Ana Sofia Serra/CML

Sheyla Ventura é imigrante, poupou um ano para comprar a sua primeira bicicleta em Lisboa, e teve a sua primeira experiência à chuva num outono molhado que uma brasileira está habituada a agradecer aos céus. A chuva “é uma coisa meio sagrada”, sobretudo quando se vem “de um lugar que é meio de seca”, conta. Foi num dia de temporal, que até começou com “um sol lindo” que Shey teve a sua primeira experiência: a chuva, intensa, chegou, e apanhou-a já perto da Rua Augusta, a meio da viagem entre Arroios e Alcântara. “Briguei com carro, com motoqueiro, com todo o mundo e a chuva caindo torrencialmente”. 

A Gigi, como chama à sua bicicleta de uma velocidade, é “pobrinha”, não tem pára-lamas e o asfalto acidentado desafia-a. “Os carros estavam a brigar comigo porque eu estava no meio – mas eu aprendi que era o certo: se você vai perto das portas, pode sofrer um acidente, se está nos carris do elétrico, pode sofrer um acidente, então vem mais para cá”.

Sheyla Ventura com o seu impermeável, apesar do sol, no Jardim Constantino, em Arroios. Foto: Frederico Raposo

É verdade. Com sol, mas sobretudo com chuva, a MUBi – Associação para a Mobilidade Urbana em Bicicleta – aconselha os ciclistas à adoção da posição primária: isto é, a ocupação do centro da via de trânsito. Esta é, segundo a associação, “uma posição para onde os condutores tendem a dirigir a sua atenção de modo natural”.

A adoção desta posição na via pública está prevista pelo Código da Estrada. A revisão de 2014 do documento veio introduzir o conceito de Utilizador Vulnerável, estatuto que abarca os utilizadores de bicicleta e lhes concede especial proteção, obrigando os condutores de veículos motorizados a uma atenção particular perante estes. No artigo 90º, é o próprio Código da Estrada a prever que os condutores de velocípedes possam conservar das bermas “uma distância suficiente que permita evitar acidentes”.

“Não és feito de açúcar. Pega numa capa, dá para ir”

Shey reclama por mais empatia na estrada. Naquele dia de temporal, chegou ao trabalho “completamente encharcada”, mas isso não lhe tirou o bom humor, assegura. A sua Gigi dá-lhe “liberdades”, “mesmo com chuva a bater”. “A liberdade que eu tenho em chegar ao meu trabalho, sem trânsito, de Arroios até ao LxFactory, você vê a ponte, o céu, não tem como. Acho que uma pessoa num carro não tem a mesma perspectiva que a gente tem”.

Por outro lado, “a pessoa do carro não tem consciência de que está num veículo de uma tonelada, protegida no quentinho, sem chuva. Não respeita o da mota, o da mota reclama com você, que está na bicicleta – e deveriam ser mais unidos nisso”. E o problema “não é a chuva”, diz. O problema “são as pessoas. É sempre assim”.

Se amanhã chover, Shey volta a ir de bicicleta, garante. Mas deixa um aviso: “Não és feito de açúcar. Pega numa capa, pega em qualquer coisa, dá para ir”. Enfrenta a chuva com um impermeável de uma cadeia de hipermercados e não vê necessidade de comprar coisas de marca, até porque vem “de um lugar em que as pessoas colocam um saco de plástico no pé e vão”. À chuva, especialmente à chuva, importa estar bem equipado. Mas não é preciso gastar muito, garante.

Lisboa de bicicleta, à chuva, antes da pandemia. Vídeo: Frederico Raposo

Shey diz que não é “expatriada, digital nomad”. Nada “dessas porras, é tudo balela”. É imigrante. Vem de São Paulo, no Brasil, e antes de chegar a Lisboa, em 2018, passou pela Nova Zelândia e pelo Texas, nos EUA, onde já tinha estado tentada a comprar uma bicicleta. Mas foi “impossível” – sentia-se insegura e acabou por apostar em andar a pé.

Mesmo quando chegou a Lisboa, não teve logo a “coragem” que considera ser necessária para pegar na bicicleta, mas começou a usar as bicicletas Gira, da sua casa de então, no Saldanha, até ao campus de Campolide da Universidade Nova de Lisboa. Conheceu várias pessoas da comunidade de utilizadores de bicicleta de Lisboa, que lhe ensinaram os caminhos da cidade, e perdeu o medo. Ainda está a iniciar-se, mas a sua Gigi é tão leve” que já sobe a Almirante Reis “sem nenhum problema”. 

