Esta é a história de quatro amigas em tempos de pandemia. Estivemos mais de um ano sem nos vermos e, na semana passada, jantámos na minha casa. Lisboa estava na rua, o sol batia a direito em Monsanto, nós íamos ver-nos mais tarde e só não íamos para os copos à noite porque os bares estavam fechados. A última vez tinha sido há tanto tempo que uma ia no antepenúltimo namorado, outra tinha dez quilos a menos, outra ainda não tinha sido despedida. A última era eu, está tudo bem, obrigada.

A Mariana tinha acabado de chegar de Roma, onde passara dois meses no apartamento do Matteo, namorado de há menos de um ano, a comer pizza com batatas mal assadas. “Juro que pensei que fosse ananás”, disse-me, mas ele parecia tão contente que ela não achou que fosse de bom tom dizer-lhe que aquilo lhe metia nojo.

Tinham-se conhecido em Lisboa, quando ele ainda trabalhava na BCA. O teletrabalho chegou e ele achou melhor ir para casa, ver a sua cidade fantasma em vez desta cidade fantasma, e daqui à capital de Itália foram quatro horas de distância. Viam-se de vez em quando, rompendo todos os solavancos do amor: as viagens canceladas, as imposições dos governos, os dois testes de covid que deram positivo.

Nos primeiros cinco meses à distância, viram-se três vezes, e ela depois conseguiu uma bolsa da FCT, demitiu-se da Deloitte e eis a vida como nos filmes: uma mulher a lançar-se à Europa em busca do seu amor, ele como uma cavaleiro à espera, e o cliché romântico ali como um baluarte.

Depois, a vida: ela a trabalhar no doutoramento, ele a avaliar preços de carros suecos desde casa, um na mesa do quarto, outro na cama, e iam trocando de posição durante o dia, sufocados pelo espaço, pelos monitores, pela presença do outro. Passado um bocado, sufocados.

Foi uma relação intensiva, HD de defeitos e manias, quase casamento antecipado. Saíam para uns passeios e viam os destroços que há em Roma julgando que um e outro eram futuro. Como não achar que a vida é bela quando se ouve aquela língua dançada, as ruas se vestem de sépia, se calcorreia a estrada como quem brinca num museu?

Depois, já não houve volta a dar. Ele sentiu a falta de estar sozinho em casa. Ela não sentiu a falta de Lisboa, mas não teve outro remédio. O Matteo deu-lhe com os pés, a seguir fez-lhe ravioli, e quatro dias depois estava a Mariana no avião para Portugal, para o quarto de uma casa partilhada com mais duas pessoas, à espera dela e com pó.

Nos primeiros três dias, ainda se calou, nós nem sabíamos que já tinha voltado. Logo a seguir, eis o drama que já ninguém aguenta no pós-30. Ai que lhe doía o coração, ai que a falta dele era tão grave. E depois as frases de filme norte-americano: “A nossa relação morreu, parece que vou morrer também.”

Mas por amor de Deus. Estamos em 2021. Se até eu perdi a pachorra para o Werther, quanto mais ela. Ser adulta é aceitar que é hora de ceder ao cinismo, rir do exagero anacrónico, revirar os olhos, dar uma palmadinha irónica e dizer, sobranceira, “Isso passa-te.”

Um italiano de cabelo comprido tinha-a mandado à sua vida. Era óbvio que não ia morrer disso. Óbvio, óbvio, claro como água, tão certo como “al dente” ser tradução para “cru”.

Certo, falava italiano. Certo, deve ser romântico passear por Roma, cheirar pizza, achar que somos uma musa qualquer do Woody Allen. Mas não só não era bonito por aí além como não sabia cozer o raio da massa até ao fim, e ainda por cima só tinha 26 anos. Pelo menos agora a Mariana podia encontrar um qualquer que não se vestisse na Petit Patapon.

Telefonei-lhe e disse-lhe “Esquece mas é isso, a Tânia vem passar o fim-de-semana a Portugal”. Começou o relambório: ai porque o confinamento, ai o isolamento. Eu disse-lhe que não tinha tempo para conversas da treta e que aparecesse na minha casa às sete e meia. “Não, não quero nenhum vinho, já te disse 30 vezes que não bebo.” A sério que me custa travar amizade com esta gente e depois ter de voltar sempre à primeira vez.

A vida só vai para a frente e se há quem precise das amigas é a Tânia. Eu e a Mariana apoiámo-la sempre porque a vida que teve não foi fácil. Estudou Direito, saiu da Universidade top of the class, os directores dos doutoramentos tentaram agarrá-la, mas quem fica com 980 euros líquidos por mês quando percebe que vai ganhar o dobro e meio numa sociedade de advogados, maquilhar-se do bom e do melhor, vestir Massimo Dutti até quando vai para a cama?

Ganhou dinheiro, pintou o cabelo, ganhou respeito. Conheceu gente e, aos 33, foi trabalhar para o governo. A mãe estava orgulhosa, o pai chorou. A Tânia, claro, começou a ficar muito cansada e engordou.

