Aos 47 anos, os olhos verdes e o sorriso ainda são do puto que cresceu na rua aqui atrás e jogou futebol no campo ao lado do prédio de casa dos pais. Nascido em 1975, em Angola, de pais cabo-verdianos que trabalhavam para o Estado português, Carlão chegou a Almada com meses.

O bairro de classe média em Cacilhas tinha muita gente vinda das mesmas paragens e muita gente vinda de outras. Essa “normalidade”, em que cabia diversidade, fê-lo crescer a olhar o outro como igual.

O bairro em Cacilhas onde Carlão cresceu. Foto: Orlando Almeida

Nos anos 1980, com o irmão mais velho, João Nobre, começou a fazer música e entre 1993 e 2010 encarnou o Pacman, letrista e vocalista dos Da Weasel, banda mítica de Almada, que, após mais de dez anos de interregno, voltou a juntar-se em 2022 para um concerto no Nos Alive, reunião que repete em julho próximo, no Meo Marés Vivas, em Vila Nova de Gaia.

Pelo meio, Carlos Nobre, Carlão, perdeu-se e reencontrou-se. A solo ou em colaboração com outros músicos, tem no estúdio de Cacillhas o quartel-general. “Trabalhar aqui devolveu à minha escrita e à minha música alguma coisa que andava meio perdida”.

A margem de Carlão, músico e atual jurado do The Voice Kids, é a sul. É da Almada dele que nos fala.

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Lançaste recentemente o single Mais!, um dos temas do EP Formas do Verbo Amar, que vai sair em breve. O Mais! é uma sátira. Tem alguma coisa a ver contigo?

É um tipo de artista que vou vendo cá a uma escala mais pequena, mas que fui buscar a uma escala maior, da música que está a vender mais universalmente neste momento, que é o reggaeton e que tem algumas coisas de hip-hop, que também se tornou mainstream. Falo na primeira pessoa e encarno um personagem que quer sempre mais, mais.

A ideia vem de um filme, acho que o Lobo de Wall Street, em que às tantas dois gajos trapaceiros da alta finança, cheios de esquemas, perguntam ao protagonista: qual é o teu número para te retirares? E ele responde: o meu número é mais. É daquelas coisas que ficam na cabeça. Vejo muito as pessoas a viverem essa sofreguidão de nunca estarem contentes.

Na música também?

Sim, aqui há 20 anos fazer o Pavilhão Atlântico era uma coisa incrível, difícil de atingir, e agora é normal e vejo pessoal a fazer o Altice Arena num dia e no dia a seguir já estar a passar mal porque precisa de mais. É uma coisa aflitiva e então faço uma sátira à volta disso.

O meu briefing para as pessoas com quem trabalhei para a música e para o vídeo é um filme que é o Last Action Hero, do John McTiernan, com o Arnold Schwarzenegger, a gozar com todos os clichés dos filmes de ação e com ele próprio. Ele faz essa paródia, fazendo um bom filme de ação. Foi esse o meu conceito para este vídeo, uma música eficaz naquele registo, mas parodiando os clichés.

Não nasceste cá, nasceste em Angola, mas vieste para Almada com meses, esta é a tua terra. Se não tivesses crescido em Almada, o que seria diferente?

Não sei, foi o que foi e foi importante. Talvez não dissesse o mesmo se tivesse crescido nos bairros sociais do Monte de Caparica porque aí a vida fica muito limitada, com muito poucas hipóteses e eu, sendo a pessoa que sou, não estaria aqui provavelmente. Aquilo que tive foi um bairro de classe média, onde por acaso havia muito pessoal vindo das colónias. Frequentei uma escola com muitos estratos sociais diferentes, o que para mim foi muito importante.

Qual era a escola?

A Cacilhas-Tejo. Com as tribos todas e até os wannabe betos, porque os betos a sério não andavam ali. Mas havia uma diversidade boa que foi importante no meu crescimento. Conheço pessoal que está tão dentro de uma bolha, seja ela privilegiada ou desfavorecida, que não consegue mesmo sentir empatia pelas outras bolhas e sair, seja do snobismo e preconceito dos privilegiados, seja da raiva e do sentimento de impotência dos mais desfavorecidos. Eu acabei por crescer no meio de tudo e acho que foi fundamental pelo menos para olhar para o outro numa base de igualdade.

Achas que há cada vez mais bolhas, mais abismos entre as pessoas?

