Foto: D.R.

Lionel, nascido no sul de França, estava cansado de Paris. Ainda viveu nos EUA, aprendeu inglês, conheceu pessoas diferentes, mas continuava a sentir que também não era ali que queria ficar. Em junho de 2019 viajou para o Porto, a trabalho, e desceu à capital para se encontrar com alguns amigos. Lisboa ficou-lhe atravessada. Queria voltar.

“Uma cidade cheia de pessoas, de energia, de alegria. Incrível”, lembra-se. Como nómada digital a trabalhar na indústria de software, poderia ter escolhido viver em qualquer parte do mundo, mas onde encontraria este spot perfeito: uma cidade nem muito grande nem muito pequena, internacional, com sol o ano inteiro, natureza muito perto, o oceano mesmo ao lado e onde se pode caminhar seguro pelas ruas? Lisboa, para estes estrangeiros já de alma lisboeta a despontar, tem tudo. Veio, em março de 2020. No estalar da pandemia.

O francês Lionel estava farto de Paris e Nova Iorque quando veio para Lisboa, em plena pandemia. Foto: D.R.

“Lisboa é tudo isso, e era tudo isso que eu queria”, diz. Está a aprender português e a equilibrar-se em cima de uma prancha de surf. Que a pandemia acalme, para voltar ao mar, é o que Lionel mais deseja, nem um bocadinho zangado por ter chegado em março do ano passado, uma semana antes de o país fechar. “Ainda encontrei os bares do Bairro Alto abertos, as ruas cheias de gente”. Traz ainda o sal do mar do verão passado na memória. E é em Lisboa que vai continuar.

Cody Candee é um dos filhos de Silicon Valley. Foi nesta região da Califórnia, conhecida por ser um ninho de inovações tecnológicas e científicas, que deu gás à Bounce – uma plataforma de armazenamento de bagagens que serve como uma luva a uma cidade como Lisboa. Cody só ainda não o sabia. Já conhecia a capital portuguesa, como turista, e tinha ficado com o endereço gravado no sítio dos sonhos.

Quando a pandemia chegou – e explodiu com força nos EUA – os planos de Cody não se atrasaram, antes aceleraram. “Portugal era um dos melhores países para continuar a viver – havia poucos casos e o país ainda estava aberto”, recorda.  Já tinham decidido [ele e o sócio] que o negócio teria de vir para a Europa. “Era muito importante termos um escritório numa cidade europeia e Lisboa pareceu-nos a melhor. Eu acho que Lisboa é a próxima Berlim”, vaticina Cody.

De Silicon Valley ao Cais do Sodré

“Em março do ano passado perdemos 99,9 por cento dos nossos clientes porque as pessoas não podiam viajar”, lembra. Foi um golpe duro, principalmente porque nada poderia prever o surgimento de um vírus que fechou fronteiras e fechou o mundo em casa. Cody, contudo, não desanimou. Aterrou em Lisboa em outubro de 2020, escolheu um alojamento local de longo termo para morar e escolheu-o no sítio melhor para quem quer conhecer gente nova: o Cais do Sodré. Mas as ruas estavam silenciosas e vazias de gente.

Cody Candee não mudou os seus planos de vir para Lisboa com a sua Start Up. Foto:D.R.

A Bounce é incubada da Startup Lisboa, ali à Rua da Prata, e foi nessa rua que o norte-americano arrendou uma enorme cave que é o escritório europeu da empresa e também um dos locais onde os viajantes podem deixar as suas malas e percorrer a cidade sem preocupações. As pessoas irão voltar, por isso o sonho de Cody prossegue.  

“Aquilo que eu quero, aquilo que queremos, não é só implementar um negócio, mas também criar uma nova cultura de trabalho: somos uma família, quero que trabalhar seja uma fonte de alegria”, explica. E nem a covid-19 ou os labirínticos corredores burocráticos portugueses esmorecem o sorriso de Cody e a sua vontade de continuar. “Já chegámos há oito meses e até já contratámos três portugueses para a nossa empresa – dois engenheiros e um operacional. Mas ainda não temos todos os documentos necessários”, conta. De vários cantos do mundo, quem trabalha com Cody manifesta vontade de se juntar a ele em Lisboa. “Já tenho pedidos de França e do Bangladesh”, diz, sem estranhar. Para Cody Candee, “Lisboa é ‘O’ sítio para se estar”.

Tal como Cody, o britânico Thomas Breslin também passou por Silicon Valley onde trabalhou vários anos na Google e no YouTube. Avogado especializado na área dos direitos de autor musicais, sentia-se “engolido”, não pela profissão, mas pelo frenesim incessante das grandes cidades da América. Decidiu que a vida tinha de ser mais simples e que já era hora de pôr em prática o seu maior sonho: criar uma startup que servisse quem mais admira: os músicos.

Com o Brexit tudo se precipitou. A Europa era o objetivo e Lisboa foi a cidade escolhida depois de ter participado na nona edição do programa da Startup Lisboa “Launch in Lisbon” dirigido a empreendedores estrangeiros que querem fazer da capital portuguesa o centro do seu negócio.

Thomas e a mulher já com raízes em Portugal.