Com 33 anos, Shey, como é conhecida pelos seus amigos, tem uma agência de marketing digital, com clientes no Brasil, e, até há pouco tempo atrás, trabalhava num café de Alcântara, no LxFactory. “Tenho de ter dois empregos para conseguir viver”, diz. “Estou à procura de uma vida melhor e a maior alegria da minha vida foi ter comprado a minha primeira bicicleta em Lisboa”. A Gigi custou-lhe 159 euros, “muito” para quem tem de sujeitar-se às taxas de câmbio, e, para a comprar, contou com o apoio do programa de apoio à aquisição de bicicletas da Câmara Municipal de Lisboa, que lhe devolveu metade do valor investido.

Impermeáveis para toda a chuva

João Leiria também considera os impermeáveis indispensáveis. “Compram-se baratos”, nuns sítios, e “compram-se mais caros”, noutros, afirma. Garante que “não é uma questão de preço”. Nos dias em que chove, a sua rotina não muda: é tradutor, tem 42 anos, e leva as suas duas filhas, com 5 e 7 anos, até à escola na sua longtail – uma bicicleta com uma geometria de quadro diferente da tradicional, mais comprida na parte traseira para acomodar mais carga ou mais passageiros.

Para garantir que as filhas chegam secas à escola, comprou fatos de neve “maravilhosos” por cinco euros, numa loja de roupa em segunda mão da Avenida Almirante Reis.

A roupa certa pode assegurar uma chegada seca ao destino, mas os dias de chuva inspiram cuidados suplementares – entre outros, há que assegurar que se é visível na estrada, entre o demais trânsito. João Leiria reconhece que “é bastante mais perigoso andar com chuva”, mas a sua bicicleta, que recentemente dotou de assistência elétrica, está equipada com travões “excelentes, que não vão falhar” e com bons pneus.

Os dois anos e meio que leva a deslocar-se diariamente de bicicleta em Lisboa já lhe ensinaram o que pode, ou não, fazer. Aponta a iluminação como um factor determinante na hora de pegar na bicicleta. Em alguns dos dias escuros de outono e inverno, em que sabe “que a iluminação pública vai ser ligada tarde demais”, acaba por não o fazer, apesar de ter “imensas luzes e de, de vez em quando, enfeitar a bicicleta como um pirilampo”.

João Leiria, as suas duas filhas e a bicicleta longtail em que se deslocam para a escola, em Alvalade. Foto: Frederico Raposo

Muito antes da ciclovia da Avenida Almirante Reis, já João Leiria pedalava por aquela artéria da cidade. Não hesita, contudo, em confessar que a não existência de canais segregados para as bicicletas representa “um risco muito maior”. As ciclovias existem “para 90% das pessoas”, as que “não andam” sem elas. Também para as suas filhas, que “querem fazê-las para a escola”, embora não tenham ainda permissão para tal. “É sempre melhor andar longe dos carros”, diz.

De bicicleta, “nunca fazem birras”

Sempre que vai de carro, como nos dias das várias depressões que têm assolado Portugal, João Leiria acaba por arrepender-se disso. Demora 45 minutos a fazer o percurso habitual, que de bicicleta “teria demorado 10”. Antes de fazer da bicicleta o seu meio de transporte, andou “toda a vida” a pé e de transportes públicos, e foi “já tarde”, aos 35 anos, que tirou a carta de condução.

Ainda usou o automóvel durante “três anos, quatro”, mas não se sentia à vontade. É “incapaz de estacionar em segunda fila ou em cima do passeio” e isso, revela, “é uma complicação”. O respeito que tem pelas regras da estrada obriga-o a dar voltas e sempre que se vê numa fila de trânsito sente “claustrofobia”. Escolheu a bicicleta “porque estava farto”.

De carro, subiu “centenas de vezes” a Almirante Reis com os seus filhos “presos, a chorar, porque estava um engarrafamento brutal” e “não podia sair dali, não podia, sequer, virar para trás”. E é aqui que a bicicleta também marca a diferença. Sentadas no porta-cargas da bicicleta, as suas filhas “nunca fazem birras”. As poucas vezes que fizeram, parou no café. “Posso parar, sair, entretê-las, parar num parque infantil”, tudo coisas que, de carro, se tornam mais difíceis de fazer.

A manhã do dia desta entrevista também foi chuvosa, mas, arrependido com a decisão do dia anterior, João pegou na bicicleta e saiu, as filhas atrás. Quando a chuva se tornou “torrencial”, parou por cinco minutos, debaixo de um toldo. “E, mesmo assim, cheguei mais depressa [do que de carro]”. Assim que a chuva deu tréguas, “ultrapassei toda a gente que estava nas filas de trânsito e elas chegaram secas à escola e eu seco cheguei ao trabalho”. Às filhas, visivelmente satisfeitas com seu o meio de transporte, já lhes fez “uma lavagem ao cérebro – dizem que odeiam carros, dizem que adoram andar com chuva”.