Comprou uma casa na Penha de França. “Preciso de ter o meu espaço”, dizia, mas nunca tinha tempo para lá estar. Via a Almirante Reis às oito da manhã e saía do Parlamento horas depois de o sol ter chegado à Turquia. O homem mais presente na sua vida, logo a seguir ao ministro das finanças, era o bangladeshiano do Uber Eats que lhe ia levar sushi.

Estando metida naquela vida, começámos a ouvi-la dizer “Estou a ficar farta de Direito”, o que até se percebe em quem acha normal dizer coisas como “repristinar” e “sinalagmático” num almoço entre amigas, mas fomos adultas responsáveis, conformadas com a vida, e lá lhe dissemos que agora tinha de ser,  ninguém muda de carreira aos 37, ajoelhou, tem de rezar, mas ela começou a obcecar com fazer queques, e ainda por cima metia-se a dizer “muffins”.

Nós tínhamos medo de que ela engordasse mais. Tinha comprado uma bicicleta, mas deixou-a presa num poste a apanhar sol. Tinha comprado sapatilhas de corrida e usava-as para ir ao pão. Com uma carreira de sucesso, obcecava com bolinhos.

Quando deu por ela, em vez de estar a amassar farinha, estava a ser transferida para o Parlamento Europeu, e aí é que tudo descambou. “Trabalho muito mais”, queixava-se, e nós ouvíamo-la com pena porque a vida de Bruxelas não se compara à de Lisboa. “Falta-me gente, falta-me o sol, faltam-me as sardinhas”. O que não lhe faltava era o açúcar, e por isso lá dizia “Deprimo com aquela vida e meto-me a comer gauffres à noite”.

Pá, notava-se. Eu e a Mariana trocávamos olhares e não sabíamos se era melhor dizermos que era preciso ter cuidado, que era mais feliz quando andava metida no ioga e no sapateado, que às vezes é preciso cortar no abacate, ou se devíamos assumir que a partir de certa idade o corpo também cede e que não há como ter tudo na vida: dinheiro, cérebro, fatos, o orgulho dos pais e os glúteos da Rita Pereira.

Ela era nossa amiga, estava a passar pela situação difícil de ter de morar na Bélgica. E a Bélgica é um caos sem Tejo, um país que gosta de ver uma criança a urinar e que se gaba de saber fritar batatas. E em Bruxelas há todas as pessoas, desde Marisa Matias a Ioannis Lagos, desde refugiados a xenófobos. Capital de um país onde cabe tudo, nem nas línguas se entendem, até porque não falam as línguas uns dos outros. A característica comum a toda esta gente que vai trabalhar para o Parlamento Europeu é deixar de dizer waffles e passar a dizer gauffres.

Sim, também isso aconteceu com a Tânia. Achamos que conhecemos as pessoas, mas depois a vida acontece-lhes. E um ano sem nós transformou-a de magra em gorducha, de cansada em exausta, de amante de whey em engate de açúcar, de alguém que volta para casa a dizer nomes de doces em francês, e que acha normal lanchar um doce.

Tudo aquilo contrastava com a Filipa. Desde que tinha sido despedida que emagrecia como uma estóica. Primeiro, a empresa meteu-a a trabalhar em layoff. O Estado pagava os salários, ela recebia dois terços, o chefe queria que trabalhasse o mesmo, e ela nem quis acreditar quando se viu, na sua primeira segunda-feira dispensada, a acordar na mesma às oito da manhã para uma reunião em que os idiotas dos colegas diziam que precisavam de ajudar a empresa, porque eram uma equipa, eram família. “A empresa também nos ajuda, paga-nos os salários”, dizia a mais velha, prata da casa, sem perceber que, naquele momento, quem lhe pagava o salário era a vizinha.

 A Filipa aguentou-se assim dois ou três dias, depois foi lá de mansinho, “Mas é suposto continuarmos em layoff com este volume de trabalho?”. O chefe fazia-se de parvo, sorria, “Eu sei, eu sei, mas a empresa não aguenta as despesas”, esquecendo-se de que era ela quem tratava da facturação.

Um dia, bateu o pé: “Rogério, esta situação é ilegal.” O sorriso que ele pôs na cara foi o do cinismo escancarado. Ele bem sabia o que fazia, queria era meter mais uns ao bolso. Uma semana depois, a Filipa recebeu uma carta registada em que lhe era dito que a empresa já não podia continuar a contar com a sua colaboração. Na reunião seguinte, o palhaço do Rogério nem abriu a boca, mas ela, antes de ir embora, ainda foi a tempo de dizer “Colaboradora, o raio que vos parta”, e de riscar o disco RAM antes de o devolver.

