Cresceu rodeada de livros. A avó, que era merceeira em Sesimbra, quando ia a Lisboa, comprava livros, que trocava com as amigas. “Depois faziam um bolo e sentavam-se a falar sobre os livros. Era uma verdadeira comunidade de leitoras. A minha avó nasceu em 1904 e comprava o jornal todos os dias”, conta Rosa Alface, que não esquece as férias em casa dos avós, onde o direito à preguiça se cumpria a ler.

“Nas férias, líamos a Colecção Dois Mundos, sem critério algum. Chegávamos à estante e tirávamos um, líamos, voltávamos a pôr na estante e tirávamos outro. Podia ser o Diário de Anne Frank, o Hemingway, o Steinbeck, o Moravia, o que fosse. Às vezes, agora leio-os e penso: não percebi metade. Porque ler não é perceber. Mas é isso, venho de uma família que sempre gostou de livros.”

E sempre teve muitos lá em casa.

Em 1975, 76, com Portugal a estrear-se na democracia e os portugueses a celebrarem a liberdade recém-conquistada, os pais abriram uma livraria no coração de Almada, no Centro Comercial Faraó, na Praça do MFA, em frente ao Café Central.

Chamava-se Escriba.

Vídeo de Líbia Florentino, conduzido por Rui Lagartinho e que foi um presente dos amigos de Rosa Alface, pelos 30 anos da Escriba.

“Gostava tanto do nome que quando abri esta dei-lhe o mesmo nome. Tem tudo a ver com livros, não é? E também foi lá que me apaixonei por esta profissão de livreira. Na época, o Faraó era um centro comercial importante, estava aberto à noite, as pessoas iam lá passear, como passeiam agora no Almada Forum, e eu substituía os meus pais, à noite, para irem jantar, e ajudava nos fins de semana e no Natal”, diz Rosa, fazendo contas à vida.

Quarta-feira, 24 de novembro de 1993, abria então, no 100 F da Rua da Cooperativa Piedense, na Cova da Piedade, em Almada, a livraria Escriba, de Rosa Alface, que estudou Filosofia, mas não acabou o curso. Até à véspera de fazer 35 anos, andou a saltar de trabalho em trabalho sem nunca se prender a nenhum, porque, no fundo, sabia, o amor dela eram os livros e o que queria era ser livreira.

E, então, a 4 de outubro de 1993, arriscou tudo e comprou o espaço de 30 m2 na Cova da Piedade, que ofereceu a si própria como presente de aniversário. Fazia 35 anos no dia a seguir, o mesmo em que a República Portuguesa completava 83.

A Escriba já tem 30 anos, mas Rosa conta “quarenta e tal de livrarias”.

A bússola do bairro

“O grande amor da minha vida era isto. Eram os livros.” Por isso, aos 35 anos, definiu que era a “idade estratégica de mudar de vida”.

“Toda a gente achou maluquice, até porque esta loja custou um disparate de dinheiro na altura: 25 mil contos. Mas era o preço da época. Todos os que compraram lojas aqui pagaram o mesmo por m2. Esta rua tinha muita vida, tinha uma loja de desporto, uma loja de roupa de homem muito boa, uma perfumaria, um banco, uma ourivesaria, tinha muita dinâmica. Hoje, não tem nada. Hoje, as pessoas vêm aqui para vir à livraria”.

A “maluquice” dura há 30 anos e Rosa Alface tem 65. Sabe que um dia terá de se reformar, mas enquanto tiver pernas e cabeça, “porque, parecendo que não, este trabalho exige robustez”, cá estará.

Acredita que um livreiro com a dimensão dela, num bairro como o dela [vive aqui desde os anos 1980] tem um importante papel social a desempenhar.

Livraria Escriba, Rosa Alface, Cova da Piedade
Rosa Alface acredita que uma livraria de bairro como a dela pode ser fundamental para a criação a relação dos miúdos com os livros. Foto: Líbia Florentino.

“Podem todos achar uma idiotice, mas eu acho mesmo isto. Acho que marca. Pode marcar a vida de uma criança, por exemplo. Os miúdos têm-me como um ponto de referência quando vão da primária para a preparatória, alguns vêm passar uma tarde ou uma manhã na livraria nas férias, acham o máximo fazer laços, embrulhar livros, conferir e isso cria uma relação com a leitura. Essa é a parte que eu acho fantástica no meu trabalho. Porque esta de marcar e de arrumar livros, enfim, dispensava.”

Não é só para os miúdos que Rosa Alface é uma referência.

Os vizinhos do bairro e quem aqui passa têm-na como bússola. Perguntam-lhe tudo e mais alguma coisa, pedem-lhe ajuda para as operações bancárias no banco ao lado, para guardar os sacos de compras e até dão a morada da livraria nas compras online. “É muito querido, não é? Cria-se aqui uma comunidade. Como tenho porta para a rua e estou muito visível, as pessoas vêm ter comigo para tudo. Mas não sou ponto de recolha, simplesmente disponibilizo-me para as pessoas que conheço ou que são clientes habituais, que compram as coisas online e depois não estão em casa e assim é mais fácil”.