O programa ajudou-o a tomar a decisão e chegou à cidade com a mulher, música (toca contrabaixo), e as duas filhas, de seis e sete anos, no verão passado. Chegar a Lisboa foi como ouvir a canção mais bonita. “Poder olhar o rio de casa, esta luz, esta cidade antiga… não há muitas cidades na Europa como Lisboa. Cada vez gosto mais dela”, confessa.

A sua startup ainda dá os primeiros passos, mas Thomas já fixou raízes em Portugal – comprou uma casa na Aldeia de Juzo, em Cascais, onde pretende ficar “para sempre”, confessa o britânico a quem os amigos chamam “um dos heróis anónimos da indústria da música”. Ele não nos disse, mas nós descobrimos…

Um programa para quem chega e quer investir

A capital portuguesa tornou-se o lugar de destino de tantos nómadas digitais que a Startup Lisboa, uma associação sem fins lucrativos que tem a participação da Câmara Municipal de Lisboa, lançou um programa, em 2017, chamado Launch in Lisbon, precisamente para apoiar quem chega e quer fazer da cidade casa e centro do seu negócio.

Thomas Breslin participou na 9ª edição do programa, em junho de 2020, e foi assim que tirou todas as dúvidas legais sobre como lançar aqui a sua startup e decidiu escolher Lisboa de entre todas as outras opções europeias. A próxima edição, que será digital, está marcada para os dias 16, 17 e 18 de junho.

Em nove anos, o programa tem ajudado empreendedores, investidores e empresas que querem instalar-se em Lisboa. Como? Ao disponibilizar orientação profissional e uma rede profissional que inclui especialistas em questões legais, financeiras e de consultoria.

A maioria daqueles que escolhem Lisboa como centro dos seus negócios chega do Brasil, EUA, Reino Unido, França e Alemanha, segundo dados do próprio programa. Mais homens (71%) do que mulheres (29%) e em diferentes fases do negócio: 43 por cento querem expandi-lo (para a Europa, sobretudo), 33 por cento querem desenvolver aqui o projeto e 24 por cento partem do zero – da ideia original.

Entre as principais motivações para escolherem a capital portuguesa estão, segundo os mesmos (as perguntas foram feitas durante o programa): o acesso a talentos (Cody Candee disse estar interessado em contratar mais portugueses, uma vez que são “altamente qualificados”), o ambiente pró-inicialização (sentem-se bem vindos); o estilo de vida; as oportunidades de negócios, sobretudo na área das startups; os incentivos governamentais e esforço para atrair empresas tecnológicas e o baixo custo operacional.

Contras também existem. São principalmente a dificuldade em entender a burocracia portuguesa, o networking e a dificuldade em obter investimento.

Adeus, Brexit, olá, Lisboa

Erin Joy, australiana, criada em Hong Kong, segura o pequeno Cas, de quatros anos, em cima dos joelhos, numa tentativa vã de o sossegar. Lá fora chove, e o miúdo já desenhou todos os animais de que se lembra, e foram muitos os que viu em África.

Erin, Simon e Cas chegaram a Lisboa em setembro último, mas tinham voo marcado para maio. “A viagem foi cancelada, mas não desistimos de vir”, conta Erin. Conheceu o marido em Londres, para onde foi estudar Design Gráfico. Depois, viajaram durante anos pelo mundo. Ambos trabalham remotamente, ela em Design, ele na área de TI, e depois de percorrerem a América do Sul e de viverem em Sidney, apanharam um avião para a África do Sul, onde Simon conseguira um contrato de trabalho de um ano na Cidade do Cabo. Ficaram dez.

Erin e Simon com Cas. Da África do Sul para Lisboa. Foto: D.R.

No álbum de fotografias trazem imagens de safaris e da viagem ao Uganda, mergulharam em muitos oceanos, conheceram uma miríade de cidades, pelo meio visitaram Lisboa algumas vezes e quando decidiram escolher um lugar para voltar a pousar colocaram o pin neste retângulo pequeno do mapa mundo.

“Queríamos vir antes do Brexit, essa foi a principal razão, e escolhemos Lisboa porque gostamos da cidade, do tempo e de ter o mar muito perto. O Simon faz surf e isso era muito importante”, conta Erin. O desafio, agora, é aprender português. “Queremos muito. Vai ser mais fácil para o Cas, claro, até porque o queremos inscrever, para já, numa escola bilingue. Depois, a ideia é que ele vá para uma escola local”. Portuguesa, pois claro. E no campo.

“Decidimos ficar aqui a viver em Portugal, primeiro em Lisboa e depois talvez compremos uma quinta no Alentejo”. Como ambos trabalham remotamente, a qualquer lugar podem chamar casa. Por enquanto, Erin e a família moram no bairro do Príncipe Real: será aqui que o menino Cas de cabelo louro quase branco vai um dia aprender a dizer “pá”.

Uma cidade sem arranha-céus

“O que é que eu sabia de Lisboa, antes de conhecer o Cássio? Que era um destino perfeito, com bom clima e preços acessíveis”, diz Sara Biscaro, uma italiana que conheceu o namorado em Copenhaga, onde viveu nos últimos anos.

