Receba a nossa newsletter com as histórias de Lisboa 🙂
Por estes dias, em que nos sobra por vezes o tempo, dei por mim a ler sobre um assunto que me enfada. Resumindo: o jardim da Praça do Império, em Belém, vai ser renovado; existiam ali, desde os anos 60, uns brasões florais que simbolizavam as províncias ultramarinas; muitos desses brasões já não existem há décadas; uma petição de cidadãos acusa a câmara de “com o propósito claro, indisfarçável e puramente ideológico de remover os brasões, em particular os que aludem ao antigo Ultramar português”, praticar “um ato de lastimável talibanismo cultural”. A isto chama-se, dizem-me, “cancelamento cultural”.
Vou então dar um passeio higiénico, na ponta oposta da cidade. Subo a encosta íngreme da Alameda D. Afonso Henriques, percorro a agora deserta Rotunda das Olaias, viro à direita na esquina do antigo Zé dos Frangos (onde comi, pela primeira vez, javali) e olho para a bifurcação de duas ruas, dos anos 50 e 60, que percorria diariamente a pé há 40 anos, quando ia para a escola.
“Se há uma “cultura do cancelamento”, e em Lisboa se apagam os símbolos derrotados do passado, e tudo isso é feito por “talibanismo”, então este bairro teria perdido aqueles estranhos nomes de ruas que decorei com 5 anos para que um dia (que é hoje) os pudesse preencher com biografias”
Tudo é como me lembro. As varandas, as portas de alumínio, e a toponímia ímpar de um dos bairros mais vermelhos da cidade, na freguesia do Beato. Se há uma “cultura do cancelamento”, e em Lisboa se apagam os símbolos derrotados do passado, e tudo isso é feito por “talibanismo”, então este bairro teria perdido aqueles estranhos nomes de ruas que decorei com 5 anos para que um dia (que é hoje) os pudesse preencher com biografias.
Opto por virar à esquerda, na bifurcação. Sigo pela Rua Engenheiro Maciel Chaves – não por ideologia, mas por conveniência, porque por ali posso ver a igreja e o mercado, onde de segunda a sexta me encontrava com a professora Rosário e via passar o senhor Joel Pina, alto, sorridente, com a sua viola baixo pesada numa brilhante capa preta. Se tivesse virado à direita desceria a Rua João Nascimento Costa, o terceiro piloto do paquete Santa Maria, que foi morto a tiro na Operação Dulcineia, quando um grupo de resistentes das ditaduras portuguesa e espanhola capturaram o navio e lhe deram um nome poético, de Santa Liberdade.
Os nomes das ruas não nos interpelam assim. As ruas têm pedras lioz recortadas, prédios que nos trazem sombra no verão e varandas que nos poupam da chuva no inverno, são bonitas ou feias, levam-nos daqui para ali. As placas com os nomes ajudam-nos a orientarmo-nos na geografia, não tanto na ideologia.
Quem era o engenheiro Maciel Chaves, que me dava o prazer de ver tanta gente de quem gostava (e outros que admirava sem realmente conhecer, como o imponente Ricardo Ferraz, antigo boxeur, que brilhava na TV, na Vila Faia, e no cinema, no Kilas o Mau da Fita)? A biografia é breve: Maciel Chaves foi um silvicultor que foi morto a tiro, jovem, com 34 anos, no então Estado Português da Índia, depois de ter escrito uma tese chamada Contribuição para o conhecimento dos carunchos em Portugal.
Eu e a Xana estávamos todos os dias da semana à porta da Igreja, depois do almoço, com as nossas malas de couro, enquanto esperávamos pela professora Rosário, que morava no prédio em frente ao de Joel Pina, mesmo ao lado do mercado. Se algum de nós soubesse quem eram aqueles homens cujos nomes se liam nas esquinas, talvez conhecêssemos melhor o bairro que os homenageia. Mas descer aquelas ruas, há 40 anos, não nos punha a pensar no passado.
“Há quarenta anos, digam o que disserem sobre o PREC, o ‘cancelamento cultural’ ou o ‘talibanismo’ de uma junta de freguesia que deu perto de 70% aos partidos de esquerda nas últimas autárquicas, as placas das ruas sobreviveram”
Desço agora a Rua Frei Fortunato de São Boaventura, que era um miguelista dos sete costados, transparente nos títulos da sua obra: O Francezismo desmascarado, ou exame das formas de que actualmente se revestiu aquela manhosa seita; A religião offendida pelos seus chamados protectores. Por aí abaixo, o Frei Fortunato acaba, na toponímia, na Calçada do Carrascal, onde não há vestígios dos pequenos carvalhos-quermes que a baptizaram.

Mas os nomes das ruas perpetuam um tempo concreto. O Estado Novo homenageou aqueles que o defenderam, ou são exemplo para a sua propaganda. Há duas ruas íngremes, paralelas, que destacam os feitos de Frederico Perry Vidal, um advogado, que morreu em 1953, e escreveu monografias históricas sobre a descendência de D. João VI, e Silveira Peixoto, um bandeirante açoreano, que explorou o Paraná brasileiro e esteve preso oito anos em Buenos Aires.