Portanto, estávamos nisto: uma vinha revoltada com a vida porque tinha acabado com o namorado, outra estava irritada com o mundo porque só trabalhava e comia, e a terceira parecia o Mr. Lonely por ter perdido o emprego e ter deixado de comer. No meio disto, a Tânia lá conseguiu ser a melhor e disse à Mariana “Esquece o gajo, eu levo gauffres”, e ainda mandou à Filipa “Que maravilha, uns meses sem trabalhar”. Perante as olheiras de uma, que podia fazer a lassidão da outra?

Um ano e tal depois, estava então o jantar marcado. Perguntei se podia ser massa, mas lá veio a Mariana, “Ai, cenas italianas não”, e eu percebi logo que vinha choradeira, disse-lhe que inventaria qualquer outra coisa e que ia ficar sem dados móveis.

Nessa mesma tarde, fui passear para Monsanto. De vez em quando, tenho saudades de andar no monte, do cheiro a pinho (sei lá se é pinho), do barulho dos galhos partidos pelos meus pés. Nessa incursão, vi uns cogumelos e uma cena qualquer parecida com aipo ou alho-francês ou o caraças. Como cresciam ao ar livre, achei que eram biológicos, sempre dariam para impressionar mais do que o gelado que comprei em promoção no Lidl.

Em casa, fiz um estrugido meio à pressa, meti-lhe chouriço só porque sim, e fiz um risotto a achar que ia tudo correr bem. Nunca tinha feito um risotto, mas para quem padece de optimismo crónico não é preciso um plano b. Meia hora depois, a metade de baixo estava colada ao tacho, mas safei metade do arroz.

 Ainda bem que meti chouriço. Podia inventar que o prato tinha carne e que ia fazer uma alternativa vegetariana para mim, razão pela qual me preparei para ferver água para os noodles instantâneos do Pingo Doce, cuja embalagem diz que são de frango, mas que toda a gente sabe que são de glutamato.

A Filipa foi a primeira a chegar e aquilo não era magreza, era um estado cadavérico. Sentiria assim tanto a falta de usar fórmulas no Excel? Nem comentei, disse-lhe só para guardar o casaco no meu quarto e para ir para a sala aviar o camembert. E depois menti, claro: “Estás com bom ar!”. Não nos víamos havia muito, havia uma etiqueta a cumprir.

Depois, veio a Mariana com a Tânia. A segunda trazia gauffres, a primeira um coração embalsamado. Foram pousar malas e casacos, e a Tânia ainda comentou “Ah, que giro, tens um quadro do Eça de Queiroz no quarto”. E é verdade, eu tenho um quarto sexy, lençóis brancos, velas, quadros de escritores, prateleiras embutidas, estantes, livros de nerd, que vão desde biografias do Antero de Quental que nunca li a estudos sobre as variações do verbo comer em português europeu. Achei que era nisso que ela estava a reparar, mas nada, zás, embrulha, Ana Bárbara: “Odiei Os Maias.” O meu amor partido levou ali um tiro, mas ripostar para quê? Eu sei que aquele quadro é um show off, sei que já ninguém quer saber do Eça de Queiroz. Até eu, por exemplo, já só tenho olhos para o trineto, e só não o convidei para o jantar porque da última vez que cá veio me partiu uma cuvete.

O jantar foi uma alegria. A Mariana ainda disse “Ah, não sabia que agora eras vegetariana”, mas não achou demasiado estranho que eu comesse como uma universitária porque a vida era Matteo, Matteo, Matteo. Comeram o risotto à vontade e não lhes soube a queimado. A Mariana e a Filipa comeram pouco, a Tânia comeu como uma alarve. Quarenta minutos depois, tínhamos o INEM à porta.

Não sabíamos se podíamos acompanhá-la, mas, pelo sim, pelo não, a Filipa foi de carro atrás. Ainda bem. Assim que chegou ao hospital, também lá ficou. Em casa, eu chamava o INEM pela segunda vez.

 A Mariana ainda me perguntou se também ia, eu não quis ser pessimista, disse que ficava, e que tinha de pôr a louça a lavar na máquina. E sentia mesmo que comigo estava tudo bem.

Depois chegou o boletim médico. Ninguém avisou, mas parece que não é boa ideia apanhar cogumelos à toa, e que a família do aipo parece a do Corleone. Irritou-me ficar sozinha em casa. Nesta altura, ainda tinha fome de contacto social, e também tinha fome a sério porque 85 gramas de noodles não fazem grande coisa, ainda que pelo menos tenha ficado com gauffre atrás de waffle e com uma embalagem de mirtilos que a Tânia também trouxe.

Quanto às minhas amigas, morreram todas.


Ana Bárbara Pedrosa

Veio para Lisboa estudar Literatura em 2012. Daqui só saiu para o Brasil, onde, à portuguesa, teve saudades dia e noite. Regressada, escreveu Lisboa, chão sagrado e a cidade foi a diva onde se perderam personagens. Anos depois, numa casa em Benfica, foi ao Médio Oriente e escreveu Palavra do Senhor. No mesmo sítio, meteu a cabeça em Vizela e escreveu Amor estragado. Para os de cá, tem sotaque minhoto; para os de lá, engravatado.

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