Na manhã deste sábado, e ao contrário do que é habitual, o portão do estacionamento da Escola Básica e Secundária Gil Vicente abriu-se. Nada fazia adivinhar o invulgar buliço que se passa numa zona de baldio, ali na Graça, junto aos limites da escola. Num lugar que dá pouco nas vistas, há que descer uns degraus e virar à esquerda para descobrir o que estava para acontecer: de repente, os pés assentam na terra e nas ervas que vão crescendo como querem e pequenas crianças circulam de carrinhos de mão, num frenesim.

Pegam em pedras e detritos maiores, colocam-nos no balde metálico e removem-nos com inesperada destreza de uma de três linhas de plantação. Tudo tem o seu sítio e o seu porquê e as crianças trabalham sem grande supervisão – sabem o que têm para fazer.

Tudo perante o olhar maravilhado de pais e orientadores.

Há uma estufa, uma oficina onde se corta madeira, uma casa de ferramentas, três linhas de plantação agroflorestal e a estrutura com mais sucesso neste dia – o Zoo compostor. Esta é a agrofloresta da Escola Básica e Secundária Gil Vicente. A primeira numa escola pública em Portugal. E, aqui, no meio da cidade, as crianças e toda a comunidade escolar ligam-se à terra.

Esta agrofloresta, construída pela comunidade, é dinamizada pela Renovar a Mouraria, através do seu projeto Changing (H)earth. O projeto arrancou inicialmente com financiamento da estratégia de desenvolvimento local Bip/Zip, da Câmara Municipal de Lisboa, e agora prossegue o seu trabalho com o financiamento do prémio Caixa Social, atribuído ao projeto Mouraria a Compostar.

Mais do que brincar com carrinhos de mão, crianças de diferentes idades e proveniências estão a aprender a propagar plantas, a compostar, a plantar, a fertilizar e a cuidar de animais e de uma floresta, complementado na prática o conhecimento adquirido nas disciplinas curriculares. Assim explica Inês Andrade, gestora de projetos na Renovar a Mouraria e a acompanhar o projeto, de mãos na terra, desde o seu início.

Inês Andrade. Foto: Líbia Florentino

Uma agrofloresta para fazer comunidade

Uma agrofloresta é um espaço natural que mistura a produção agrícola com a floresta e que se afasta da tradicional ideia da monocultura na atividade agrícola. Promove a convivência, no mesmo lugar, de várias espécies – de árvores de fruto a hortícolas e a vários outros tipos de plantas, mas também com a presença de animais.

“O sistema agroflorestal é precisamente o inverso da monocultura – é a pluricultura”

Inês Andrade

Foi a própria escola a propor a ideia à Associação Renovar a Mouraria, que tinha já no terreno um projeto de compostagem comunitária – o Mouraria Composta.

Esta não é a primeira vez que os portões da escola se abrem para juntar a comunidade em torno da construção desta agrofloresta, mas neste sábado a participação da comunidade excedeu as melhores expectativas. Se em maio do ano passado o evento tinha reunido 30 inscrições, agora foram mais de 110 os inscritos. A grande maioria das crianças participantes tinha entre os 3 e os 11 anos, mas nem por isso deixaram de empunhar enxadas e sujar as mãos.

Pouco depois das 11 da manhã, era pouco o espaço que sobrava, mas todos tinham o que fazer. As crianças passavam de um lado para o outro, atarefadas, e os pais conversavam entre eles.

Um detalhe saltava ao ouvido: longe de se ouvir apenas português, várias línguas audíveis, dando nota da multiculturalidade presente neste agrupamento escolar, mas também do sucesso da convocatória de pais e crianças.

Pessoas de diferentes línguas e proveniências juntaram-se em torno deste projeto e promoveram laços interculturais – fizeram comunidade, sublinha Inês Andrade.

Galinhas, porquinhos da índia e a arte de aprender a propagar: como nasce uma agrofloresta

Chegaram as galinhas e os porquinhos da índia, rapidamente instalados no espaço do Zoo compostor, uma ampla estrutura em madeira que serve a função de galinheiro. Foi razão suficiente para a suspensão temporária dos restantes trabalhos. Afinal, não é todos os dias que crianças da cidade convivem de perto com o campo e os seus animais.

