A francesa Catherine Morisseau trocou Paris por Lisboa há pouco mais de duas décadas. Trouxe na bagagem um diploma em História da Arte, uma folha de papel com o selo da Sorbonne que nunca saiu da mala. O diploma sempre fora ideia dos pais, inseguros com o sonho de a filha de ser pianista. O pai e a mãe ficaram em França e na cidade nova, na vida nova, Catherine iria tratar de realizar o seu sonho.
Havia, antes de tudo, um prazo. “Aterrei com o bilhete de regresso marcado. Tinha dez dias para conseguir um trabalho. Era isso ou voltar”, lembra a pianista, o filme dos primeiros dias em Lisboa refletido nos seus olhos verdes. Não precisou de tanto. “No quarto dia, sugeriram-me ir ao Clube dos Empresários e lá fui.” O patrão confirmou, precisavam, sim, de alguém para tocar ao piano. E imediatamente.
Ao quarto dia, Catherine tocou pela primeira vez. Só tinha repertório para cerca de uma hora de apresentação, mas o patrão não quis saber. Estava a gostar. “Repete, repete”, insistiu, gesticulando, as mãos da francesa nas teclas, o aperto de mãos entre os dois no final. Era oficial, era uma pianista. Já não iria mais voltar.
“Aterrei com o bilhete de regresso marcado. Tinha dez dias para conseguir um trabalho. Era isso ou voltar.”
Catherine Morisseau
Essa é apenas uma das tantas histórias da francesa em Lisboa, todas saídas da partitura de uma alegre sinfonia, ao mesmo tempo uma tentação e um desafio para quem pretende contá-las. A mais recente delas é também a mais curiosa: a de Catherine e o seu piano itinerante, a girarem pela cidade no dorso de uma carrinha.
Concertos e consertos na primeira viagem
A primeira vez que o piano de Catherine deambulou pelas ruas de Lisboa foi para animar a exposição do amigo Jorge Rivotti, em 2014. O pormenor era que o piano em questão decorava o hall de um hostel no Rossio e a pianista e o artista tiveram a brilhante ideia de transportá-lo até a galeria, na Graça, sobre uma carrinha.

Antes, foi preciso convencer três ou quatro incautos peões que saíam da estação de comboios a fazerem subir o pesado instrumento para o veículo. Elegeram para a abordagem uns tipos “que pareciam ir ao ginásio”, conta Catherine. E conseguiram. Superado então o primeiro obstáculo, partiram do Rossio à Graça, o Jorge a conduzir e a Catherine sobre a carrinha, a equilibrar-se junto ao piano.
Foi aí que, subitamente, a pianista francesa decidiu tocar.
Parecia o plano perfeito: os acordes do piano em harmonia com a campainha dos elétricos, para o espanto e deslumbre dos transeuntes. Isso até o Jorge desafinar na manobra e embater num veículo estacionado. “O outro carro ficou bastante amassado. Entrámos em pânico, mas não podíamos esperar, havia a exposição, deixámos um bilhete com os nossos contactos e a pedir desculpas”, conta.
O incidente logo na viagem inaugural poderia ser um sinal de que a ideia de um piano itinerante a subir e descer as ruas de Lisboa sobre uma carrinha não era lá muito prudente. Até que, no outro dia, o dono do carro amassado ligou. “Ligou para agradecer”, revela a pianista.
“Disse que o veículo estava parado há um tempo, avariado, e que não tinha dinheiro para o pôr novamente a andar. Com a colisão, entretanto, o seguro iria cobrir os reparos”, lembra Catherine, a sorrir do dia em que as palavras concerto e conserto finalmente puderam ser aplicadas à mesma situação.
A centenária professora de piano
Entre a estreia no Clube dos Empresários e as itinerâncias com o piano, Catherine tocou bastante: foi pianista nos palácios de Seteais, Queluz e Foz; professora na American School of Lisbon; fez parte da “mini big band” Moi Non Plus; além de protagonizar uma infinidade de concertos a solo em festivais por Lisboa e pelo país.

A carreira consolidada como pianista motivou-a a ligar para a primeira professora, a pianista Colette Maze, que anos antes passara tardes ao lado da adolescente Catherine, na companhia daquele mesmo piano que decorava o hall de um hostel no Rossio. “Ela sempre acreditou em mim. Dizia que tinha talento, que não ouvisse o que os meus pais diziam”, conta.
As duas já não se falavam há décadas, mas a aluna recordava-se onde mademoiselle Maze vivia, vizinha da Torre Eiffel. Em 2015, numa ida a Paris, resolveu visitá-la. Catherine não escondia uma certa ansiedade sobre o estado de saúde da antiga professora, há bastante tempo reformada. Tanto que, quando tocou à campainha, a primeira coisa que perguntou à porteira, meio à queima-roupa, foi: “Está viva?”.

