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A processar…
Feito! Obrigado pelo seu interesse.
A ficha prisional da jornalista Diana Andringa.

O carro, um Volkswagen, subiu a Rua de Angola, continuou para a Praça do Ultramar e, do lado contrário àquele em que esperava o autocarro, contornou-a na direcção da Rua da Ilha do Príncipe. Pareceu-me reconhecer um dos homens no interior: o chefe de brigada Inácio Afonso. Avistara-o durante uma ida à PIDE, na António Maria Cardoso, requerer o direito de visitar o Alexandre, preso em Caxias.

O autocarro que chegava ocultou-me dos passageiros do automóvel. Entrei, o coração a bater mais rápido que o habitual: há muito tempo que era notória a vigilância à nossa casa – um telefonema solidário de um casal morador no grande prédio atrás alertara-nos mesmo para a presença de agentes da PIDE seguindo de lá os movimentos na nossa varanda. E dez dias antes fôra preso o Álvaro. Teria chegado a minha vez?

A rua de Angola, foto do Arquivo Municipal de Lisboa

O trajecto até à agência de publicidade [Ciesa] onde trabalhava, próxima do Estádio do Restelo, levava cerca de uma hora. Fui passando em revista as possibilidades: ir trabalhar, como se nada se passasse, e aguardar o desenrolar dos acontecimentos? Apear-me a meio do percurso, ocultar-me durante algum tempo, deixar o país? Mas esconder-me onde, se aqueles que mais facilmente me acolheriam poderiam estar também vigiados e ser postos em perigo se os procurasse? E se a vigilância sobre nós durava há tanto tempo e era tão ostensiva, seria possível que os meus dados não estivessem já em todas as fronteiras?

Talvez, no entanto, a PIDE fosse menos eficiente do que pensávamos… Mas se abandonasse o país e não pudesse mais voltar, seria isso mais útil do que arriscar a prisão, uma vez que não fazia parte de nenhuma organização e não tinha qualquer importância, nem informações que pudessem fazer perigar a segurança de outros? E se o carro tivesse passado ali por simples coincidência, ou reforço de vigilância, ou intimidação, fugir não iria piorar a situação dos que ficassem?

Ao fim de uma hora a pesar prós e contras, acabei por descer na paragem do costume. Olhei em volta: não vi nada de inabitual. Entrei na agência . Estava há poucos minutos no gabinete quando o telefone tocou. Era a Nita: “A Zé foi presa. A mãe dela foi a tua casa avisar-te e a PIDE estava lá, prenderam também o Zé.”

As dúvidas voltavam: que fazer? Sabia que vários dos meus colegas, se não todos, estariam dispostos a ajudar-me, mas tinha o direito de os pôr em risco? Valeria a pena? Certamente a PIDE estaria já a vigiar o edifício… Telefonei ao José Augusto Rocha: “A PIDE está em minha casa. Devo estar a ser presa. Posso deixar-te uma procuração?” Surpreendido, talvez ainda ensonado, o Zé Augusto explicou-me o que fazer.

Escrevi a procuração e deixei-a à Maria, com o Bilhete de Identidade necessário ao reconhecimento da assinatura. Expliquei-lhe tudo e pedi-lhe que a entregasse depois à minha mãe, a quem deveria também confirmar a minha prisão. O Plínio, que dividia o gabinete comigo e era familiar de um dirigente da PIDE, abriu as suas gavetas aos papéis que, mesmo inócuos, a polícia poderia querer apreender-me.

Desci as escadas e pedi à recepcionista que me avisasse quando os agentes entrassem à minha procura. Telefonei então à minha mãe, pedindo-lhe que aguardasse o telefonema de confirmação da Maria para me levar à sede da PIDE, na António Maria Cardoso, um pijama e uma escova de dentes. Liguei para o emprego do meu pai e pedi à secretária que lhe desse a notícia com cuidado, para evitar um possível problema cardíaco. Sem saber que mais fazer, arrumei a secretária. O telefone tocou e ouvi a voz soluçada da recepcionista: “Já entraram. Foram à Secção de Pessoal.”

Fui à casa de banho. Quando regressava, vi-os chegar: o homem do carro e uma mulher, a também chefe de brigada Madalena Oliveira. Traziam um mandado e tinham avisado a Secção de Pessoal. Ninguém meu conhecido fora preso com tamanha legalidade.
Pedindo desculpa pelo incómodo ao Plínio, passaram rapidamente busca à minha secretária, detendo-se a observar alguns exemplares do Le Monde diplomatique. A seguir pediram-me que os acompanhasse.

Quando saíamos, recolhi os olhares solidários dos colegas. Resolvi cumprir as regras e avisar da saída o meu chefe, Artur Portela. Abri a porta do gabinete: “Lamento, mas vou ter de sair por um bocado. Estes senhores são da PIDE e vieram-me buscar…”

A recepcionista tinha lágrimas nos olhos quando desci. Já na rua, apercebi-me de que tinha poucos cigarros. Disse: “Antes de chegar à António Maria Cardoso preciso de comprar tabaco.” Acederam. Dei dinheiro a um dos agentes, que me trouxe dois maços de Paris.

Na primeira sala onde fui colocada na António Maria Cardoso travei conhecimento com o Inspector Tinoco. “Com que então, distribuição de propaganda subversiva em Luanda!”, disparou, ameaçador. Teve azar: revelou a fragilidade da informação policial. Eu nunca estivera mais do que alguns dias em Luanda, e a última passagem fôra aos onze anos. “Não me lembro – e, se a fiz, o crime já deve ter prescrito”, respondi. Abandonou a sala.

