Dizer adeus todos os dias

1.

O problema não é dizer adeus mas saber em que momento dizer adeus.

Quando não nos despedimos de alguém que morre, normalmente não é por cobardia mas porque ninguém nos avisou que tinha chegado o momento.

Também nunca é o momento certo para nos despedirmos de um amante. Ou é tarde demais, e a despedida é apenas um pró-forma. Ou é cedo demais e não acreditamos que a despedida seja mesmo uma despedida. 

E em que momento se diz adeus a uma cidade? Em que momento sabemos que chegou a hora de partir?

2.

Uma carta de despedida é, de certa forma, uma espécie de obituário. Um obituário de uma relação, por exemplo. Numa carta de despedida, então, não escrevemos muito mais do que uma linha sobre o acto em si de dizer adeus e não escrevemos muito sobre o final; lembramo-nos do que aconteceu antes, frequentemente reflectimos sobre o início.

Uma carta de despedida a uma cidade é uma espécie de obituário de alguém que já fomos. Devia ser um exercício para fazer de vez em quando. Como ir ao médico fazer um check-up. Como cumprir uma promessa, para quem tem fé. Como podar uma paisagem para que não nos tape a vista.

3.

No meu caso: dizer adeus àquela rapariga que, recém-chegada, andava na cidade como se só ela existisse; ou como se a cidade existisse só para ela, os seus segredos, recantos, bares, miradouros, lugares perto do rio, caras familiares, corpos suados, pistas de dança, músicas particulares, cadeiras de cinema, terraços, trilhos do eléctrico, mesas de tascas, praças decrépitas, estátuas, árvores centenárias, escadas sem elevadores, marquises, escadas exteriores para pátios vazios, ruas enlameadas de flores.

Porque há um dia em que a cidade de que nos lembramos já não corresponde à cidade onde vivemos.

“É fácil ver os inícios das coisas, mas mais difícil ver os fins”, escreve Joan Didion em “Goodbye to All That”, um dos mais famosos textos da jornalista e escritora americana, escrito quando deixa Nova Iorque em 1967, e que parece que veio inaugurar o género de despedida a uma cidade.

4.

Tenho lido muitas cartas de despedida a Nova Iorque e também a Londres. Parece que se tornou quase uma moda. Têm vindo nos jornais e nas revistas, muito antes da pandemia, escritas por pessoas mais ou menos conhecidas que explicam a sua decisão de trocar grandes cidades por cidades mais pequenas e baratas, ou uma pacata vida no campo, mais próximo da natureza e de valores mais solidários. Mas, embora conheça muita gente que deixou Lisboa, nunca li nada do género. Possivelmente é porque não se deixa Lisboa com o mesmo gesto teatral e definitivo. Para Lisboa, pode-se sempre voltar. Não daquela maneira como teremos-sempre-Paris, que na verdade quer dizer esquece Paris, mas daquela maneira, quando-voltar-tudo-estará-aqui.

5.

Uma quietude. Uma claridade polida pelo tempo. Uma inclinação para o horizonte. Já outras pessoas tentaram explicar o que dava a Lisboa um tom tão melancólico que dá a sensação de que toda a passagem pela cidade é em si uma longa despedida de outra vida qualquer.

6.

Normalmente, pergunto-me se é a hora da despedida quando começo a consultar sites de imobiliárias. Faço-o aparentemente sem planear. Quando a minha filha está a adormecer e eu tenho que ficar ao lado dela, ela a agarrar-me a mão e o braço direito, o telemóvel na esquerda para me entreter porque ela pode demorar bastante a adormecer. Quando tenho um prazo para entregar um texto e subitamente sinto urgência em ver casas. Quando vou dar um passeio e reparo em placas de vendas nos prédios com números de telemóvel para os quais não ligo. Os anúncios vão passando no ecrã e eu vou clicando. Começo pelo bairro onde vivo, passo por outros bairros do centro (o que não demora tanto tendo em conta o meu filtro de preço). Depois, vou fazendo zoom out no mapa. Lisboa fica maior, depois a região de Lisboa, depois fora de Lisboa e, de repente, estou a clicar em ruínas para serem restauradas com terreno e árvores de fruto à volta.

7.

Mais receio do que escrever uma carta de despedida, tenho medo de nunca ter que escrever uma carta de despedida. E se ficar em Lisboa para sempre?

8.

Bem que nos tentam enganar com o compromisso da propriedade. Comprarás propriedade e ficarás ligada a um lugar. Comprarás propriedade e esse lugar aceitar-te-á como um deles. Mas o grande compromisso foi quando entrei na Maternidade Alfredo da Costa e saí com uma bebé.

9.

Todos os dias, entre a Avenida Almirante Reis e a Praça das Novas Nações, despeço-me das minhas duas filhas. É muito importante dizer adeus todos os dias. Dizer com gestos, palavras. Dizer adoro-te como se fosse a única vez. De alguma forma, na minha cabeça, essa despedida está relacionada com a maneira como acontece o nosso reencontro diário. Se levo a despedida a sério, o reencontro é exuberante, de enorme felicidade. E ele acontece naquelas ruas confusas, cheias de gente, sem boa relação qualidade-preço, nesta cidade que é a delas.


Susana Moreira Marques

É jornalista e escritora. Tem colaborado sobretudo com o Público e o Jornal de Negócios. Publicou dois livros de não-ficção. Gosta de cidades pela quantidade de histórias que habitam nelas. Foi para se perder no meio de ainda mais histórias que viveu em Londres cinco anos. Saiu do Porto com 18 achando que era temporário, mas ficou em Lisboa e é a Lisboa que sempre regressa.

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3 Comentários

  1. Não sei como contar mas cá vai.Nasci numa quinta, Rio de muro há 60 anos, uma quinta com 1 hectare, éramos 4 irmãos ao pé duma grande Palmeira, à nossa volta um Serra da estrela e um Grandanois, com galinhas, coelhos, porcos, pobre do estranho que se aproxima se. A minha Mãe teve que ir ao Dentista e lá fomos os 4 com ela. Ela já tinha entrado e sentado na cadeira de dentista e onde já iamos os 4. Pusemos o prédio e o bairro em alvoroço. Sentados num gabinete de dentista entre quatro paredes para quem vivia numa quinta, não era para nós. Viver no campo continua a ser o meu modo de vida. A cidade só de passagem, para mim. A diferença é enorme ou abismal. Terra e um poço com água . Força.

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