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A processar…
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As máscaras cirúrgicas também nos separam da cidade. Impedem-nos de a sentir da mesma forma. Perdemos-lhe o cheiro e, sem ele, as memórias dos lugares tornam-se mais ténues. Também por esta razão, passámos, no último ano, a ter uma relação incompleta com o espaço urbano.

Isto quando não foi a própria covid-19 a tirar-nos o olfato.

É possível construir uma paisagem de cheiros de uma cidade na nossa memória. Ruas floridas contrastando com cantos nauseabundos, o ar do rio, o calor húmido de um jardim ou o peso tóxico dos escapes. As texturas urbanas ganham outra vida com os cheiros que as acompanham.

Kate McLean trabalhou com dezenas de voluntários para mapear os odores de cidades. Nova Iorque, Edimburgo, Kiev, Singapura, entre muitas outras, foram calcorreadas com narizes apurados. As smellwalks da designer, artista e investigadora britânica foram objeto da sua tese de doutoramento no Royal College of Art.

A possibilidade de tornar visível (verbo desajustado, mas inevitável) e permanente um conjunto de registos de informação sensorial sobre a matéria intangível e impermanente de que também é feita a cidade, explica a motivação para este trabalho. Quase sempre ausentes da história urbana e da sua governação, os odores costumam ser referidos apenas em circunstâncias de preocupação e de risco, nomeadamente quando associados a problemas de saúde pública e salubridade.

McLean refere, a título de exemplo, que os Nova-iorquinos já não têm memória do “terror olfativo” da sua cidade no século XIX. Dezenas de milhares de cavalos a circular, como meio de transporte ou de carga, matadouros, indústria no centro urbano, tratamento de peles, esgotos, têm um resultado muito diferente do aroma do café, das lojas gourmet e dos donuts pela manhã.

As paisagens urbanas de odores permitem registar também a evolução da cidade e a forma como o espaço público, a sua governação e as prioridades de políticas urbanas foram mudando. Os relatos disponíveis sobre o governo da cidade de Londres no século XVIII, das suas condições de salubridade e saúde pública, não destacam qualquer preocupação particular dos seus habitantes quanto aos odores.

O hábito e a adaptação às – então – condições de vida urbana talvez expliquem o desinteresse. Os odores não eram um bom indicador de perigo. Mas as consequências são bem conhecidas e foram, tantas vezes, trágicas, do ponto de vista da saúde pública. Esses relatos são abundantes.

O nariz urbano não assinala somente a presença dos caixotes do lixo concentrados ou o sistema de exaustão da churrasqueira mais próxima. O pão quente e a livraria, o jardim acabado de regar, uns cestos de fruta ou o peixe fresco também fazem parte desta paisagem.

Ainda que as cidades se tenham higienizado, afastando os mercados e os seus odores do centro da vida urbana, mesmo que se possam tornar incaracterísticas e, na maior parte dos casos, absolutamente indistintas, há – ainda assim – geografias do olfato que nos amarram às cidades.

O receio de que as cidades se estejam a transformar em cópias indistintas de um modelo único de espaço e atividade urbana tem, também, uma tradução olfativa. Os mesmos hotéis, os mesmos produtos de limpeza, as mesmas cadeias de cafés, todos deixam a mesma marca, independentemente da geografia.

A proposta revolucionária de McLean é a de reconsiderar a forma como percebemos a cidade, acordando sentidos adormecidos. Apesar de desclassificado para posição secundária por Aristóteles como um sentido menos importante do que o da visão, o menos nobre, o “dispensável” olfato não é apenas uma experiência individual, mas um processo de mapeamento e identificação de lugares.

Os cheiros da cidade não refletem apenas as mudanças, mas podem também gerar mudança. O exercício de mapeamento proposto por McLean é o de mudar de uma relação passiva com os odores urbanos, para a sua procura ativa. Identificando e procurando distinguir aquilo que a investigadora designa por odores curiosos e inesperados, dos episódicos e dos de contexto.

A tinta fresca de uma fachada recente é de um tipo necessariamente diferente dos aromas que permitem diferenciar territórios e serviços dentro de uma cidade (um mercado, uma livraria, um jardim) e, mesmo, daqueles que as tornam únicas, como a humidade do rio ou os que emanam do calor do verão na calçada. Esta é a variedade de odores distintos que existem numa cidade.

A paisagem da península da Arábia oferecida por Heródoto nas Histórias é mais completa precisamente por a ela lhe ter associado um aroma doce, como que divino. É certo que, hoje, seria muito mais difícil identificá-lo com a máscara no rosto.

Fecho os olhos, confiando apenas nas memórias ativadas pelo cheiro da cidade. Cuidado. Importa praticar este exercício em lugar seguro. É difícil “cheirar” um carro a aproximar-se.

* Filipe Teles é professor de Ciência Política na Universidade de Aveiro. Dedica grande parte do seu trabalho de investigação à governação local. É autor do livro Descentralização e Poder Local em Portugal (FFMS). Viveu em Lisboa no final do século passado e, sempre que regressa, procura manter o olhar treinado para ativar memórias.

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1 Comentário

  1. Obrigada , gostei muito e concordo inteiramente… como alguém que já viveu em países e cidades diferentes… até o cheiro da tinta usada no interior das casas parece diferente… e quando estamos longe, que saudades dos cheiros da terra natal!

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