Economicamente sim, mas a nível cultural, por exemplo, era impensável na Almada ou Lisboa em que eu cresci, um gajo branco passar de carro a ouvir funaná em altos berros e isso é incrível. Há uma diversidade e interculturalidade muito maiores. Depois pensando na questão puramente tecnológica, mas acho que isso é geracional, faz-me confusão esta facilidade de uma pessoa alienar-se e ficar fechada numa cena virtual, sem contacto humano. Os putos já não flirtam, não seduzem, é pow, pow, mandam umas mensagens mal escritas e já está, mas claro que isto é generalizar porque depois vejo putos incríveis, com cabeças muito boas, com ideias fantásticas.

Já que falas em tecnologia, a inteligência artificial assusta-te?

Sim, tenho medo, tenho. Na música e nas artes em geral. Alguém fez um tweet que alguém partilhou – eu não tenho Twitter, mas mandaram-me – que dizia que devíamos estar a utilizar a inteligência artificial para tudo, menos para as artes, porque as artes é que são nossas, é que são intrinsecamente humanas. Assusta-me muito a falta de controlo, mas a verdade é que andamos há milhares de anos a assustar-nos com o progresso e as coisas vão-se dando.

Largo de Cacilhas. Foto: Rita Ansone.

Cresceste aqui em Cacilhas, a dez minutos de Lisboa. Quando eras miúdo esses dez minutos pareciam-te imensos ou o rio era uma fronteira bastante transponível?

Era uma fronteira que se atravessava com algum receio, mas muita curiosidade e muita vontade também. Mas não parecia dez minutos. Na altura, havia barco para o Terreiro do Paço e o Cais do Sodré e havia todo um ritual para ir para Lisboa, sobretudo à noite, que parecia quase uma excursão, de irmos à descoberta e era giro isso.

À descoberta de quê?

Não se passava muita coisa aqui em Almada.

Que idade tinhas quando começaste a sair?

Para aí com 15 anos comecei a sair à noite para Lisboa, demasiado cedo. Mas depois, mesmo para ir ao cinema ver filmes diferentes, aos Kings, Quartetos, tinha de se sair daqui. Não havia cinemas em Almada que passassem filmes mais alternativos, portanto havia essa necessidade de sair. O outro lado da história é que essa falta do que fazer fez que muita da malta da nossa geração fizesse música. Eu costumo contar sempre aquela história da Björk que dizia que, como na Islândia não se passava nada, as pessoas só podiam fazer duas coisas: sexo e música e ela fez muito das duas.

E tu fizeste música.

Sim, aqui na altura havia muita gente que tinha bandas, havia muito aquela cena das bandas de garagem e se calhar isso aconteceu por ser meio subúrbio, dormitório e termos de inventar um bocado. A música veio preencher essa lacuna.

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Onde é que vocês se encontravam para fazer música?

Primeiro, começou nas casas uns dos outros, eu sempre fui a reboque do meu irmão, que é quatro anos mais velho. Ele teve uma banda e eu quis tocar também. Comprei um baixo, ele tocava guitarra. Depois das casas uns dos outros, passámos para as garagens. Havia uma aqui, que era um ex-líbris de Almada, que era o Zé da Cadela, que alugava a sala com material, o que era importante porque nós não tínhamos e a malta juntava-se ali a fazer música.

E encontravam outras bandas.

Sim, também servia de entreposto, porque a malta deixava mensagens do tipo: se gostas deste tipo de banda (de speed metal ou trash metal ou gótico ou o que fosse) e queres tocar numa banda, liga para este número. Havia uma parede com montes dessas dicas e quem não se conhecia – o que era difícil aqui em Cacilhas e Almada – passava a conhecer-se e isto espalhava-se. Foi uma altura gira porque essa dificuldade que havia de fazer música e ouvir música e ir a concertos – realmente hoje é muito melhor – criava uma reverência em relação à música que transformava tudo num ritual.

Comprar um disco e ir ouvi-lo com os amigos era um ritual, por exemplo?

Sim, a malta toda com aquele respeito, era como se o vinil fosse o altar e nós estávamos cá em baixo a ler a missa, que eram os créditos e as letras que vinham nos discos. O carinho com que cada um comprava o seu primeiro instrumento, que era uma coisa que não era de fácil acesso… Eu comprei o meu primeiro baixo com ajuda dos meus pais e de um part-time que estava a fazer, super menor de idade, mas pronto, na altura era normal.

A fazer o quê?

Por acaso era numa escola e loja de música. Mas é giro que há sempre dois lados, o lado negativo era a dificuldade de fazer alguma coisa, o outro é que essa dificuldade tornava as coisas muito especiais.