Esta, veio a constatar-se, foi uma oportunidade única para sujar as mãos e joelhos de terra.

A agrofloresta não começou hoje. Existe desde setembro de 2021. Entretanto, várias estruturas nasceram pelas mãos das pessoas que se foram juntando ao projeto, dentro e fora da comunidade escolar: construíram-se socalcos de contenção de terras, um galinheiro, ergueu-se a casa de ferramentas e nesta manhã deu-se continuidade a outros trabalhos estruturais, para além de se colocarem as mãos na terra.

Na porta de entrada da escola, será agora erguida uma central de resíduos orgânicos. A comunidade escolar vai poder levar para casa sacos biodegradáveis para recolher os resíduos orgânicos gerados em cada família e, depois, quando entrarem para a escola, as crianças poderão depositar esses mesmos sacos nesta central. O objetivo é o de compostar estes resíduos na área de compostagem já construída – tudo isto para produzir adubo que alimentará os solos da agrofloresta.

Nas três linhas agroflorestais já escavadas para plantação – uma já com composto e pronta a plantar neste dia -, vai haver produção agrícola e há até a ideia de abrir o acesso deste baldio à Feira da Ladra e vender os hortícolas aqui produzidos.

“Assim que começarmos a produção, queremos abrir um mercado aos sábados. Queremos uma dinâmica de venda para a própria sustentabilidade do projeto. Nestas três linhas vamos plantar cerca de 400 árvores e arbustos, uns de fruto e outros não, e hortícolas”, explica Inês Andrade.

Há ainda uma estufa que guarda vários exemplares de hortícolas e plantas – todos prontos a integrar o futuro ecossistema da agrofloresta.

É aqui que encontramos Rodrigo Borralho, um designer com um curso de agricultura regenerativa e com paixão pelas plantas. À sua volta, cerca de uma dezena de crianças ouvem com atenção como propagar diferentes plantas e, depois, colocam o recém adquirido conhecimento em ação. É com a ajuda delas que se opera o milagre da multiplicação das plantas.

Hoje, Rodrigo esteve a mostrar como propagar alfazema, alecrim, kiwi, goji, maracujá e pera-melão.

“Faço a ponte entre o que eles estão a dar em aula e a natureza”, conta Rodrigo Borralho.

Aulas na floresta e um clube de jornalismo

Para documentar o progresso da agrofloresta, as crianças interessadas vão, a partir de agora, poder juntar-se a um novo clube de jornalismo, reunindo-se para recolher imagens e sons e para escrever notícias sobre os trabalhos da comunidade.

Junto ao Zoo compostor – a casa das galinhas – foram colocados bancos produzidos a partir do corte de troncos de árvore. Criaram, assim, uma sala de aula exterior, onde até aulas de matemática são possíveis, asseguram-nos – trazendo ainda mais vida a um espaço que, até há pouco mais de dois anos, não passava de um baldio ao abandono.

Hoje, os professores agendam aulas para que haja aqui complementaridade entre o que as crianças vão aprendendo e o que aqui podem fazer.

Durante o período letivo, as crianças e jovens desta escola básica e secundária vão continuar a cuidar do espaço, com a ajuda da equipa do projeto Changing (H)earth. E, para o final de fevereiro, está prometido novo evento “Sábado na Floresta”, aberto à comunidade.


Frederico Raposo

Nasceu em Lisboa, há 30 anos, mas sempre fez a sua vida à porta da cidade. Raramente lá entrava. Foi quando iniciou a faculdade que começou a viver Lisboa. É uma cidade ainda por concretizar. Mais ou menos como as outras. Sustentável, progressista, com espaço e oportunidade para todas as pessoas – são ideias que moldam o seu passo pelas ruas. A forma como se desloca – quase sempre de bicicleta –, o uso que dá aos espaços, o jornalismo que produz.

frederico.raposo@amensagem.pt


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