A ficha do Inspetor Tinoco da PIDE. Foto: DR

Pouco depois, levaram-me a outro andar, onde fui identificada e fotografada. Junto à dactiloscopia, o desenho de um esqueleto com os dizeres: “Amigo, tenha calma, não se irrite, porque todos acabamos assim.” Desde então que me irrito sempre que o vejo numa qualquer repartição.

No regresso fecharam-me noutra sala, com uma agente que devia andar pela minha idade. Ficámos ali, uma de cada lado de uma pequena secretária, a ouvir uma gota caindo repetidamente do aquecimento, a um canto. Que, aliás, não aquecia. Um truque mais para criar mal-estar no preso?

Perguntou-me qual a razão da minha prisão. Respondi-lhe que não fazia a mínima ideia, presumia que se tratava de um erro e daí a pouco me libertariam. Lamentava, aliás, o tempo que estava a perder: no dia seguinte devia apresentar a um cliente uma proposta de campanha, devia estar a trabalhar. Era o lançamento de uma nova gabardina, de um tecido totalmente impermeável… “Tornado” parecer-lhe-ia um bom nome? E “ciclone”? Demasiado óbvio, talvez?

Nunca a publicidade me terá sido tão útil… Entusiasmada, a agente entrou no jogo e foi discutindo comigo nomes e, até, pequenos scripts para um filme publicitário. Excelente modo de evitar pensar no que me podia esperar – ou, pior, no que poderia estar a acontecer aos Zés.

Ao almoço trazem-me caldo verde e um bife: “Vê? Dizem que tratamos mal os presos. Fomos buscar-lhe um bife à Brasileira!” Penso que, caso ponham drogas na comida, será mais fácil fazerem-no nos líquidos. Evito a sopa e afasto todo o molho do bife, o que provoca piadas diversas dos agentes que metem a cabeça pela porta entreaberta.

Estou prevenida: o Luís explicou-me que um dos maiores perigos para a resistência de um preso é a sensação de ridículo. Decidi, portanto, que nada do que qualquer agente da PIDE disser poderá tocar-me. Mais tarde poderei discutir os riscos éticos desse pressuposto (“Quando me apercebi de que não chorava quando um morto era do exército alemão, percebi que eu próprio poderia tornar-me um nazi”, disse-me, muitos anos depois, um dos judeus salvos por Sousa Mendes): neste momento, não lhes reconheço dignidade humana.

Depois do almoço, continuo a trabalhar no lançamento da gabardina. A intervalos, canto. A agente revela-se apreciadora de Paco Ibañez. Recito-lhe a versão do cantor de La poesia es una arma cargada de futuro, de Gabriel Celaya. A poesia vem dar-me novas forças: obrigada, Celaya, obrigada, Paco Ibañez, por me lembrarem que ali, naquela sala – e parafraseando um outro poeta – sou mais do que eu: sou um dos muitos que recusam lavar as mãos do que se passa em seu redor, dos que escolhem tomar o partido dos que sofrem.

Mas é demasiado para a polícia: a agente é retirada e substituída por outra, igualmente jovem, mais sofisticada, que mal se senta começa a fazer ruídos enervantes em minha intenção. “Um pouco cedo de mais”, penso, “dormi perfeitamente toda a noite.”
Em momento que já não recordo, regressou o inspector, acompanhado pelo agente Benedito Pereira André, que servia de escrivão. Travei então conhecimento com a estranha linguagem dos Autos de Perguntas – e, deduzi, com as razões que determinavam a minha prisão.

“Aos vinte e sete dias do mês de Janeiro de mil novecentos e setenta, nesta cidade de Lisboa e Direcção de Serviços de Investigação e Contencioso da Direcção-Geral de Segurança, onde se encontra o Excelentíssimo Senhor Inspector Adelino da Silva Tinoco, comigo, Benedito Pereira André, agente servindo de escrivão, ambos da referida Direcção-Geral, compareceu Diana Marina Dias Andringa, casada, redactora de publicidade da firma “CIESA”, nascida a vinte e um de Agosto de mil novecentos e quarenta e sete, em Dundo-Chitato, Lunda-Angola, filha de… e de…, residente em… a fim de ser interrogada.

PERGUNTADA se já esteve presa mais alguma vez, onde quando e porquê, se foi julgada e condenada e, em caso afirmativo, se cumpriu a respectiva pena, respondeu: -Que, nunca esteve presa nem respondeu em Juízo. À MATÉRIA DOS AUTOS e interrogada no sentido de explicar todas as actividades atentatórias da segurança do Estado que tem desenvolvido como “membro” da “organização” secreta, subversiva e terrorista que denominam por “frente de acção popular”, vulgarmente conhecida por “FAP” e do seu “organismo doutrinário” que é o chamado “comité marxista-leninista português”, em ligação com o “movimento popular de libertação de Angola” também conhecido por “MPLA”, responde: – Que, não pertence a nenhuma organização secreta, subversiva e terrorista, nem tem desenvolvido qualquer actividade atentatória da segurança do Estado.

E SENDO-LHE perguntado que ligações ou contactos de natureza partidária e subversiva vem mantendo com […], hoje detido na sua residência, onde pernoitou, respondeu: – Que, não tem quaisquer ligações ou contactos de natureza partidária e subversiva com o indivíduo referido na pergunta.

