Quem gosta de fado e é admirador de Amália Rodrigues já a terá certamente ouvido no Fado Malhoa, uma composição de Frederico Valério e José Galhardo dedicada ao pintor José Malhoa, artista que homenageou a canção de Lisboa em 1910 com uma tela chamada justamente O Fado.

Para os que nasceram a partir da segunda metade do século XX, as figuras representadas na pintura poderão não corresponder ao estereótipo dos fadistas (sobretudo das mulheres vestidas de preto, com o xaile pelos ombros, solenes e discretas como Amália); mas, na verdade, no tempo em que Malhoa viveu, os protagonistas do fado eram muitas vezes marginais, ladrões, prostitutas, enfim, gente da rua que vivia precariamente e usava a canção para reclamar das injustiças e da falta de condições, quando não para chorar a morte de um filho levado para combater na Grande Guerra.

E, sendo José Malhoa um naturalista, não quis modelos profissionais que fingissem ser quem não eram, deslocando-se por isso ao bairro da Mouraria (onde se dizia que nascera o fado) em busca das suas personagens, que logo encontrou nas pessoas de Amâncio Esteves – um rufia que tocava guitarra – e da sua mulher Adelaide Facada – cauteleira de dia e prostituta de noite – que devia a alcunha a uma cicatriz que tinha no rosto, feita com a ponta de uma navalha. (Diz-se que é a razão por que, no quadro, a mulher esconde metade da cara com a mão.)

Mas a escolha acabaria por trazer grandes dores de cabeça ao “pintor fino” (como era então conhecido na Mouraria), porque o Amâncio não só dava em maltratar Adelaide à sua frente, como era um desordeiro que ia parar constantemente à esquadra, obrigando o pintor a meter cunhas no Governo Civil para o libertarem e poder prosseguir o seu trabalho.

Num dos períodos em que Amâncio se encontrava preso, Malhoa aproveitou, mesmo assim, para descer a alça da camisinha de Amélia, deixando-lhe os ombros nus e um seio a espreitar; mas, assim que saiu da cadeia e olhou para a tela, um Amâncio ciumento e ameaçador obrigou a que o pintor representasse Adelaide com a decência que ela não tinha na vida real.

Concluída a obra no estúdio – onde se recriara a casa pobre da Rua do Capelão, sem esquecer o Cristo na parede –, muita gente foi chamada a apreciá-la, do povo à elite, incluindo o rei D. Manuel; mas a crítica recebeu mal a tela por o fado ser coisa de “faias” e marialvas, pelo que foi primeiro exposta e premiada no estrangeiro (Buenos Aires, Paris e São Francisco) e mesmo o Porto pode vê-la cinco anos antes de Lisboa, onde fora concebida.

Hoje encontra-se no Museu do Fado e vale uma visita, apesar de em 2005 o pintor João Vieira ter feito sobre ela uma paródia pixelizada chamada O Mais Português dos Quadros a Óleo, troçando claramente d’O Fado de Malhoa.


Maria do Rosário Pedreira

Nasceu em Lisboa e nunca pensou viver noutra cidade. É editora, tendo-se especializado na descoberta de novos autores portugueses. Escreve poesia, ficção, crónica e literatura infanto-juvenil, estando traduzida em várias línguas. Tem um blogue sobre livros e edição e é letrista de fado.


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