Essas discotecas – que no nosso tempo (socorro, o nosso tempo) eram as lojas onde se compravam discos – eram onde?

Na fase do metal, íamos à Feira da Ladra, onde havia malta que revendia os discos, que na altura eram muito caros, mais baratos. Depois íamos à Bimotor, em Lisboa também e, para coisas mais normais, havia a Toca-Piano e uma que abriu mais tarde no Centro Comercial MBica. Mas a que trazia música mais alternativa era uma discoteca que era da Cristina Espírito Santo, que é de Almada e sempre foi da música ligada a labels, em promoção, e a dada altura tinha a loja no Centro Comercial Renovação e foi a melhor coisa que tivemos, porque conseguia discos que não havia em mais lado nenhum.

Carlão no concerto dos 50 anos de Almada, no sábado, 24 de junho, em Cacilhas. Foto: Luís Filipe Catarino/CMA

O que é que ouvias?

Primeiro, há uma altura em que o Michael Jackson bate muito, com o Thriller, que é o primeiro disco que eu me lembro de ter pedido à minha mãe para comprar, na Toca-Piano, precisamente. O Thriller foi muito importante para nós todos.

Com 11 anos, vejo o meu primeiro concerto, que é Iron Maiden, em Cascais, e diria que dos 11 aos 14 foram muito presentes as sonoridades mais pesadas. A malta tinha bandas de trash metal, hard core, mas começou a haver rapidamente uma mistura porque ouvíamos coisas muito diferentes, do pop ao death metal. E íamos a todas e então quase todos os projetos e bandas que a malta fazia tinha já um bocado essa fusão que hoje é normal, mas na altura não era tanto.

Porquê?

Porque as coisas estavam muito segmentadas, eras de uma tribo ou eras de outra. Eu acabei por fazer parte de quase todas e queria ser de quase todas até perceber que era ok não ser de nenhuma e ser de todas ao mesmo tempo.

Os Da Weasel aparecem com uma música diferente disso tudo.

Vêm com a influência dos Public Enemy e N.W.A., que bateram muito, ao meu irmão e a mim, não só na parte das letras, que eram de muita contestação social, mas também no som. Eram bandas que se destacavam muito do resto do hip-hop, pelas letras contestatárias e por uma agressividade muito parecida com as linguagens mais do hard core, que era um género de que gostávamos muito. Tinham aquela irreverência toda que faz sentido na adolescência, aquela raiva, aquela desilusão com os poderes instituídos.

Essas duas bandas bateram-nos muito, o meu irmão quis fazer uma coisa meio hip-hop, eu até àquela altura só tinha tocado baixo, mas ele disse que cantava eu e pronto. O primeiro EP era em inglês, com muitas frases roubadas de hard core e punk e quando passamos para o português sou obrigado a descobrir mais coisas minhas e percebo que aquilo é que faz sentido, porque o resto era tudo uma cópia.

E começam a fazer um caminho que eleva os Da Weasel a banda mítica de Almada. Os trinta anos da banda até deu uma exposição que está no Almada Forum, com a vossa história.

No primeiro ou segundo disco, mais eu, até tinha uma ideia de ser rapper e MC, mas nunca o fui verdadeiramente tal como a banda nunca foi verdadeiramente hip-hop. As nossas referências eram mais que muitas. O hip-hop tem uma importância gigante na nossa música, mas se virmos bem passa muito mais pela estética e pela forma de rimar do que propriamente pela parte musical, que tanto era pesada, como pop como hip-hop. Destacámo-nos por isso. Andámos ali paralelamente àquela malta toda do Rapública, que em 1994 lança o disco, os Black Company, o Boss AC, amigos nossos, mas nós fazíamos uma coisa diferente.

Os Da Weasel são Almada, o Carlão a solo é já Lisboa?

Não, não. Continuo a ser Almada. Na verdade, venho para cá quase todos os dias.

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Mas não houve por aí um intervalo?

Sim, fiz um intervalo. Saí de Almada porque na altura achei que era melhor sair e acho que fiz bem. Mas depois de alguns anos a alugar salas em Lisboa com outra malta, cheguei à conclusão que queria era trabalhar sozinho e fazer as minhas coisas, isto já depois do fim dos Da Weasel. Numa das minhas vindas aqui à rua, porque os meus pais ainda vivem aqui, percebi que isto estava para arrendar e pensei: vai ter de ser. E foi incrível.

Então?