A rua da sede da PIDE, António Maria Cardoso, no 25 de Abril. Foto: Rui Ochoa/DR

E SENDO-LHE perguntado como obteve e a que fins destinava a diversa propaganda de natureza partidária e subversiva encontrada e apreendida na sua residência, nomeadamente o documento copiografado com o título “VIVA A LUTA DA CLASSE OPERÁRIA”, composto de duas folhas e editado pelo “comité de propaganda marxista-leninista”, e dois exemplares, um do número um, respeitante ao mês de Outubro, digo, um do número três, respeitante ao mês de Outubro e outro com os números quatro e cinco e respeitante aos meses de Novembro e Dezembro, todos de mil novecentos e sessenta e sete do panfleto clandestino e subversivo intitulado “o proletário”- “órgão do comité marxista-leninista português”, respondeu: – Que, os recebeu pelo correio, ignorando a sua procedência, e guardava-os a título de informação pessoal.

E SENDO-LHE também perguntado que ligações ou contactos de ordem partidária e subversiva vem mantendo com um indivíduo que se julga chamar-se D.T., nome constante do remetente duma carta a si dirigida, manuscrita, igualmente encontrada e apreendida na sua residência, a qual se inicia “DIANA ANDRINGA – lá estarei as 21H, no canto…” e termina “abraço fraternalmente revolucionário”, devendo indicar quem é essa pessoa, respondeu: – Que, como atrás afirmou não mantém ligações ou contactos de ordem partidária e subversiva e nem nunca os teve com ninguém. Não se recorda da carta em referência e no tempo em que era jornalista recebia com frequência cartas de estudantes referindo problemas universitários, admitindo, por isso, que esta seja uma dessas.
E mais não respondeu. Lidas as perguntas que lhe foram feitas e as respostas por si dadas, as achou conformes, ratifica e vai assinar.

Para constar se lavrou o presente auto, que vai ser também assinado pelo Excelentíssimo Inspector e por agente (sic), que o dactilografei e revi.”

A inquirição reforça a ideia de que é muito frágil a informação policial. A menos que se trate de um esquema preparado para me fazer ganhar confiança e depois me confrontar com uma acusação realmente séria?

Para o fim da tarde, nova substituição de agente. A que entra é mais velha e aparenta origem mais humilde. Diz-me, logo à chegada, não pertencer aos serviços de investigação, mas aos administrativos, tendo sido chamada por excesso de trabalho das agentes do sector. Será ela a acompanhar-me a Caxias. Tendo ouvido dizer que eu mal tocara no almoço e antevendo a possibilidade de chegarmos a Caxias já passada a hora de jantar, no Cais do Sodré manda parar a carrinha, sai e ao voltar estende-me um bolo de arroz. Será o velho truque do pide mau e do pide bom, ou contradições no seio da polícia? Recordo Álvaro de Campos e como o bolo, rejeitando a metafísica.

Chegamos ao Reduto Norte de Caxias. Habituada a entrar para o parlatório, como visita, vou desta vez subir os dois andares até às celas de isolamento – e, também, ao pavilhão das mulheres.

Logo à entrada, sou saudada pelo chefe Palma. As primeiras palavras são surpreendentes: “Também está cá? E agora quem é que visita o Alexandre?” ”Terá de pôr a pergunta ao major Silva Pais”, respondo. Mas já a agente que me acompanha o insta a servir-me o jantar. A discussão que se estabelece insinua contradições entre a polícia política e os guardas prisionais, com o chefe Palma a sublinhar que na António Maria Cardoso conhecem os horários de Caxias e deviam, por isso, prestar mais atenção à hora de envio dos detidos. Mas a agente não desiste e deixa-me com uma garantia: “Esteja descansada que lhe vão servir o jantar.”

Subo finalmente as escadas, acompanhada pelo chefe Palma e um guarda prisional. Deposito, numa mesa colocada no corredor, a mala de mão, o relógio, os óculos. No bloco que me estendem para anotar o meu espólio, vejo, em decalque, a letra e a assinatura da Zé. Alguém escreveu: “Quarto 62, 2º Dtº Frente”. A mim destinam-me o Quarto 60, 2º Dtº Frente. Óptimo, somos vizinhas, poderemos talvez comunicar. Levanto a voz, na esperança de que me oiça.

Entro na cela: do lado esquerdo, uma cama de ferro, uma mesa de pedra presa à parede, uma cadeira; do lado direito um armário e a casa de banho. Ao fundo, a janela, de grades duplas. Nada que se compare ao exíguo espaço dos curros do Aljube, onde passaram diversos amigos meus.

A guarda traz-me a roupa da cama, encardida e áspera. Aguardo que me deixe sozinha. Lembro-me de um texto de Manuel Alegre, na Praça da Canção, “Rosas Vermelhas”, “em Maio de 1963, eu estava na cadeia, isto é, de certo modo, eu estava no meu posto” – e, por um estranho momento, sinto-me em casa, como se estar ali fosse perfeitamente natural. Então aproximo-me das grades e, alto, desejo boa-noite a todos os presos que conheço e calculo estarem nessa noite no Forte de Caxias.

É nessa altura que chega o peixe. Um peixe de boca aberta e olhos que me fixam esbugalhadamente, equilibrado num prato de metal cheio de arroz argamassa, um peixe que irá manter-se longos anos nos meus pesadelos, como a aranha prensada transformada em mancha no lençol. Pouco como do jantar que a agente tanto insistiu que me servissem.

De novo só, bato na parede uma mensagem para a Zé – “uma pancada é a, duas pancadas b – mas, talvez desconfiada, ela não responde.

