Há cidades de onde não se consegue sair a pé. Rodeadas de infraestruturas rodoviárias e ferroviárias, de equipamentos construídos e de obstáculos naturais, fecham-se dentro de novas muralhas dificilmente ultrapassáveis.

Eis um exercício que sugiro praticar, ou imaginar: escolha um lugar central da cidade, qualquer que seja, e descubra que percurso fazer a pé desde lá até conseguir sair da cidade. [Pode ser feita uma pausa na leitura e retomar depois] Conseguiu sair? Tendo sido possível, imagino as dificuldades ou – num olhar mais otimista – as oportunidades de descobrir recantos desconhecidos nos limites urbanos. Mas, uma conclusão parece ser óbvia: afinal as cidades também enclausuram.

O arquiteto italiano Francesco Careri no livro “Walkscapes: A caminhada como prática estética” pergunta: que tipo de cidade podem produzir pessoas que têm medo de andar? Atrevo-me a adaptar, acrescentando: que tipo de cidadãos pode produzir uma cidade que não permite andar?

Recordo o momento em que a proposta deste exercício se tornou evidente para mim. Depois de uma visita rápida a uma livraria de Bilbao, enquanto aguardava o início de uma reunião, abri uma das crónicas de Sergio Fanjul. No livro “La ciudad infinita” (Ed. Reservoir Books), Madrid é apresentada como um labirinto onde vivem ratos de laboratório – os cidadãos – a transitar por ruas e praças. No entanto, este é um labirinto com paredes a toda a volta. Dificilmente se consegue sair a pé de Madrid.

Acresce o facto da maior parte dos espaços urbanos estarem também vedados à circulação. Uma visão de satélite, como sugere Fanjul, dá-nos uma perspetiva muito clara do espaço público disponível para circular. Muito limitado.

Como tantas outras cidades contemporâneas, também Lisboa quer afirmar-se como uma “cidade global”. O termo usado pela socióloga Saskia Sassen permite considerá-las como nós numa gigantesca rede planetária ligada por autoestradas económicas, de informação e de circulação de pessoas. Estas cidades precisam de uma gestão eficiente para garantir a sua subsistência: alimentação, energia, água, mobilidade. Mas, apesar de ligadas entre si, ainda que a distâncias enormes, e altamente dependentes do que lhes chega vindo de fora, encontram-se distantes dos territórios mais próximos. Abertas ao mundo, mas fechadas por muralhas, como numa bolha distópica.

As políticas públicas urbanas são concebidas, muitas vezes, como forma de lidar com o conflito entre o espaço de livre circulação e as suas fronteiras. Entre o público e o privado. Entre o permitido e o possível. Segregar é um verbo que arrisco aqui usar como sinónimo de urbanismo. Em primeiro lugar porque urbanizar é separar do território rural original, que as cidades impermeabilizam. Depois, porque urbanizar implica separar dos outros territórios, com recurso às novas muralhas do desenvolvimento, que já não precisam de ser de pedra. Por fim, porque fazer cidade implica, tantas vezes, explorar as relações entre iguais, mais do que com a diferença.

As cidades fechadas são, hoje, uma expressão comum do nosso quotidiano. A pandemia e os consequentes confinamentos impostos tornam evidente o que implica uma cidade fechada sobre si própria. Mas estes outros confinamentos, os das novas muralhas, próprios da evolução das cidades, trazem imensos desafios.

A grande migração rural-urbana global torna-as, desde há quinze anos, o lugar de permanência de mais de metade da população mundial. Há evidentes impactos deste processo imparável. Em Portugal o fenómeno é reconhecido e traduz-se na litoralização na nossa demografia. Acrescento: traduz-se no enclausuramento urbano.

Quando, hoje, falamos das importantes relações entre o espaço urbano e os outros territórios, nomeadamente os rurais, das suas interdependências no domínio das políticas locais de sustentabilidade, de alimentação e de energia, estas muralhas tornam-se ainda mais evidentes. Os obstáculos que já impermeabilizavam a cidade na sua relação com o solo e que, cada vez mais, a afastam do que está imediatamente para lá das suas fronteiras, também nos fecham dentro de um pequeno mundo. Onde andar livremente e sem destino tem limites. 

*É professor de Ciência Política na Universidade de Aveiro. Dedica grande parte do seu trabalho de investigação à governação local. É autor do livro Descentralização e Poder Local em Portugal (FFMS). Viveu em Lisboa no final do século passado e, sempre que regressa, procura manter o olhar treinado para ativar memórias.

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *