu. Já a ouço a chamar. Queremos ir dançar onde houver música e espaço para todos. Levo a máscara, o gel, o teste negativo e os anticorpos que ganhei com a doença.

Este verão ninguém me tira umas noites de copos em Lisboa, ainda que “cada um no seu quadrado”. Quem se junta?


João Marecos

Chegou a Lisboa no preciso segundo em que chegou ao mundo. Aqui cresceu, fez amigos, estudou Direito, tornou-se advogado, antes de a curiosidade o levar para Nova Iorque, onde repetiu tudo isso. Escreveu um livro, que apresentou no Chiado. Fundou o 100 Oportunidades à beira do Tejo. É o amor que o mantém fora de Lisboa, será o amor a fazê-lo voltar.

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