Não me recordo – culpa minha, que vivi pouco e não tenho a melhor memória – de se carregar num ano tanta expectativa como aquela que o mundo inteiro deposita em 2021.

Se parece certo que esta peste invisível andará por cá muitos anos, é igualmente verdade que a viragem da década foi celebrada com brindes a um ano de recuperação, de cura. Um ano de caras lavadas, de sorrir com a boca, e não com os olhos, e quem sabe, lá pelo Natal, de abraços apertados e beijos em bochechas sedentas de toque e de afeto.

Dois mil e vinte e um não cheira a recomeço: cheira a tempo novo, de regras por conhecer, de metas e transformações que ainda vamos descobrir para depois erguer nas cinzas do que tivermos de abandonar.

Quem andou pelo Chiado, há exatamente 150 anos, talvez tenha sentido um cheiro parecido a tempo novo, se acaso passou à porta do Casino Lisbonense. Aí, entre maio e junho de 1871, um grupo de jovens da minha idade organizou um conjunto de “Conferências Democráticas” que causaram à época enorme comoção numa monarquia constitucional em final de vida.

Eça de Queiroz, Oliveira Martins, Antero de Quental, Ramalho Ortigão e Guerra Junqueiro na segunda Conferência do Casino.

Organizadas pelo grupo do Cenáculo, e sob a liderança de um Antero proudhoniano, as Conferências do Casino serviram de palco, em Portugal, a ideias que começavam a fazer o seu caminho na Europa, e que são hoje, muitas delas, esteios constitucionais e civilizacionais.

Num Portugal conservador, onde a Igreja Católica desempenhava ainda um papel fundamental e era rei Luís I, o Popular, esse grupo de jovens achou por bem propor a discussão da separação do Estado e da Igreja, a crítica de um ensino subjugado à religião, a promoção da liberdade de pensamento, a discussão sobre o socialismo, a república e a democracia.

Escrevia, sobre as Conferências, Antero a Teófilo de Braga: “Temos um programa, mas não uma doutrina: somos associação mas não igreja: isto é, liga-nos um comum espírito de racionalismo, de humanização positiva das questões morais, de independência de vistas, mas de modo nenhum impomos uns aos outros opiniões e ideias”.

O objetivo era assim mais do que propor uma nova estética artística e literária: era o de inserir no debate público uma discussão sobre uma nova maneira de pensar o mundo e a sociedade, e que ganhava forma, ainda que efêmera, numa outra capital europeia.

É que também na Paris de há 150 anos o cheiro era de tempo novo. A 18 de março de 1871, em reação à mais que previsível abdicação francesa frente aos prussianos, grupos de revolucionários parisienses expulsaram o governo francês para Versailles e inauguraram aquele que se diz ser o primeiro governo proletário da história: a Comuna de Paris.

Entre os decretos implementados contam-se os que decretaram a separação da Igreja e do Estado, a laicização completa do ensino, a abolição do trabalho infantil, e um sem número de medidas laborais de defesa dos trabalhadores.

Organizaram-se movimentos de mulheres revolucionárias, que exigiram igualdade de género e de salários, o direito ao divórcio, à educação e o fim da distinção entre descendência legítima e ilegítima.

O papel das mulheres na Comuna de Paris.

A esse sopro de tempo novo juntava-se um quê de tempo velho: a perseguição à imprensa pró-Versailles, aos membros da igreja, e a qualquer pessoa suspeita de simpatizar com o Governo francês, prova que cada sistema – independentemente do seu bem maior – começa sempre por se livrar daquilo que o ameaça.

A Comuna de Paris durou pouco tempo: em 21 de maio de 1871, um dia antes de começarem as Conferências do Casino em Lisboa, o exército francês entrou na cidade, e iniciou-se uma semana de conflitos sangrentos. Entre barricadas, batalhas na rua, incêndios e execuções, não se sabe quantos milhares morreram por uma utopia com dois meses de vida.

Imagens histórias da Comuna de Paris, em 1871.

Por trás da Comuna de Paris e das Conferências do Casino, um mesmo sopro de liberdade, um mesmo impulso de libertação. Em França, como sempre, entre fogo e revolta. Em Portugal, já se sabe, com o seu quê de bom comportamento.

Porque foi sem sangue, apesar do grande alvoroço, que a 26 de junho de 1871 o Governo português proibiu, ao fim da quinta de dez conferências agendadas, a continuação daquele sonho juvenil de discutir um novo Portugal em público.

O decreto do Marquês de Ávila e Bolama que proibiu as Conferências afirmava que aquelas “expõem e procuram sustentar doutrinas e proposições que atacam a religião e as instituições do Estado”. Tinha inteira razão, o Marquês: eram aquelas ideias um ataque às instituições do Estado, que umas décadas depois caíam para deixar erguer, também pela mão do grupo do Cenáculo, a República portuguesa.

O ato da censura, como sempre, só serviu para atiçar um fogo que já tinha manchado com o sangue de mártires as ruas de Paris. A censura nunca mata ideias pelas quais se morre: para o bem e para o mal.

Hoje leio a história da Comuna, e a história das Conferências, e penso no tanto que se andou, e no muito que falta andar.