Essa comunidade criada à volta da livraria e o facto de não ter uma renda mensal a pagar são duas das razões por que tem conseguido manter a porta aberta. Mas há outras, que a própria razão desconhece.

Livraria Escriba, Rosa Alface, Cova da Piedade
Na livraria Escriba, a montra e as zonas das estantes mais ao alcance dos olhos são ocupadas por poesia e livros de editoras independentes. É uma espécie de justiça social aplicada à literatura. Foto: Líbia Florentino

As prateleiras que priorizam a poesia e os livros menos conhecidos

São 12 a 15 mil os livros enchem a ilha ao centro da livraria Escriba e as estantes do chão ao teto que forram as três paredes e foram feitas há 30 anos, por Rosa e pelos amigos.

Rosa Alface sabe onde estão todos e tem uma “gestão de prateleiras” muito particular: onde nas grandes livrarias estão as novidades e os best-sellers, que pagam para estar ali, à altura dos olhos, a livreira independente põe os livros de poesia e as novidades menos conhecidas, de pequenas editoras, relegando os best-sellers para onde os olhos não alcançam, junto ao teto ou debaixo do balcão.

Os princípios da equidade e da justiça social aplicados à literatura, que cria episódios divertidos como o do cliente que veio à procura da biografia de Francisco Pinto Balsemão para oferecer ao pai e Rosa tinha-a aos pés, debaixo do balcão.

“O Rui [Lagartinho, jornalista e grande amigo de Rosa] diz uma coisa muito engraçada: ‘antes eram os livros clandestinos que estavam escondidos debaixo do balcão, agora são os que tu não gostas’”, conta a livreira a rir.

“Mas, agora a sério, independentemente de se gosto ou não dos livros, não vale a pena ter exposto aquilo que as pessoas encontram na bomba de gasolina, nos correios ou nos hipermercados, não é? Até porque isso é o que já vende toneladas. Prefiro dar destaque a livros diferentes, de editoras que não têm dinheiro para comprar bancadas nas grandes livrarias, que aquilo é tudo pago, sabias? Mas é evidente que tenho de ter os outros, porque há pessoas que vêm pedir. Isso é que é muito difícil, ter dinheiro para isso tudo.”

Dificuldades que Rosa Alface tem enfrentado e contornado ao longos destes 30 anos com estoicismo, com a convicção de que a livraria Escriba faz a diferença no bairro e na vida das pessoas que de lá gastam e com amor, imenso amor.

“Tenho um clube de fãs e isso é fantástico”

Às vezes perguntam-lhe se se arrepende e ela diz que não. “Não é fácil, é evidente que às vezes tenho períodos em que penso: vou fechar a livraria, porque, a dada altura, tenho de pôr dinheiro meu aqui e isso é um disparate, não é? Mas é um projeto que eu amo perdidamente e em que acredito perdidamente. Venho para cá com a maior das alegrias. Se estou mal disposta e triste em casa, venho para a livraria trabalhar, porque o trabalho não acaba nunca. E, depois, escolher os livros, ver as primeiras novidades, comprar, acho isso um privilégio, acho o máximo”, diz Rosa, que explica melhor as já referidas razões da sobrevivência da livraria Escriba.

Livraria Escriba, Rosa Alface, Cova da Piedade
Os amigos, como Rui Lagartinho, na foto com Rosa Alface, e a comunidade que nestes 30 anos se juntou em torno da Escriba são uma das razões pelas quais a livraria independente tem resistido. Foto: Líbia Florentino

“A primeira é que a loja foi paga logo no início e, portanto, não tenho despesa com a renda e a outra é que tenho um clube de fãs. E acho isso fantástico. Eu tenho pessoas que vão à FNAC, fotografam os livros que querem e mandam-me pelo WhatsApp para me encomendarem a mim, estando ali mesmo ao lado do livro. É porque são mesmo fãs da livraria e querem que continue”, conta.

Ela que ainda há dias disse aos “vizinhos” do lado, funcionários do Millenium, que fechou a sucursal aqui, que há décadas que se vaticina o fim do papel, dos livros e das livrarias independentes, mas que se calhar as agências bancárias ainda acabam primeiro.

“Acredito mesmo que livrarias desta dimensão fazem sentido e têm futuro nas cidades”, diz Rosa, nascida e criada em Almada. “Andei no liceu aqui. Andei na ginástica, no judo, na natação. Sou uma almadense convicta e acredito numa cidade em que as livrarias de bairro tenham lugar e em que o comércio tradicional, diferente do dos grandes centros comerciais, volte a dar vida às ruas.”

A recessão do início do século XXI e a abertura do Almada Forum, inaugurado em 2002, foram, na opinião de Rosa Alface, a razão para a crise do comércio tradicional na cidade, que levou mesmo a que, entre 2011 e 2020, depois de ter fechado A Livraria, na Rua Luís de Queiroz, e antes de abrir a Bertrand, na Avenida Afonso Henriques, a Escriba fosse a única livraria de rua em Almada [a Quotidien e as Capas Negras, atual Papelaria Fernandes, também vendem livros, mas são sobretudo papelarias].