Há quarenta anos, digam o que disserem sobre o PREC, o “cancelamento cultural” ou o “talibanismo” de uma junta de freguesia que deu perto de 70% aos partidos de esquerda nas últimas autárquicas, as placas das ruas sobreviveram. Desde 1976 que a junta é ganha ora pelo PS, ora pelo PCP. E ainda lá estão, hoje, as placas colocadas pelo Estado Novo, mostrando uma diferença cada vez mais ténue entre os prédio “novos” (com varandas e portas de alumínio) da Maciel Chaves, e os prédios coloridos e estreitos das ruas de baixo. Hoje há um Divine Hostel que fica quase em frente da antiga loja de peles do senhor Dinis Jaime, que ficava no rés-do-chão do “prédio americano”, cinzento, com pilares rectangulares e uma espécie de varanda por onde se acede aos andares de cima, um acrescento que o tempo trouxe a uma rua de tabernas, lugares de fruta e legumes, talhos, drogarias, oficinas. Foi ali que comprei a alça da minha primeira guitarra, em couro castanho. Hoje reconheço pouco do que vejo.
Só agora consigo sorrir quando chego à “praceta”, como lhe chamávamos na altura, que homenageia Sócrates da Costa. Eu descia, por esta altura do ano, de capa alentejana de lã e gola de pelo, e dali já se via a escola. Sócrates da Costa morreu em Novembro de 1959 e ganhou logo uma placa, em Janeiro de 1960. Foi um notário de Margão, deputado da União Nacional, que liderou a Mocidade Portuguesa na Índia.
A minha escola, por alguma razão, era a nº 28. Nunca soube resolver o enigma da numeração. Onde estavam as 27 que a antecediam? Por que a antecediam? Com que critério? E quantas mais haveria? Estaria a minha escola a meio da tabela desta graduação? Agora a escola chama-se Engenheiro Duarte Pacheco, que foi ministro das obras públicas, e presidente da câmara de Lisboa, nos primórdios do regime de Salazar. O seu nome foi escolhido em democracia.
Depois da praceta, onde hoje vemos prédios, repetidos, e ruas com nomes (Fábrica da Estamparia, Fábrica das Moagens, Fábrica de Tecidos Lisbonenses) estavam, há 40 anos, as barracas. Era onde morava o Pantaleão, um miúdo tímido, filho de um talhante.
Um pouco à frente, passando o portão de ferro do campo do Vitória Clube de Lisboa, morava outro dos meus amigos. Ele tinha uma casa, pequena e estranha, ao lado dos balneários, que era invejável para mim. O pátio era o campo de futebol, com as balizas enormes, bolas oficiais com fartura. Se ninguém lá estivesse a treinar, podíamos jogar. Se estivessem os jogadores, melhor ainda, porque podíamos copiar as fintas do Pedro Paulo.
O meu amigo era do Exército da Salvação, e por isso recebia prendas no Natal. Eu cheguei a invejar uma caixa grande de Playmobil que ele me mostrou e quis seguir essa duvidosa inspiração religiosa (ao que sei, que nem baptizado sou, pecando). Fui falar com uma senhora, que usava uma farda militar azul, à sede do Exército da Salvação, que ficava ali a dois passos. Ela olhou para mim e mostrou-me que estava errado sobre as prendas. Eu não as receberia, disse-me, numa frase que eu não entendi: “O Paulo é um menino, o seu amigo é um moço.”
“Numa toponímia esquecida pela democracia que tinha mais que fazer, o meu percurso diário, sei-o agora, fazia-se pelo lado derrotado da história”
Esta foi a lição sobre desigualdade que demorei algum tempo a entender. Que nós éramos todos diferentes, eu sabia. A Florbela e os irmãos, por exemplo, sentavam-se nas filas de trás da sala 4 da escola. Tinham muitos anos, uns 14, sei lá… Eram ciganos, vestiam-se (como eu, que tinha uma capa alentejana) à velhos, com fazendas cinzentas escuras e pretas, e estavam geralmente calados nas aulas (quando eu mandava bolas de papel à Luísa). Um dia perguntei-lhes porque vinham à escola, com aquela idade. Um deles disse-me que precisava de aprender a ler para tirar a carta de condução. Eu não fiz caso, porque não chegava com os pés aos pedais do Ford Anglia amarelo do meu pai.
Hoje, a barraca do Pantaleão, e as outras, já não apertam o caminho daquela azinhaga para as traseiras do campo do Vitória, onde morava o meu amigo. À frente da escola estão prédios, onde se penduram muitas senhoras à janela.
Numa toponímia esquecida pela democracia que tinha mais que fazer, o meu percurso diário, sei-o agora, fazia-se pelo lado derrotado da história. A igualdade estava a despontar, e não envelheceu bem naquele bairro de classe média baixa, onde moravam professores, operários, músicos, comerciantes, funcionários públicos, e onde “morar” era também ter um clube, um grupo de teatro, tertúlias em cafés, livraria, fotógrafos, restaurantes, lojas de brinquedos, farmácias e até um talho de carne de cavalo – o mais misterioso dos comércios, onde nunca entrei.