150 anos volvidos, os movimentos feministas que já conquistaram o voto e a dignidade da cidadania, continuam a sua luta pela igualdade de direitos, de tratamento, de salário. Marca-os a já famosa expressão memeficada na internet: “não acredito que ainda estou a protestar esta merda”. As feministas francesas da Comuna de Paris subscreveriam a blague.

A estes juntam-se outros movimentos, de pessoas sem voz. Quando manifestações antirracistas tomaram as ruas americanas e europeias, no verão de 2020, quando se fizeram cair estátuas de símbolos coloniais, foi também nas Conferências que pensei, e na crítica que Antero então fez, no segundo dia, aos “descobrimentos”, que ainda hoje eriçariam o pelo patriota a muito historiador português de 9.º ano.

Todo o grupo que organizou as Conferências do Casino, jovens, revolucionários, para mudar mentalidades: a geração de 70, 1870.

Apontando-os como uma das três grandes causas da decadência dos povos peninsulares, lemos-lhe a pergunta que magoa, mas que é certeira: “como era possível, com as mãos cheias de sangue, e os corações cheios de orgulho, iniciar na civilização aqueles povos atrasados, unir por interesses e sentimentos os vencedores e os vencidos, cruzar as raças, e fundar assim, depois do domínio momentâneo da violência, o domínio duradouro e justo da superioridade moral e do progresso?”.

E acusava: “A conquista da índia pelos Portugueses, da América pelos Espanhóis, foi injusta, porque não civilizou. Ainda quando fossem sempre vitoriosas as nossas armas, a índia ter-nos-ia escapado, porque sistematicamente alheávamos os espíritos, aterrávamos as populações, cavávamos pelo espírito religioso e aristocrático um abismo entre a minoria dos conquistadores e a maioria dos vencidos.”

Para lá destes temas que em 150 anos permanecem atuais, há hoje outros que se levantam e cuja discussão é frequentemente evitada ou interrompida por entre gritos frenéticos e posições de princípio de moralidade duvidosa.

  • A censura, cujo monopólio o Estado perdeu, e que é hoje partilhada por meia dúzia de empresas privadas americanas.
  • O sistema de segurança social, assente em pressupostos etários ultrapassados, e condenado a explodir na mão das próximas gerações.
  • O sistema de saúde, que se é insuficiente e se é insustentável, tem pelo menos de ser discutível.
  • O papel dos partidos numa sociedade que não confia em partidos, e a forma como os representantes prestam contas ao povo.
  • O crescimento económico enquanto métrica do sucesso do país, e os salários baixos enquanto âncora do nosso marasmo.
  • As alterações climáticas e os sacríficos que elas vão impor à forma como vivemos e consumimos e produzimos.
  • A queda de Lisboa enquanto cidade-estado para que renasça uma Lisboa que seja cidade-casa, e o nascimento de um Portugal com vários centros políticos, económicos e culturais.

Estes temas, que escaldam faces e engrossam vozes à esquerda e à direita, merecem espaço, debate amplo, porque vão definir mudanças drásticas – e mais drásticas ainda se não discutidas, ponderadas, acabando por se nos impor, ou aos nossos filhos, ou aos nossos netos.

Temos de os discutir, já! Dizia Antero, nessas Conferências lisboetas: “Que seria dos homens se, acima dos ímpetos da paixão e dos desvarios da inteligência, não existisse essa região serena da concórdia na boa-fé e na tolerância recíproca?”. Digo eu, n’A Mensagem de Lisboa: Que será de nós, que não temos tido para as questões que importam mais do que ímpetos da paixão e desvarios da inteligência?

Há 150 anos, pedia-se democracia e república. E hoje pergunta-se, que democracia e que república? A uns, esta pergunta cheira a sangue e a fim de linha, como cheirou a Mussolini quando, 50 anos depois da Comuna de Paris e das Conferências do Casino, e 100 anos antes destas linhas que vos escrevo, fundou em Itália o Partito Nazionale Fascista.

A mim cheira-me ao tempo certo para recuperar o espírito da Geração de 70, reunir com quem quer discutir o Portugal do século XXI, e organizar umas Novas Conferências Democráticas para discutir aquilo que será fundacional, estruturante, novo e transformador no país e no mundo pós-pandemia.

Está na altura de voltar a apelar e a fazer uso de uma tradição perdida, que é a de debater livremente e com respeito. Dizia Antero: “não pretendemos impor as nossas opiniões, mas simplesmente expô-las: não pedimos a adesão das pessoas que nos escutam; pedimos só a discussão: essa discussão, longe de nos assustar, é o que mais desejamos, porque ainda que dela resultasse a condenação das nossas ideias, contanto que essa condenação fosse justa e inteligente, ficaríamos contentes, tendo contribuído, posto que indiretamente, para a publicação de algumas verdades”.

É esse o exercício a recuperar nesta entrada nos anos 20 do século XXI: o uso revolucionário do direito ao encontro, à partilha de ideias, à projeção do futuro.

E se o fizermos, que o façamos ainda melhor: em vez de uma conversa de homens iguais, uma conversa entre pessoas diferentes; em vez de um clube de elites, um movimento sem castas. É esse o tempo novo, assim o saibamos concretizar.

Ler mais crónicas de João Marecos, aqui

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