Ainda nada sabia das “cores, dos cheiros e da vibe” de Lisboa. Nem do amor, que lhe aconteceu numa lavandaria. “O Cássio não sabia usar a máquina de lavar roupa, eu ajudei-o”, recorda a italiana, que estava a ler um livro de Paulo Coelho quando os dois se conheceram. Cássio é brasileiro. Começaram a falar online, afastaram-se, aproximaram-se e por fim decidiram que teriam de escolher um país para viver.

Por um triz não foi Copenhaga. Para Sara, ainda bem que acabou por não ser. Na Dinamarca, estava a ser muito complicado para Cássio conseguir a documentação necessária para poder viver no país e, no vai e vem dos papéis que não chegavam, Sara começou a murchar. Cássio vivia em Lisboa há uns anos, para onde tinha vindo ao encontro do irmão.

Sara e Cássio, o sol depois da Escandinávia. Foto: D.R.

“Depois de três anos a viver na Dinamarca [onde estudava Turismo], comecei a sentir-me um pouco deprimida e precisava de um novo desafio. Decidi terminar os meus estudos em Lisboa”. Sara já tinha visitado a cidade, num verão antes de os dois terem decidido que não, Cássio não iria viver para Copenhaga, era Sara quem viria para Lisboa.

“Lembro-me de nessas férias termos ficado ambos maravilhados com a arquitetura dos edifícios. Lisboa é uma das capitais europeias mais antigas e tem muita história para contar. As pessoas têm esta atitude descontraída, estão sempre a sorrir… E em cada esquina, aparece uma Lisboa diferente. Em Copenhaga, não encontrei tanta diversidade. Talvez o que eu mais goste é da simplicidade de que Lisboa é feita, não tem grandes arranha-céus, nem casas ou vilas chiques”, resume a italiana, rendida à cidade aonde chegou no mês passado, finalmente para viver.

Fazer dos nómadas um assunto

Stephen O´Regan, o irlandês que é o criador do projeto People of Lisbon, que a Mensagem tem partilhado nas suas páginas, vivia em Nova Iorque quando a pandemia atingiu em força a cidade. Tinha voltado a Dublin, mas não lhe apetecia regressar à Grande Maçã, onde teria de ficar fechado. “Lisboa era, na altura, a cidade mais aberta”, recorda. E haveria melhor sítio para atravessar uma pandemia do que “em casa”?

Stephen com Rita. Juntos fazem o projeto People of Lisbon. Foto: Rita Ansone

“Eu já conhecia a cidade, tinha ficado hospedado num lugar chamado Home Hostel, na Rua do Nicolau, e liguei para saber se poderia reservar um quarto”. Foi em junho do ano passado. Do outro lado da linha, a resposta: claro que podia, o hostel estava vazio. Em três meses, ficou cheio: “muita gente de outros países, nómadas digitais, a experiência acabou por se tornar uma espécie de casa Big Brother”, conta Stephen, que promete um dia escrever um livro sobre a “loucura” que foi viver num espaço pequeno com tantas pessoas diferentes.

Pelo meio, fez vídeos, que é aquilo que sabe e gosta de fazer. Durante 12 anos ergueu sozinho um projeto – a Balcony TV – entretanto comprado pela Sony Music. Convidava músicos para darem concertos à varanda e as varandas eram as do mundo inteiro. Três anos depois de a Sony ter mostrado interesse, foi despedido do projeto que ele mesmo criou.

“Fazer a Balcony TV foi toda a minha vida de adulto, quando me deixaram ir fiquei perdido…”, lembra. E então decidiu visitar 100 cidades um pouco por todo o mundo. Visitou-as, lançou um travel vlog, regressou a Nova Iorque e magicou outro projeto em vídeo: The Beautiful Game NYC, sobre os adeptos de futebol na cidade. Quando o projeto estava finalmente a começar a ter sucesso, a época foi cancelada por causa da pandemia, e Stephen viu-se novamente de mãos vazias. Em Lisboa, decidiu voltar a ocupá-las.

Os seus vídeos já começaram a ser transmitidos na companhia área portuguesa TAP, e é no Canadá (o hotel com nome de país, na Baixa, onde Stephen vive agora), que o irlandês caça as personagens (enquanto as ruas não abrem, é nas redes sociais que as procura).

Saudades de Nova Iorque? Não tem, garante. “Podemos até sentir saudades do cheiro, dos sons, da atmosfera, mas existem partes de Lisboa que me lembram Nova Iorque, como a Rua Verde [em Santos] ou a Avenida da Liberdade”, diz Stephen, com saudades, sim, do que aí vem. “A verdade é que ainda estou a descobrir Lisboa, a cidade onde em cada esquina há uma surpresa”.



Paula Freitas Ferreira

Nasceu em Moçambique e viveu em muitas cidades até chegar a casa, Lisboa. Acredita que os lugares são impossíveis de contar sem ouvir as pessoas e as suas histórias. É jornalista desde o ano 2000 e passou pelas redações do 24horas, Sábado e Diário de Notícias. Colaborou com a Notícias Magazine e escreveu três livros.

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