O Estado Novo deixou o bairro desigual, como o conheci, cheio de barracas, e fazia da minha sala de aula uma mistura de “meninos e moços”, como diria a recruta Tininha, na farda azul do seu exército religioso. A democracia começou por fazer o que era urgente: construiu prédios onde antes estavam as barracas. Muitos prédios, quase todos iguais, onde vivem agora muitas pessoas. Mas o plano não devia ter acabado ali. A toponímia revela-o, ainda hoje, na Rua Impasse C (que podia ser a Rua Joel Pina, ou a Rua Ricardo Ferraz).
O impasse mudou o bairro. No início dos anos 80, um empreendimento imobiliário do ex-Presidente do Benfica, Fernando Martins, estratificou tudo ainda mais. Nas Olaias passaram a viver milhares de pessoas – até jogadores de futebol com cromos nas cadernetas – havia um centro comercial, um videoclube, uma piscina.

Quando as barracas foram destruídas, nos anos 90, as ruas do meu passeio para a escola, com aqueles nomes do passado, passaram a ser a zona decadente, por comparação. Como na economia, não há nenhuma escala ascendente milagrosa. A igualdade é uma bela ideia, mas precisa de tempo, e persistência, vemos hoje, descendo a rua do frade absolutista que detestou a Revolução Francesa. Hoje já não sei onde compraria equipas de Subutteo, ou pediria bichos da seda e folhas de amoreira. As lojas são quase todas iguais, mercearias abertas por imigrantes, os passeios são diminutos e os carros estacionados transformam as ruas que me pareciam largas em azinhagas. A igualdade não polariza, não apaixona quase nunca, é apenas aquela sensata “banalidade do bem”, como lhe chamou Tony Judt, praticada sem ganhos visíveis, imediatos, que elejam políticos e animem debates televisivos. A igualdade é a cultura que embeleza as ruas.
Lembro-me do nome completo do meu amigo que nunca mais vi. Pesquiso-o no Google: Há muitos anos recebeu um indulto do Presidente Jorge Sampaio “pelo esforço desenvolvido na sua reinserção social por via do estudo”.
Essa é a frase que gostaria, um dia, de poder ler numa placa de rua, abaixo de um nome, porque é honesta e simples, e conta uma história exacta de Lisboa.

Paulo Pena
Estudou jornalismo. Durante 15 anos foi repórter, e editor, da revista semanal Visão: Em 2014 mudou-se, como grande-repórter para o jornal diário Público. Entre 2018 e 2020, foi grande-repórter do Diário de Notícias. Escreveu três livros de não-ficção e uma série de ficção televisiva (Teorias da Conspiração, RTP, 2019). É um dos fundadores da cooperativa europeia de repórteres de investigação, Investigate Europe.
Um prazer lê-lo, fazer consigo este passeio que desmistifica o tal cancelamento cultural e o talibanismo dos ignorantes limitados ao consumo de slogans ocos.
Andei por aí algumas vezes. Aposto que o restaurante que servia javali (foi lá que o experimentei) era um que tinha um talho ao lado, parece-me que do mesmo dono.
Parabéns.
Exatamente! Era esse, o do talho.
Muito obrigada. Escreva mais.
Excelente reportagem. Também vivo aqui há mais de 55 anos…E no 25 de Abril pensei que iam alterar o nome do Nascimento Costa, que sempre me fez impressão. As alterações são tal e qual como conta, eu costumo dizer de brincadeira que mudei de estatuto sem mudar de casa: dantes morava junto da Calçada da Picheleira, e depois passei a morar junto das Olaias 🙂
Excelente artigo, “venham mais cinco”
Parabéns
Manuel Lopes
Olá! Mesmo não sendo lisboeta, sou do norte e tripeiro, vi- me a calcorrear essas ruas, de cabeça atenta aos seus nomes. E gostei! Parabéns.
Obrigado. Bem me parecia, mas tinha esquecido o nome. Um outro prato por lá, quando privilegiava a carne, era um de vitela, que alternava com o javali, que não conhecia até então como carne que vai à mesa.
O artigo fez-me lembrar as terras do Vale Escuro onde jogava à bola, aos sábados quando saia da Nuno Gonçalves (era meu colega o Victor Damas), e tive a minha única bulha com o Bota Fogo (alcunha de colega de turma), mesmo contando os 23 meses na Guiné. Quem diria que, volvidos 60 anos, eu residiria na Francisco Pedro Curado que ganhou o cognome de «Condestável de Rovuma» por se ter distinguiu na luta contra os alemães em Moçambique, entre 1916 e 1918, e a partir da publicação do Edital municipal de 23/03/1954 ganhou expressão na toponímia de Lisboa ao dar o seu nome à Rua nº 3 do Vale Escuro.