Não há espelho na casa de banho – como é nua uma casa de banho que não nos devolve o rosto – o pijama ainda não chegou, nem a escova de dentes, a roupa da cama não impede o frio, tremo sem parar (e talvez não apenas de frio, virei a ter febre todas as vezes que volto de interrogatórios, como se a tensão acumulada reclamasse o direito a libertar-se). Mas há um muro de palavras a proteger-me, Daniel Filipe: “Ó meu amor resiste/Resiste os olhos secos/Sem lágrimas Sem medo Só talhada/no sílex da ira”, Roger Vailland, Jorge Semprun, Jacques Prévert, João Cabral de Melo Neto, Jorge de Sena, Herberto Helder.

Convoco os seus textos, adormeço a recitá-los. Mal sabe o pequeno inspector Tinoco que a literatura me inspirou muito mais do que a “diversa propaganda de natureza partidária e subversiva encontrada e apreendida na (minha) residência”.

Durante a noite, por mais de uma vez, o postigo abriu-se e houve uma lanterna apontada na minha direcção. A polícia não gosta que os seus presos se evadam pela via do suicídio.
Chegada já de noite a Caxias, só na manhã seguinte posso verificar a paisagem avistável da janela gradeada da minha cela. Para lá do muro do forte, com uma guarita e o seu guarda-republicano, o caminho que muitas vezes percorri como visitante, arvoredo e, ao longe – a falta que me fazem os óculos! – o que me parece ser uma nesga de mar.

É essa a única paisagem exterior dos dias seguintes. No interior, percorro os corredores que medeiam entre a zona das celas das mulheres, em que me encontro, e o posto clínico, na ala oposta, onde sou levada primeiro a uma consulta obrigatória e, nessa mesma noite, em braços, desmaiada, após tomar parte da medicação que me fora imposta “para me acalmar” e que, sob a vigilância da guarda prisional, não consegui deixar de engolir. No caminho, oiço a minha própria voz a dizer “Têm medo que lhes morra mais um preso…” Calo-me – e, até hoje, estou convencida que se tratava de drogas que, alterando o nível de consciência, podiam levar os presos a falar. “Pentotal?”, pergunto-me – e remeto-me ao silêncio.

E, uma semana depois, “prepare-se para ir à António Maria Cardoso!”

A revista Vida Mundial

Desta vez a viagem é feita no interior de uma carrinha fechada, com frestas por onde adivinho, mais do que vejo, as paisagens que percorro. Primeiro o arvoredo, depois a linha de comboio, onde viajava nos dois anos em que frequentei o Liceu de Oeiras, o Cais do Sodré, a subida da Rua do Alecrim, habitual nesse tempo, e depois, para a direita, o Chiado – afastando-me do Bairro Alto, bairro dos jornais, da Rua do Século, onde trabalhara na Vida Mundial, as tasquinhas onde nos encontrávamos com camaradas de outros jornais – e, depois, virando de novo à direita, a António Maria Cardoso, rumo à sede da PIDE, recém-crismada de DGS.

Desta vez, venho para uma visita em comum com a família. É o 4 de Fevereiro, dia de anos da minha irmã Elsa, e o meu pai, cardíaco, que dizia não me conseguir ver através do vidro do parlatório, pedira e obtivera a visita em comum. Estão a minha mãe e o meu pai, os meus irmãos Rodolfo e Elsa, e o meu sobrinho Ricardo que, ao ver-me, atravessa a sala a correr, trepa para o meu colo e se agarra firmemente ao meu pescoço. Apercebo-me que a cena comove a agente da PIDE que nos guarda e respiro fundo para disfarçar a cólera. A minha mãe trouxe, a meu pedido, uma toalha de mãos vermelho vivo – “para alegrar a cela, mãe!” – que, no regresso, hastearei nas grades da janela, numa silenciosa comemoração do início da luta de libertação em Angola.

Depois da saída dos meus pais deixam-me um pouco na sede, fazendo-me imaginar que aproveitariam o choque emocional para um interrogatório prolongado, mas devolvem-me a Caxias. Pelas frinchas da carrinha revejo o Tejo, a ponte, relembro os cacilheiros e a travessia entre margens que tanto apreciava.

Na janela, a toalha vermelha traz-me memórias de letras de canções, “Ó pastor que choras” (“Quem te pôs na orelha / Essas cerejas pastor?/ São de cor vermelha!/ Vai pintá-las de outra cor… / Vai pintar os frutos, /As amoras, os rosais:/ Vai pintar de luto/ As papoilas dos trigais!”), “Bandiera Rossa” (“Avanti popolo, bandiera rossa/ Alla riscossa, alla riscossa/ Avanti popolo, bandiera rossa/Alla riscossa, trionferà/ Bandiera rossa la trionferà/ Bandiera rossa la trionferà/ Bandiera rossa la trionferà/ Evviva il comunismo e la libertà/ Evviva il comunismo e la libertà”).

Sentindo ainda a memória do meu sobrinho no meu colo, lembro-me como, quando andava em Medicina, conhecer outro Ricardo da mesma idade, internado no Hospital, me tornou claro como a pobreza e a fome influíam no desenvolvimento das crianças…

Inundações de 1967 no jornal O Século

Esse Ricardo, as inundações de 1967, influenciaram-me bem mais que “a diversa propaganda de natureza partidária e subversiva encontrada e apreendida na (minha) residência”. Como as memórias de infância, os meninos negros a capinar as casas dos brancos, as mãos em sangue do criado acusado de ter roubado uma peça de roupa em casa da vizinha – e afinal inocente – o “Jozésito já te tenho dito” cantado no coreto, em vez das belíssimas canções locais, a continência dos sobas à bandeira içada ao domingo frente à casa do Director. Adormeço com as memórias que justificam a minha presença naquele Forte, naquela cela, a toalha vermelha desfraldada nas grades da janela.

