Portugal aos portugueses. Digam todos: Portugal aos portugueses! Não paremos por aqui. Lisboa aos lisboetas! Carnide aos carnidenses! Continente de Telheiras aos moradores de Telheiras Sul! A malta de Telheiras Norte que vá ao Aldi, porra!
Portugal aos celtiberos! Não, aos romanos! Não, aos suevos! Aos visigodos! Aos árabes. Ai aos árabes não, que horror, aos visigodos! Aos cristãos – sim aos cristãos!!!
Portugal aos cristãos, de quem nós descendemos exclusivamente (depois de uma limpeza étnica muito profunda, uma espécie de detox genético, gengibre, cúrcuma, duas gotinhas de limão).
Aos cristãos não, que isto é um estado laico! Portugal aos portugueses de todas as religiões! De todas as religiões que acreditam em Deus. Que acreditam num Deus. Que acreditam neste Deus. Aquele com um filho judeu nascido na Palestina.
Portugal aos portugueses de cultura-matriz judaico-cristã. Mas o que é que eu estou a dizer? Sejamos irmãos! Sejamos abertos! Portugal a todos aqueles que partilham a cultura-matriz judaico-cristã (menos os turistas; esses, nem forrados a talha dourada!)
Portugal aos portugueses das colónias! Das ex-colónias, desculpem. Portugal aos portugueses de Portugal do Minho a Timor, menos os de Timor e os de Angola e os de Moçambique e os da Guiné-Bissau e os de São Tomé e Príncipe e os de Cabo Verde.
Angola aos angolanos (e aos portugueses, que até lá construiram uma escola)! França aos franceses (e aos velhos portugueses, que são esforçados e trabalhadores)! Holanda aos holandeses (e aos jovens portugueses, tão espertos que até compram lá casa!)
Mas, acima de tudo, Portugal aos portugueses. Lisboa aos portugueses. O Martim Moniz aos drogados portugueses. Aos proxenetas portugueses. É que já nem se pode andar na Rua do Benformoso tal o cheiro a especiarias asiáticas. Mas Lisboa é o quê afinal, uma caravela lusitana de regresso à pátria? O forro do bolso de Vasco da Gama três meses depois de chegar a Lisboa (“mas de onde é que sai tanta canela? Ou será noz-moscada?”)
Voltem para a vossa terra (que, by the way, até fomos nós a descobrir)! Mas desde quando é que a Mouraria não é um bairro de portugueses? Isto faz sentido a alguém? Mas que substituição populacional vem a ser esta? Mas onde é que isto vai parar? Estão a islamizar a Mouraria, porra! Dom Afonso Henriques nunca o permitiria!
Esta gente nem sabe escrever em português!
Qualquer dia temos franceses em Campo de Ourique! Qualquer dia vêm ingleses ensinar-nos a jogar à bola! Qualquer dia precisamos de estrangeiros para a construção civil! E para a restauração! E para as entregas! E para aqueles trabalhos todos que os portugueses não querem e que os estrangeiros vêm para cá roubar.
Lisboa está irreconhecível, é só estrangeirada. O que é português é que é bom. Eu gosto é de ir à Versailles comer um éclair. Ir à Luz vibrar com o football. Beberricar um cappuccino no Nicola. Encher um pastel de nata com a canela do Vasco da Gama. Ouvir o fado de Oulman.
E nem me falem na comida. Já não se encontra uma tasca em Lisboa com boa comida portuguesa. Onde é que se come uma boa canja de galinha com massa? Agora é só ramens de frango em todo o lado. E arroz, eles só comem arroz. E as tempuras? Nem me façam falar das tempuras, esta gente frita tudo. Comam antes uns vegetais! A mim quem me tira um peixinho da horta tira-me tudo. Ou uns bons filetes de peixe-galo com um arrozinho. Adoro um arrozinho.
Enfim. Fora com toda a gente. Abandonem o país. Fechem a cidade. Portugal aos portugueses. Lisboa aos lisboetas. Mantenham isto puro e estanque como a água do tanque. Não deixem entrar. Não deixem sair. Não deixem mudar. Parem o tempo. Atrasem o tempo. Oh tempo, volta para trás. Antes é que era. Antigamente. O antigamente.
Belos tempos. Quando a carne sabia a carne. Quando a fruta sabia a fruta. Quando Portugal era dos portugueses e estes fugiam para França e para a Suíça e para os Estados Unidos, para trabalhar na construção civil, na restauração, nas entregas. Antigamente nós é que roubávamos empregos aos outros.
Quando Portugal era dos portugueses e os estrangeiros não vinham cá, porque nem sabiam que isto existia, porque não tinham razão nenhuma para visitar, porque também não havia empregos para ninguém, porque ninguém falava línguas.
Nem os portugueses sabiam escrever em português! Belos tempos: sozinhos, isolados, iletrados e felizes.

João Marecos
Chegou a Lisboa no preciso segundo em que chegou ao mundo. Aqui cresceu, fez amigos, estudou Direito, tornou-se advogado, antes de a curiosidade o levar para Nova Iorque, onde repetiu tudo isso. Escreveu um livro, que apresentou no Chiado. Fundou o 100 Oportunidades à beira do Tejo. É o amor que o mantém fora de Lisboa, será o amor a fazê-lo voltar.

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Excepcional.
Muito bom. Parabéns.
Dos melhores textos que li em muito tempo. Parabéns!