Para já, mudou muito a maneira de trabalhar, aqui estou muito mais ligado, e, por outro lado retomei o contacto, ainda que não seja constante, com aquelas pessoas que são da minha criação e isso devolveu à minha escrita e à minha música alguma coisa que andava ali meio perdida e acho que foi muito importante. Este espaço passou a ser a minha base, o meu quartel-general, é aqui que escrevo, que gravo, que ensaio. A família está do outro lado, mas tudo o que tem a ver com a música é aqui.

O que são hoje Almada e Lisboa para ti?

É uma comparação que acaba por ser injusta, porque quando muito Almada poderia ser comparada com uma zona de Lisboa. Para mim, Almada, muito mais do que o espaço físico, sempre foi o espaço das pessoas, o espaço humano, e aí há uma maneira de estar e de levar a vida que é mais própria dos sítios pequenos. Acho que Lisboa tem as características de uma grande cidade, a frieza, um certo desligar.

cais do ginjal
O Cais do Ginjal, o Atira-te ao Rio e o Ponto Final são lugares da adolescência de Carlão, para onde vinha beber copos e “fumar uns charutos”. Foto: Carlos Menezes

E quais são os teus lugares aqui?
É muito esta rua, os cafés ali por trás, é Almada Velha. Agora, um amigo nosso, que também é da nossa criação, tem lá um bar, que é o Cheers, e acabamos por passar lá muito tempo. O Ginjal foi super importante, aqueles percursos até ao Atira-te ao Rio e ao Ponto Final, muitas vezes não para jantar, mas para beber copos, fumar uns “charutos” e outras coisas, que a malta fazia na altura da adolescência. Também íamos muito para o Castelo, para o Miradouro. Havia muito essa vida de estar ali, em vez do bar ou da discoteca. Hoje, passa mais pela Cândido dos Reis, que agora é pedonal e tem uma onda muito fixe.

E o Ponto de Encontro [Casa Municipal da Juventude, fundada em 1989], que significado teve para a tua geração?

No outro dia estávamos a dar uma entrevista com Da Weasel e pelo menos dois ou três deram lá o primeiro concerto, com bandas diferentes. Era isso. Nessa altura, em que havia muita gente diferente com vontade de fazer música, acabava tudo por ir lá parar. Eu tive uma banda com um gajo que era o Tó Gótico, por exemplo, e fazíamos uma coisa que não tinha nada a ver com música gótica, mas também havia góticos, que eram os Capelas das Almas, depois havia o metal, depois veio o hip-hop. A malta ao fim de semana juntava-se ali e era muito essa vida de música e de concertos e de estarmos ali a curtir como putos que éramos. Era um sítio que fazia justiça ao nome, era mesmo ponto de encontro.

Carlão no concerto dos 50 anos de Almada, no sábado, 24 de junho, em Cacilhas. Foto: Luís Filipe Catarino/CMA

Estás a dar concertos em Almada. É especial quando sobes ao palco aqui?

Claro que sim, mas foi uma coisa que levou algum tempo a sentir. Quando via o pessoal que andou comigo na escola, familiares, acusava o toque de uma maneira não muito fixe e hoje, quando vejo essa malta acuso o toque, mas de uma maneira fixe. Passa uma energia boa.


Catarina Pires

É jornalista e mãe do João e da Rita. Nasceu há 49 anos, no Chiado, no Hospital Ordem Terceira, e considera uma injustiça que os pais a tenham arrancado daquele que, tem a certeza, é o seu território, para a criarem em Paço de Arcos, terra que, a bem da verdade, adora, sobretudo por causa do rio a chegar ao mar mesmo à porta de casa. Aos 30, a injustiça foi temporariamente corrigida – viveu no Bairro Alto –, mas a vida – e os preços das casas – levaram-na de novo, desta vez para a outra margem. De Almada, sempre uma nesga de Lisboa, o vértice central (se é que tal coisa existe) do seu triângulo afetivo-geográfico.


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Carlão: “Havia todo um ritual para ir de Almada a Lisboa”

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1 Comentário

  1. Uma agradável entrevista que passa em revista locais míticos de Almada. Míticos para quem os conheceu (como eu), e o Carlão deixa aqui essa memória bem viva. Havia realmente um grande ambiente underground em Almada que se manifestava sobretudo através da música. Não que Lisboa não o tivesse, mas era mais disperso, logo era diferente. Em Almada era mais concentrado, mais bairrista no bom sentido. Nunca fui um grande fan da música dos Da Weasel para ser sincero, mas admiro o talento e a entrega. Percebi isso quando os vi pela primeira vez em palco que foi na praça sony. São autênticos animais de palco.

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