Há um longo intervalo até à ida seguinte à António Maria Cardoso. Conheço já de cor a paisagem frente à minha cela, onde sei agora que há casas, um pequeno bairro, onde todas as noites uma voz de mulher grita, agudamente, “Vitinho! Vem para casa, Vitinho!” Vislumbro por vezes visitantes subindo ou descendo o caminho para o Forte. Por vezes, reconheço alguém, trocamos mesmo um discreto sinal.

No final de Fevereiro, talvez princípio de Março, a Zé é transferida para a minha cela. Suspeitamos que querem ver se das nossas conversas resultam informações úteis para o processo, e temos isso em conta sempre que falamos. Mas é um agradável romper da solidão e, entre histórias e canções, somos várias vezes repreendidas pelas guardas, porque é proibido falar alto, rir, cantar… “Então prendam-nos”, respondemos, enquanto relembramos as paisagens que nos são próximas, o Bairro das Colónias, o café Rialva, frente à velha sede da Casa dos Estudantes do Império, os bifes da Portugália, as visitas aos familiares presos no Forte de Peniche. E os merengues, coladeras e mornas das festas em que reuníamos os amigos.

Despistada que sou, é a Zé que tem de me lembrar onde fica o café onde somos acusadas de nos termos encontrado para que o Zefus lhe entregasse uma carta pedindo-lhe que a expedisse em Paris, uma vez que em Portugal seria imediatamente retida pelos correios… (Sendo, ao tempo, habituais os encontros em cafés, não distinguia esse de muitos outros que tomáramos juntas…)

E sou então de novo chamada à António Maria Cardoso, com o ritual da revista à saída e à chegada, como se entre a PIDE/DGS e a Guarda Prisional reinasse a maior desconfiança.

Mário Machungo (1940-2020) primeiro-ministro de Moçambique de 1986 a 1994

De novo o rio, o Cais do Sodré, a Rua do Alecrim – como se chamava o restaurante macrobiótico onde fora com um camarada da Vida Mundial e bebera um espantoso sumo de cenoura? – o caminho que, seguindo em frente, levaria para a Trindade, em cuja esplanada bebíamos imperiais nos dias de calor e onde tanto gostava de levar a minha mãe a comer um bife, terminando, ritualmente, com um pudim Flan (que durante anos continuei a pedir em sua memória), a viragem à direita, para o Chiado.

E, de repente, a vir do Largo de Camões também para o Chiado, um vulto conhecido, um amigo das Associações de Estudantes, com quem trabalhara durante o IV Seminário de Estudos Associativos. Um moçambicano, Mário Machungo. Olho-o através das frinchas da carrinha e espero, desesperadamente, que me devolva o olhar, que se aperceba que é uma carrinha prisional, que a bordo vai um/a preso/a, um/a camarada. Que me olhe. Mas Machungo não se apercebe, segue em frente, talvez vá à livraria Sá da Costa, ou beber uma bica à Brasileira…

Na tristeza absurda que me invade por ele por não ter tido ao menos um olhar para a carrinha, assaltam-me saudades de beber um bom café em chávena de louça e, embora não goste do café demasiado quente, prometo-me que, quando sair, hei-de vir à Brasileira e pedir uma bica em chávena escaldada.

Entretanto, a carrinha vira de novo à direita, rumo à sede da PIDE/DGS, na António Maria Cardoso.

Escadas, sala, secretária, duas cadeiras, janela com grades. Recordo o preso “suicidado”, caído (atirado?) de uma dessas janelas, queda testemunhada pela embaixatriz do Brasil e por um funcionário do Sindicato dos Jornalistas, na rua Duques de Bragança.

E depois as perguntas repetidas até à náusea sobre a ligação a partidos políticos, a dar a sensação de completo desnorte da PIDE, indicando mesmo partido rivais, o PCP e a FAP, o MPLA, a UNITA e até a UPA. Tento explicar que não faz sentido acusarem-me de ser da FAP, dita pró-chinesa, e do MPLA, dito pró-soviético, mas o inspector tem para isso uma explicação baseada num ditado popular: “Nós bem sabemos que é maoista e preferia pertencer à UNITA, mas como não há delegação da UNITA em Portugal aderiu ao MPLA. Quem não tem cão, caça com gato.”

Por pior que seja a minha opinião sobre o Estado Novo e a sua polícia política, o argumento choca-me: como é que é admissível que alguém seja preso, interrogado, mantido sob prisão, com base em raciocínios como este?

Não sei se é dessa ou de outra vez que o inspector perde a calma, ou finge perdê-la, e me atira com a máquina em que o escrivão vai apontando – com alguns erros de ortografia – perguntas e respostas. Esquivo-me, a máquina de escrever passa por mim e cai ruidosamente no chão. Ignoro se falhou de propósito, se foi mais uma encenação que um propósito de me atingir. Comento: “Destruiu equipamento do Estado. Não é crime?”