A porteira era portuguesa e o insólito diálogo em português ao pé da mítica torre de ferro terminou com a informação de que, sim, a madame estava viva. Tão viva que, aos 99 anos, havia acabado de lançar um disco. “Foi um encontro formidável. Lembrámo-nos das nossas aulas, ela ficou feliz por saber que me tornara pianista e convidou-me para o centenário dela, no ano seguinte”, lembra.
Catherine atendeu ao convite e, um ano depois, flutuava sobre o Sena a bordo de um bateau, com os demais convivas do centenário de mademoiselle Maze. “Desde então, para não ter surpresas, conversamos por telefone uma vez por mês”, conta. Na última chamada, soube que a eterna professora, aos 106 anos, a caminho do 107º aniversário, acabara de lançar o quinto disco.
Música em protesto e concertos rurais
Catherine também se preparara para um novo disco, ainda sem título, na sequência do primeiro, Myriades, de 2018. O segundo trabalho manterá o tom intimista, embora a pianista pretenda inserir acordes não tão clássicos assim. “Tenho aprendido música eletrónica, mas daquelas fortes, mesmo, e pretendo usar”, revela a francesa, dando continuidade à carreira cada vez mais experimental, mais livre.
Em 2012, Catherine estreou na Fábrica Braço-de-Prata os Concertos Deitados, onde o público se deitava no chão para ouvi-la ao piano, enquanto imagens eram projetadas no teto. Em paralelo, iniciavam-se as séries de cine-concertos, nos quais compõe peças para acompanhar as peripécias no ecrã de Chaplin e Buster Keaton, em festivais, eventos públicos e na Cinemateca de Lisboa, onde é pianista residente há mais de uma década.
Além dos concertos e cine-concertos – sentados, em pé ou deitados – Catherine tem intensificado os passeios com o piano itinerante, seja como parte dos próprios eventos ou quando é convidada a participar em manifestações. Numa delas, há três anos, alguém a alertou para consultar previamente a polícia sobre se podia levar um piano numa carrinha para um protesto. Catherine decidiu então enviar um e-mail para a esquadra.
Recebeu como resposta o pedido de conversa ao telefone, pois não percebiam bem a proposta. “Daí pensei que teria problemas, mas ao ligar, o polícia ouviu-me e disse apenas que amarrasse bem o piano à carrinha e ainda perguntou se precisava de proteção policial”, conta. A francesa sugeriu que dois polícias seriam suficientes e a dupla efetivamente compareceu ao concerto na manif. “Um dia depois, voltaram a ligar-me da esquadra para saber se tudo havia corrido bem”, lembra, entre risos.
A pandemia pôs um travão nos giros da carrinha e Catherine passa os dias a cultivar uma horta na varanda da casa onde vive, em Alfama. Na sala de estar, em vez dos tradicionais móveis, de mesas e cadeiras, um piano de cauda reina no espaço, ladeado por vastas plantas tropicais, cujas raízes se espalham pelo assoalho. É neste singular espaço que compõe, pratica e dá aulas a crianças.
A pianista francesa que escolheu Lisboa para viver já se prepara, entretanto, para voltar a conviver com Chaplin e Buster Keaton na Cinemateca, além de ter convites para futuros compromissos. Enquanto isso, tem levado o piano para passear na quinta de uma amiga, em Paiões, nos arredores do Cacém, onde promove concertos campestres para uma atenta plateia composta por… cavalos.
Coisas de quem aprendeu que para tocar piano basta ter as mãos no teclado, a música no coração e os pés e a cabeça bem distantes do chão.

Álvaro Filho
Jornalista e escritor brasileiro, 50 anos, há sete em Lisboa. Foi repórter, colunista e editor no Jornal do Commercio, correspondente da Folha de S. Paulo, comentador desportivo no SporTV e na rádio CBN, além de escrever para O Corvo e o Diário de Notícias. Cobriu Mundiais, Olimpíadas, eleições, protestos – num projeto de “mobile journalism” chamado Repórtatil – e, agora, chegou a vez de cobrir e, principalmente, descobrir Lisboa.
✉ alvaro@amensagem.pt
Uauuu, mesmo. Que texto fantástico!!! Não vejo a hora de poder assistir, nas belas ruas de Lisboa !