Bicicleta não é só tendência, é também fragilidade

Nem todos os que usam a bicicleta por entre as ruas da cidade foram seduzidos pelas ciclovias ou pela competitividade que as duas rodas a pedal representam face ao automóvel. Anderson Borges tem 29 anos e é um lisboeta ainda mais recente do que Shey. Vindo do Brasil, chegou a Portugal há oito meses e está em Lisboa há apenas dois, altura em que o patrão o despediu do seu emprego no Carvalhal, a concorrida estância estival do concelho de Grândola. “Mandou todo o mundo embora”, diz. Agora, é em Lisboa que vive e trabalha.

Anderson Borges, 29 anos, conduz uma bicicleta que é o seu sustento. Foto: Frederico Raposo

“Não estava a encontrar emprego nenhum por causa da covid”. Arranjou uma mota por 300 euros ao mês e começou a entregar refeições através da Glovo, mas a carta de condução brasileira perdeu a validade seis meses depois de ter chegado e, em menos de um mês, foi três vezes mandado parar pela polícia. “Fui a julgamento e tudo”, conta. “Ainda amenizaram [a situação] por ter sido a trabalhar, não foi a roubar”. Ficou com uma multa de 500 euros para pagar.

Viu-se, desde então, forçado a apostar na bicicleta. “Faço menos entregas, demoro mais”, lamenta. Não faz o mesmo dinheiro que fazia com a mota e as subidas que a cidade lhe impõe não ajudam, até porque não tem uma elétrica. “Às vezes, chamam-me para longe e tenho de ir a pedalar. “Não estava acostumado, mas teve que ser. Tenho que pagar renda, tenho que sobreviver aqui”. Faça chuva ou faça sol. Tem botas e uma capa, para quando chove. Com a capa, sua muito. “Tanto que já não a estou a usar”, diz. Fica para último recurso, “se começa a chover bastante”. Por enquanto, confessa, o dinheiro que faz ainda o deixa “bem tranquilo”, mas está a ver se arranja outro emprego. Ao contrário do que acontece com outros lisboetas, que escolhem a bicicleta, Anderson viu-se obrigado a usá-la. Para um estafeta, “de bicicleta é mais complicado”.


As recomendações de quem sabe

Material para o inverno e a chuva

  • Calças impermeáveis, para usar por cima da roupa;
  • Casaco impermeável;
  • Luvas;
  • Balaclava ou lenço polar para a cabeça/pescoço;
  • Óculos transparentes para o vento e a chuva;
  • Chapéu impermeável;
  • Gorro;
  • Ter uma muda integral de roupa e calçado no trabalho/escola.

Para andar no escuro

  • Luzes traseiras e dianteiras e suplentes;
  • Óculos transparentes;

* recomendações enviadas à Mensagem por Nuro Carvalho, vogal da direção da MUBi – Associação para a Mobilidade Urbana em Bicicleta


O que diz o Código da Estrada

No escuro

Quem anda de bicicleta deve transitar com uma luz branca de presença, na zona frontal do velocípede, e com uma luz vermelha de presença, colocada à retaguarda. Em caso de avaria nas luzes, o utilizador de bicicleta deve conduzir o velocípede pela mão. Quem infringir, pode ser sancionado com a aplicação de uma coima que varia entre os 30 euros e os 150 euros (artigo 93º do Código da Estrada).


Frederico Raposo

Nasceu em Lisboa, há 30 anos, mas sempre fez a sua vida à porta da cidade. Raramente lá entrava. Foi quando iniciou a faculdade que começou a viver Lisboa. É uma cidade ainda por concretizar. Mais ou menos como as outras. Sustentável, progressista, com espaço e oportunidade para todas as pessoas – são ideias que moldam o seu passo pelas ruas. A forma como se desloca – quase sempre de bicicleta –, o uso que dá aos espaços, o jornalismo que produz.

frederico.raposo@amensagem.pt

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5 Comentários

  1. Eu era o único que ia à universidade de bicicleta, o meio de transporte quase sempre mais rápido e que permite aproveitar o tempo para o exercício físico importante para a saúde de quem não tem um trabalho corporal. Roubaram-me 10 vezes as diversas bicicletas que tive. Mesmo amarradas com cadeados. É pena que não existam em Portugal muitas pistas ao lado das estradas só para biciclistas como na Alemanha.

  2. Que matéria excelente! Além de ecológico o transporte de bicicleta reduz o estresse e exercita os músculos. Bravo!

  3. Os ciclistas não são de açúcar … mas o texto diz que a MUBI aconselha a “adoção da posição primária” … ? Adoção não é por açúcar ? Não será adopção …?

  4. Aparentemente adoção é mesmo assim que se escreve após o Acordo Ortográfico de 1990 ter sido aplicado.

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