Nova encenação: “Julga que vem para aqui brincar connosco, mas está muito enganada. A partir de agora vai ser a sério!” Manda sair a agente, e faz entrar quatro homens, que se postam um em cada canto da sala: “Agora não sai daqui até ter dito tudo!” Sento-me na secretária e fico a olhá-los, num jogo de sisudo tão penoso para mim como para eles, parece-me. O tempo vai passando, interrompido, de quando em vez, por uma pergunta já feita, a que dou a resposta já dada. Até que pergunto: “E esta cena ainda é para levar muito tempo?”

Para meu espanto, vejo esboçar-se um sorriso na cara de um dos agentes, que abana muito levemente a cabeça, num disfarçado “não”. Como sempre, hesito se é uma reacção sincera ou lhe foi atribuído o papel de pide bom. Mas, pouco tempo depois, é dada a ordem de regresso a Caxias. É estranho como, depois da prova de nervos da António Maria Cardoso, a subida para o Forte é quase como um regresso a casa.

Poucos dias depois, sou de novo chamada a interrogatórios na António Maria Cardoso. Como das outras vezes, tento, simultaneamente, esquecer rostos e nomes ligados ao processo em que estou envolvida e relembrar outros, memórias mais antigas, colegas e professores do Liceu com quem fazia a viagem de comboio entre Oeiras e Cais do Sodré.

Entrada em Lisboa esforço-me por ver, através das frinchas, as ruas e lojas que conheço, tento captar o cheiro a café ao virar da carrinha, quase em frente à Brasileira.

Os diversos tempos da minha Lisboa: primeiro a Cidade Universitária, depois o Bairro Alto, o Chiado, a Trindade, mais tarde o Bairro das Colónias, o Império, a Portugália, o Rialva, agora este Chiado mais imaginado do que visto.

Desta vez serão longas horas de interrogatório, confrontos com autos que falam de mim, cartas apreendidas a quem as enviei, perguntas, perguntas, perguntas, muitas das quais sem sentido, outras mais próximas, indicando erros cometidos, documentos encontrados. Chantagens, ameaças sobre próximos. Aceleração do processo?

Quando regresso, já noite, a Caxias, a Zé não está na cela que nos últimos dias partilhámos. Nem ela nem os objectos que tinha com ela. Penso que a estão a interrogar e a mudaram de cela para que não possa saber se o interrogatório se prolonga pela noite dentro.

Passadas algumas horas, em que ando sem parar entre a janela e a porta, esta abre-se e entra a guarda prisional de turno. Num gesto estranho, fecha a porta atrás dela: “A D. Maria José saiu em liberdade. Não esteja preocupada!” A dúvida, de novo: a informação é verdadeira ou falsa? Trata-se de me perturbar agitando uma esperança inexistente? A guarda, no entanto, parece sincera e o facto de ter fechado a porta, para não correr o risco de ser ouvida, acentua essa impressão.

No dia seguinte tenho visita, a minha mãe confirma: “A Zé saiu!”

Não sei se é antes ou depois da libertação da Zé, no tempo que passa até à minha passagem a “regime normal” – o fim do isolamento – que os serviços clínicos indicam que devo fazer um electro encefalograma. Sou avisada à última hora e só já na carrinha conheço o meu destino: o Hospital Júlio de Matos.

Saudades de outros caminhos, a Cidade Universitária, os cafés da Avenida dos Estados Unidos – o Nova Iorque, o Vává – o meu primeiro trabalho, como secretária numa firma com escritório na Avenida do Brasil, quase em frente ao Hospital, e o modo como, após um dia passado a tratar de assuntos que não me interessavam, saía a correr rumo a Direito ou Santa Maria, ao encontro dos amigos que continuavam a estudar…

Quando, já no terreno do Hospital, desço da carrinha, os agentes estão nervosos. Acendo um cigarro e logo sou rodeada por vários doentes, com quem partilho o tabaco. Enquanto o maço de Paris passa de mão em mão, fazem perguntas: Quem sou? Que faço ali? Quem são aqueles homens? Explico que sou presa política, que aqueles homens são agentes da PIDE e, de imediato, se solidarizam comigo. Os homens são polícias, são maus – e eu sou pouco mais que uma miudinha que lhes oferece cigarros e os trata como iguais. Diverte-me sentir o medo dos pides.

No interior do Hospital, os agentes insistem em assistir ao electroencefalograma, mas o médico recusa. “É um acto médico, passa-se entre mim e a doente.” Conversamos um pouco, devolve-me, por momentos – como os doentes, lá fora – uma sensação de liberdade.
Ainda hoje, quando passo junto ao Júlio de Matos, recordo essa solidariedade espontânea dos doentes, a dignidade desse médico. São pequenos gestos, mas devolvem-nos a humanidade.

Fernanda Tomás

A partir do momento em que passo a regime normal, para uma cela maior, dividida com a Fernanda Tomás e a Graciete Casanova, só haverá, creio, mais uma ida a Lisboa. Em Caxias, a vista é idêntica à anterior, os gritos de “Vitinho!” repetem-se, os nossos horizontes são a “sala”, o pátio do recreio, os corredores para os clínicos ou para o parlatório, onde os familiares nos visitam. Tenho sorte, a minha família mora perto, a minha mãe e a minha irmã visitam-me diversas vezes por semana.

Chega, entretanto, a nota de culpa. A Zé volta a ser presa, partilha por uns tempos a nossa “sala”, depois é mudada para outra, com presas de outro processo. E, em Fevereiro de 71, um ano depois da nossa prisão, começa o nosso julgamento, no Tribunal Plenário da Boa Hora.

