Conhecer uma cidade é negociar entre o visível e o oculto. Os lugares invisíveis podem, mesmo, ser em maior número do que aqueles que nos são próximos e conhecidos.
Descobrimos, assim, que a cidade não é apenas uma cidade, mas várias. Uma boa parte das periferias, ou dos bairros que, mesmo que centrais, não são destino habitual, integram uma manta de retalhos muito mais plural e rica do que a cidade conhecida. O brilho intenso do centro não deve obscurecer a pluralidade do território físico e humano que se estende por entre e para além dele. Quantos são os lugares, os bairros, a pequenas unidades de território dentro de uma cidade, cujo quotidiano as torna a forma de ser cidade de quem as habita?
O ato de caminhar passo a passo, sem as pressas cosmopolitas da vida urbana, permitem descobrir lugares novos. Recantos que nos são invisíveis, pessoas que não pareciam existir, horizontes radicalmente diferentes, espaços, percursos e arquiteturas tão variadas que compõem a pluralidade urbana.
Cada um vive a sua própria cidade, dentro da cidade. Aos diferentes sentidos de pertença também correspondem diferentes formas de fazer cidade. Não é estranho que as pessoas se identifiquem com as suas ruas, os seus territórios de proximidade, os seus lugares de quotidiano, a sua cidade dentro da Cidade. E é, também, natural – ou deveria ser – que a realidades diferentes correspondessem respostas de governação necessariamente diferentes.
As grandes metrópoles têm vindo a experimentar novas formas de organizar a sua governação urbana através de unidades submunicipais. Mesmo que as experiências, em muitas cidades em todo o mundo, sejam caracterizadas por diferentes desenhos de descentralização local, as unidades intraurbanas assumem, hoje, funções políticas e administrativas muito relevantes nos governos urbanos. Em geral, a fragmentação territorial das cidades procura gerar efeitos nas políticas públicas, na resposta a necessidades específicas e na participação dos cidadãos.
A governação urbana é um campo relevante de investigação e de conhecimento, pelo menos desde a década de 1930. No entanto, o estudo da governação local, até muito recentemente, tinha sido feito quase exclusivamente apenas considerando a escala municipal ou de cidade. As perspetivas mais contemporâneas têm procurado compreender e fornecer informações relevantes sobre o nível submunicipal.
Este tem sido rotulado de diferentes formas, de acordo com os contextos nacionais onde se insere: subprefeituras, distritos urbanos, ou governo de bairro. A arquitetura da governação subnacional portuguesa apresentava, aqui, uma vantagem histórica: a existência de freguesias.
A complexidade das cidades globais não pode ser entendida apenas tomando como abordagem preferencial a caixa negra do governo local. Os traços diferenciadores do ponto de vista social, cultural, demográfico e económico são evidentes quando consideramos os diversos territórios das cidades.
A descentralização de serviços, a diferenciação de políticas públicas, e a sua implementação através de unidades sublocais podem ter efeitos importantes. A descentralização política numa cidade deve também capacitar os órgãos de decisão de proximidade com os meios e os instrumentos que permitam atender às necessidades específicas desses territórios.
O princípio é claro: quanto menor for a escala territorial de intervenção, maior é a capacidade de refletir nas políticas públicas a voz de quem a habita. A fragmentação da política de cidade, se devidamente acompanhada de instrumentos que garantam a sua consolidação, sustentabilidade e equidade, devolve aos cidadãos, aos bairros, aos territórios distantes do centro de poder a possibilidade de dar voz também ao desconhecido. Estas unidades submunicipais não podem ser apenas meras delimitações administrativas. São uma forma de poder, de participar politicamente, de fazer cidade.
A democracia de proximidade obriga a este olhar diferenciado sobre o território urbano. Fazer cidade é atendar às diferentes cidades que a compõem e garantir que essas múltiplas partes podem gerar um conjunto mais equilibrado. Evitar a invisibilidade de territórios dentro das cidades, não apenas aqueles que rotulamos de periferias, mas as periferias que estão também no centro, deve ser uma preocupação central da governação local contemporânea.
*Filipe Teles é professor de Ciência Política na Universidade de Aveiro. Dedica grande parte do seu trabalho de investigação à governação local. É autor do livro Descentralização e Poder Local em Portugal (FFMS). Viveu em Lisboa no final do século passado e, sempre que regressa, procura manter o olhar treinado para ativar memórias.