“Obrigado, Zé”. A poesia nunca acaba e a luta continua

A Livraria, chamava-se assim mesmo, a tal que fechou em 2011, também pertenceu a Rosa Alface, entre 1997 e 2002. “Depois enviuvei e vendi. Era um espaço fantástico, enorme. O Saramago ia lá sempre lançar os livros e no ano em que ganhou o Nobel também foi. Foi um acontecimento. A rua cheia, cheia, cheia. Tenho uma foto muito engraçada que me deram, que alguém tirou de dentro da livraria, com um homem que, do lado de fora, encostou à montra um A4 manuscrito que dizia: ‘Obrigado, Zé’. Tão querido, não é?”.

Quando A Livraria mudou de mãos, os clientes não deram logo por isso. “Sabes como é que perceberam? Pelos livros na montra. Uma vez, um cliente chegou aqui e disse: ‘estive lá em cima e disseram-me que A Livraria já não era vossa. Eu realmente achava muito esquisito ter acabado a poesia. Vocês tinham tanta poesia’.”

A poesia é o género literário mais acarinhado por Rosa Alface. Atrás do balcão há um quadro negro com um poema sempre diferente escrito a giz. “Tenho um orgulho imenso de dizer que não há um dia que eu não venda um livro de poesia. O que é uma coisa maravilhosa, não é?”

É. Como é maravilhosa a história do cliente que ligou à Rosa para ela preparar um cesto de presente para uma amiga com livros de poesia. “Eh pá, eu fiquei numa excitação que não imaginas, fui logo para a livraria escolher os livros. Era uma sexta-feira à tarde e depois fui entregar o cesto ao Seixal. Mesmo giro”

E, depois, há os clientes que deixam listas de Natal, para quem lhes queira oferecer livros de presente, como se faz com as listas de casamento. “Ainda hoje veio uma miúda perguntar-me se a madrinha já tinha deixado a lista de Natal.”

Livraria Escriba, Rosa Alface, Cova da Piedade
“O trabalho nunca acaba”, diz Rosa Alface, que tem entre 12 e 15 mil livros num espaço de 30 metros quadrados. Foto: Líbia Florentino

A relação da Rosa com os clientes é outra das armas da resistência. Sabe-lhes os gostos, o que já leram e não leram, aconselha, perde tempo com cada um. Ela diria que ganha. E tem razão. Muitos são amigos de longa data ou tornaram-se amigos. E isso foi particularmente importante durante o período da pandemia.

“A solidariedade que senti foi incrível e teve coisas espantosas, desde um cliente meu que se ofereceu para ir de bicicleta fazer entregas de livros a outros que, quando o reizinho (eu chamo reizinho ao nosso presidente) determinou que só podiam abrir as livrarias que vendessem outras coisas e eu me recusei a transigir, porque só vendo livros, combinavam comigo e vinham buscar as encomendas ao parque de estacionamento aqui ao pé, uma coisa assim meio clandestina.”

E ainda houve a campanha Adopta uma livraria, da Antígona e da Orfeu Negro, que incluiu a Escriba. “Foi um sucesso. Imensa gente ficou a conhecer a livraria por causa dessa campanha. A solidariedade e honestidade deles foi imensa. Editores a sério, à antiga”.

Como a livraria Escriba, amor da vida de Rosa Alface, que, apesar de acreditar no futuro das livrarias independentes e defender a importância destas na geografia das cidades, não deixará que seja de mais ninguém senão dela. “A Escriba acaba quando eu já não tiver pernas nem cabeça. Esta não vendo a ninguém.”

Até lá não nos doa a nós a cabeça e celebre-se a Escriba.

Foi o que aconteceu do dia 24 de novembro de 2023, sexta-feira, ao fim da tarde, que por estes dias já é noite. A livraria Escriba encheu-se de gente. Os amigos mandaram fazer sacos de pano dos 30 anos da livraria, editaram um pequeno caderno comemorativo, que recomenda um livro por cada ano de vida da Escriba, montaram umas mesas cá fora, levaram comes e bebes, convidaram outros amigos, e fizeram uma festa.

Rosa Alface quase não saiu de trás do balcão, mas estava feliz. Porque a luta continua. Sempre.


Catarina Pires

É jornalista e mãe do João e da Rita. Nasceu há 49 anos, no Chiado, no Hospital Ordem Terceira, e considera uma injustiça que os pais a tenham arrancado daquele que, tem a certeza, é o seu território, para a criarem em Paço de Arcos, terra que, a bem da verdade, adora, sobretudo por causa do rio a chegar ao mar mesmo à porta de casa. Aos 30, a injustiça foi temporariamente corrigida – viveu no Bairro Alto –, mas a vida – e os preços das casas – levaram-na de novo, desta vez para a outra margem. De Almada, sempre uma nesga de Lisboa, o vértice central (se é que tal coisa existe) do seu triângulo afetivo-geográfico.


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