Saímos de Caxias na mesma carrinha, a Zé e eu, e calculamos que junto à nossa haja uma ou mais carrinhas, com os nossos oito corréus. Depois do Cais do Sodré, já não percorremos a Rua do Alecrim, mas a do Arsenal, Largo do Município, Rua Nova do Almada. O Tribunal da Boa Hora é um velho conhecido nosso, assistimos a mais de um julgamento na Sala do Plenário, percorremos as escadas e os claustros, tentando ver e ser vistas pelos presos sentados no banco face aos juízes.

Tribunal da Boa Hora, nos anos 70. Foto: Arquivo Municipal de Lisboa

Desta vez, a paisagem que mais nos interessa é a humana: ao fim de um ano, voltamos finalmente a ver os amigos também presos, conhecemos outros que, até então, eram apenas nomes surgidos nos interrogatórios, podemos tocar os nossos advogados, ver os nossos familiares que tiveram a possibilidade de entrar na sala de antemão cheia por agentes da PIDE, conhecer os familiares dos amigos, e mesmo amigos desconhecidos, vindos do estrangeiro para apoiar o mais célebre réu do nosso processo, o padre Joaquim Pinto de Andrade, Presidente de Honra do MPLA.

Olhos com sorrisos, olhos com lágrimas, acenos discretos, informações sussurradas, “Aquela é a minha mãe!”, “Aquela é a minha namorada!”, a gentileza dos advogados.

Joaquim Pinto de Andrade

As audiências prolongam-se, connosco entre a tensão do julgamento e a alegria de estarmos juntos. Num intervalo, o Zé Augusto Rocha traz-nos uma caixa enviada pela minha mãe: croissants com fiambre e alface da Ferrari, ali da Rua Nova do Almada, que ela sabia serem meus preferidos.

Há um mundo estranho, distante do nosso, onde os cafés se servem em chávenas próprias e a comida tem bom aspecto e sabe bem. Pergunto ao Zé Augusto se não conseguem também trazer-nos as deliciosas limonadas da tasquinha em baixo da praceta do Tribunal. Mas já foi difícil contrabandear os croissants – imagino a minha mãe pondo em jogo toda a sua gentileza para conseguir fazer-nos chegar esse mimo – a limonada era um impossível. Teremos de esperar pela liberdade para voltar a bebê-la. Paciência.

Há emotivos discursos de algumas das testemunhas de defesa. Há, claro, as falsidades das testemunhas de acusação, agentes da PIDE, conscientes de que não importa quanto mintam, porque a sua palavra será sempre tida em conta. Mesmo quando acusam um dos réus do desvio de um avião para Ponta Negra, e o advogado contrapõe: “Mas se desviou o avião, como é que está hoje aqui?” Nada mais simples: “Se não foi ele foi o primo, eles são todos iguais!”

Na teia do Plenário, recriamos Angola. Combináramos que, fugindo a longos discursos doutrinários, falaríamos do que, na nossa vida, nos levara a estar ali. Do que tínhamos visto, do colonialismo e do racismo observados ainda crianças, naturalizados e aceites por tantos à nossa volta, e que nos tinham parecido a nós inaceitáveis. Falei do Dundo, de ser criança branca no Dundo, da percepção infantil do privilégio e, também, do racismo e da exploração a que outros eram sujeitos.

Garcia Neto, negro, falou do professor que ao chamá-lo ao quadro pôs uma pistola em cima da mesa. Nervosos, os juízes interrompiam-nos, diziam que só tínhamos que falar das acusações que nos eram feitas. Lida pelo seu advogado, o jovem Mário Brochado Coelho, a longa defesa de Joaquim Pinto de Andrade, finalmente julgado depois de vários anos de exílios e prisões, arrancou lágrimas a muitos dos presentes.

No regresso a Caxias, na carrinha, a Zé e eu rememorávamos o que fora dito, mas sobretudo as caras, os sorrisos, as pessoas que há muito não víamos e tínhamos tido a possibilidade de rever. Mães, irmãs, irmãos, e as mulheres e namoradas dos nossos corréus. Rostos amigos. Era essa a paisagem que encheria as nossas celas até à sessão seguinte.

Distraída, por vezes o apito de um sinaleiro fazia-me levantar no banco e bater com a cabeça no tecto da carrinha. Era um gesto mecânico: na cadeia, duas vezes por dia, ao som do apito, púnhamo-nos de pé ao lado dos beliches, para a contagem. Levei muito tempo a perder o reflexo, como a habituar-me a acender e apagar as luzes e a abrir e fechar a porta do meu quarto…

A Zé foi libertada no final do julgamento, eu continuei em Caxias, partilhando até ao final a sala com a Graciete, depois da saída da Fernanda.

No dia da saída, o guarda de serviço ao corredor dos presos isolados permitiu-me ver alguns dos novos presos, meus conhecidos. E ao passar o gradão para o pátio houve outro guarda que chegou de motocicleta, parou junto a mim e disse: “Estava a ver que não chegava a tempo de lhe dizer adeus.”

Quando passei o portão e fui cercada pela família e amigos, não esqueci algo que sempre dissera que havia de fazer e prometera à Graciete depois contar-lhe: ir ao bairro em frente e, havendo um café, beber uma cerveja e perguntar pelo Vitinho. Pensara tratar-se de um miúdo pequeno e reguila, que deixava a mãe preocupada por não voltar a casa depois de escurecer. Não: o Vitinho era um jovem, o escurecer não lhe metia medo, a mãe tentava talvez impedi-lo de maus caminhos.

