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A minha primeira experiência com uma casa de fados foi aos dezassete anos, quando um grupo de amigos me levou ao “Nove & Tal”, ali a Santa Isabel. Não foi a minha primeira experiência com fado ao vivo, porque tive a sorte de o ouvir várias vezes em casa, em algumas tertúlias organizadas pela minha mãe.
Bom, na verdade, talvez nem tenha sido a primeira, dado que os meus pais eram assíduos frequentadores dos retiros fadistas da época. Aliás, o meu pai – então conhecido como Tó Sallatty – chegou a ser sócio do saudoso José Pracana, no Arreda, em Cascais, local amplamente frequentado pelas celebridades do Fado (Amália Rodrigues, Alfredo Marceneiro, entre muitos outros) e não só.
Claro que isto foi antes de eu nascer, talvez um pouco depois (o meu pai deixou o Arreda em 73), mas para o caso não interessa. Acho mesmo que o ambiente das casas de fado, se isso fosse possível, me corre nas veias.
Profissionalmente estreei-me aos dezoito, no Restaurante São Caetano (antigo Pátio das Cantigas), na Lapa. Ali convivi com grandes músicos e cantores e comecei, verdadeiramente, a aperceber-me da importância destes locais na aprendizagem de qualquer artista.
O Fado, sendo fundamentalmente um género musical de tradição oral – para quando o ensino das suas diversas vertentes em escolas de música, conservatórios e afins que, salvo raras exceções, continuam a olhar de esguelha para a “canção nacional”, talvez por a considerarem um género menor? –, vive destes convívios e partilhas entre gerações.
Costumo dizer que muitos dos meus amigos eram mais velhos que os meus pais, pois constituíam, nessa altura, a grande maioria dos frequentadores das casas de Fado. O número de jovens da minha idade com que me cruzava era tão reduzido, tão reduzido, que éramos vistos como uma curiosidade. Mais, entre os meus amigos, eu era um ser estranho, que gostava de música “para velhos”. Felizmente isso mudou e a realidade agora é bem diferente.
Depois da experiência enriquecedora no São Caetano, recordo as belíssimas noites de Fado no Amália “Clube de Fado”, na Quinta da Bicuda, em Cascais. Este foi um verdadeiro viveiro de artistas de uma geração que então despontava: Pedro Moutinho, Mafalda Arnauth, Miguel Capucho, Margarida Guerreiro, entre muitos outros.
Mais que isso, convivíamos quase diariamente com artistas de outras gerações como Manuel de Almeida (um verdadeiro gentleman e um amigo que guardo carinhosamente na memória), Carlos Zel (outro amigo que já partiu e de quem guardo recordações maravilhosas), João Braga (que apadrinhou tantos e bons fadistas ao longo dos anos, convidando-os a participar nos seus concertos aquém e além-fronteiras…e com quem tanto aprendi) e músicos como José Luís Nobre Costa, Tó Moliças, Jaime Santos Jr., entre tantos outros. Foram tempos de enorme aprendizagem e crescimento que deixaram saudades a muitos artistas da minha geração.
Mais tarde, com a reabertura da Taverna do Embuçado, pelas mãos da querida Teresa Siqueira, tive a sorte de partilhar experiências com a magnífica Beatriz da Conceição, a doce Celeste Rodrigues, o meu amigo Hélder Moutinho, para além da proprietária, claro está. Ali conheci uma ainda muito, muito jovem Carminho e convivi com músicos como Fontes Rocha, Francisco Perez Andión (o Paquito), Carlos Gonçalves, entre tantos e tão bons mestres.
Depois, nos últimos vinte anos, tive a honra de fazer parte do elenco do Clube de Fado, que pertenceu até há pouco tempo ao meu querido Mário Pacheco, e onde vivi alguns dos momentos mais importantes da minha vida profissional e até pessoal. Era e é uma das grandes referências no panorama cultural de Lisboa.
Para que vos conto agora tudo isto?
Porque é fundamental que se entenda a importância fulcral que as casas de Fado desempenham no crescimento e na aprendizagem de alguém que se queira aventurar nesta arte secular, que dignifica e promove a cultura do nosso país por todo o mundo. Diria mesmo que é impossível entender-se esta linguagem tão própria, esta forma de estar na música – e na vida, por que não? – sem frequentar assiduamente estes espaços de culto.
Mas importante mesmo é saber ouvir. Ouvir os cantores, os músicos, as dinâmicas entre estes e com os fadistas, as histórias, as curiosidades, as lendas, as teorias. Mas não só. O Fado tem uma “tribo” muito própria, com características e comportamentos que, não sendo demasiado diferente de outras, tem especificidades distintas de tudo o que conheço.
É também muito importante compreender a sua essência, os personagens que a rodeiam e a significância que têm também para o próprio Fado, como se este fosse uma árvore que se vai alimentando de toda uma rede de cantores, músicos, poetas, letristas, compositores, seguidores… e todo este fascinante mundo ganha forma na casa de Fado!
Agora que me aventurei – com o meu querido amigo e talentosíssimo guitarrista Luís Guerreiro – na abertura da minha própria casa de Fados, o que quero é, acima de tudo, prestar um sentido tributo a todas estas pessoas e locais que me marcaram profundamente, pessoal e profissionalmente.
Quero contribuir para a dignificação deste género musical, promover e apoiar as novas gerações de músicos e fadistas e trazer de volta os portugueses, que – muitas vezes de forma injusta – consideram as casas de Fado locais caros, preparados exclusivamente para turistas. Nada mais falacioso. Caro é algo cujo preço é excessivo para o que se está a consumir.
Numa casa de Fados pode assistir-se a um espetáculo de qualidade, enquanto se degusta boa gastronomia, com um serviço cuidado. Experimentem fazer as contas a um bilhete para um espetáculo de uma qualquer banda, juntar-lhe um bom jantar e verão que ir a uma casa de Fado é, na verdade, uma experiência barata e bem mais confortável! E são muitos e bons os exemplos que podem ser encontrados em Lisboa.
Espero fazer justiça a toda esta comunidade que tanto me tem acarinhado ao longo destes mais de trinta anos de Fado.

Rodrigo Costa Félix
É lisboeta, fadista com trinta anos de carreira, letrista, produtor, agente e coproprietário do restaurante Fado ao Carmo. Tem quatro discos editados, vários prémios e distinções – nacionais e internacionais – e uma vida inteira dedicada à promoção e divulgação da “canção de Lisboa”.
Não frequentar essas casas de Fado para aprender
é o mesmo que ir para a faculdade sem fazer a primária.
Só que eles não acreditam.
Parabéns Rodrigo!
Que privilégio poder ser esse jovem com amigos mais velhos e tão especiais! Que privilégio essa aprendizagem e essa vontade de partilhá-la. Parabéns!