Não cheguei a vê-lo, mas pedi que lhe dissessem, e à mãe, como aquele grito de “Vitinho, vem para casa, Vitinho!”, me acompanhara durante os 20 meses que passara em Caxias, como sinal de um mundo exterior que me estava vedado.

Nessa noite, os amigos quiseram levar-me a jantar à Portugália: um bife com molho sem riscos de droga, cerveja gelada, café em chávena de louça. Risos. Histórias. Conversas que se entrecruzavam. Alguns criados pareciam perceber o que se passava, na sua gentileza acrescida.

E de uma mesa houve um homem alto que se levantou e veio dar-me um abraço fortíssimo e comovido. Era o Jaime Gama, com quem tivera divergências nas Associações de Estudantes, e que estivera preso algum tempo enquanto eu também estava em Caxias. Nesse momento, não havia espaço para divergências: apenas para a emoção de termos estado presos e ambos estarmos de novo em liberdade.

De casa, no Bairro das Colónias, a conversar com amigos, vi adormecer Lisboa. E, pelo menos nesse dia, era sem dúvida a mais bela cidade do Mundo.

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32 Comentários

  1. Comovi-me…
    É urgente dar mais valor à Liberdade e à Democracia! Cuidar dela com todas as forças.

  2. Não deu para matar saudades – deu para a voltar a ler …deu para “ouvir” o som da sua voz (e imaginar o timbre sarcástico, tão dela ) na sua despedida ao Artur Portela 🙂 E que bom é este (re)encontro nestas páginas.

  3. Obrigada por este magnífico testemunho de uma época que, para os mais novos, poderá parecer distante, mas que para a nossa geração, está bem presente e que é fundamental não deixar esquecer.
    Ao ler, visionei de novo o rosto de tantos amigos que também passaram por Caxias, recordei as conversas sussurradas, a preocupação da minha mãe a fechar as janelas, quando o meu pai e os meus tios faziam comentários que podiam ser ouvidos (e denunciados) pelos vizinhos.
    A minha Lisboa, que eu adoro, foi durante a minha infância e adolescência, um gigantesco “faz-de-conta” onde o que se dizia era cuidadosamente filtrado em função da confiança que nos merecia o interlocutor.
    Tempos tristes esses!

  4. Não passei por isso. Mas sabia. e no dia 26 de Abril, eu e a minha sogra chorávamos que nem umas loucas vendo abrir as portas de Caxias; a minha mais velha e as primas (5) perguntaram:
    -porque é que estão a chorar? E nós
    – porque estamos muito contentes… E ela
    – estão malucas. Vamos mas é brincar. A mais velha tinha 4 anos.

    Levei-as a Caxias duas vezes, para perceber que não estávamos malucas
    e tínhamos razão para estarmos a chorar de felicidade.

  5. Obrigado pelo seu depoimento. Não deveremos esquecer estes maus momentos para mais agora que o perigo do regresso de um novo fascismo nos ameaça.

  6. Obrigada! Momentos que não queremos que voltem. Viva o 25 de Abril. Viva a Liberdade.

  7. Tanta coragem, tanto sofrimento e a minha admiração e agradecimento.

  8. Obrigada. É preciso divulgar e perpetuar a memória desses tempos.

  9. Enorme admiração por ti, Diana. Um relato seco, mas tão comovente. Li e reli.

  10. Testemunhos destes deviam ser divulgados também nas escolas para que a memória de tempos passados sem Liberdade, possam ter eco nos tempos futuros.

  11. Obrigado, Diana Andringa!
    Para que não caia no esquecimento, é preciso avisar os mais novos.
    Como já lhe foi sugerido, reforço, venha um livro!
    Saudações Fraternas

  12. Li este seu texto por acaso. Diana… Só lhe queria dizer isto que não é novidade para si…
    Que bem que a Diana escreve, caramba; para além dos factos a humanidade e a ironia agarram-me do principio ao fim!

  13. Excelente texto que relata uma dura realidade. Texto que respira verdade. Parabens. Forte abraço.

  14. Muito obrigado Diana pelo testemunho maravilhosamente escrito, que deve ser arrolado, para não ser esquecido. Ao tempo da sua narrativa, eu estava na Guiné (70/72) o que me permitiu contactar mais de perto com a realidade do colonialismo, conhecer um poeta resistente e residente no Porto (de quem ouvi algumas vezes o poema “E tu aí sentado” com quem muito conversei) que foi preso, julgado e condenado a defender a Pátria, tendo ir parar à minha Companhia no mato e associar um dos passeios do General Delgado que passou na minha Rua entre a Cadeia do Limoeiro e do Aljube, nos idos de 58. Na próxima 2ªf (05abril) reabrem as escolas e tornamos a ir buscar a netinha na Escola Sampaio Garrido, na Praça das Novas Nações (Ex-Bairro das Colónias) e olharei para o prédio de que fala, relembrando-a. Obrigado

  15. Excelente testemunho, é preciso não deixar cair no esquecimento esses tempos negros. Partilhou a cela com a minha mãe, que mais tarde foi viver também para o bairro das colónias.

  16. Obrigada Diana Andringa e a todos os que lutaram , foram presos e torturados para que alcançassemos a Liberdade.
    Um artigo comovente que nos traz à memória os anos negros do fascismo, da Pide, da António Maria Cardoso, do Aljube, de Caxias.
    Obrigada pela resistência.

  17. Nessa época, existia uma solidariedade e uma ideologia comum que era combater a ditadura fascista.

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