Pela décima vez, Pedro Maurício pede desculpas, levanta-se e vai à porta do bar, sorri, aperta a mão de um cliente, acena com a cabeça para a mulher que o acompanha e acomoda o casal na esplanada. “Desculpe-me lá, é que a malta quer sempre ver o senhor Pedro”, diz, ao voltar para a entrevista que certamente seria interrompida outra dezena de vezes.
Aos 56 anos, o “senhor Pedro” não é só o dono da noite no Cockpit, o mítico bar que chega aos 50 anos com espírito jovial, mas o dono da noite de Alvalade e do Areeiro.
Ambos bairros que viu desfilar diante dos seus olhos, nos arredores da avenida de Roma, testemunhando as mudanças de pele nas últimas três décadas em que esteve à frente do antigo clube privado e hoje bar, na Avenida Sacadura Cabral.

De passageiro a comandante de um bar
A maestria com os coquetéis foi literalmente aprendida nos livros.
“Comprei um manual que ensinava a preparar os drinks passo a passo e, no início, fazia cada um deles com o livro na mão”, diverte-se Pedro.
Milhares de horas de coqueteleira depois, nunca chegou a experimentar uma gota sequer de uma das incalculáveis bebidas que preparou.
Pois, curiosamente, o homem que pilota a noite de Alvalade não bebe.

Fundado por dois comandantes da TAP em 1973, o Cockpit aterrou nas mãos de Pedro em 1995. Foi um misto de presente e voto de confiança da mãe do então jovem de 28 anos que desde o fim da adolescência enfrentou turbulências pessoais e, finalmente de volta ao controlo do manche da própria vida, precisava de um vento de cauda para retomar o seu destino.
“O Cockpit foi o meu recomeço de vida”, confessa o “senhor Pedro“, enquanto se ausenta da entrevista mais uma vez, agora para preparar uma dose de gin, o ex-libris da casa. Com maestria, mistura os líquidos no copo que remonta a um pequeno troféu transparente, pontuando o preparo com o aroma e a fineza de um ramo de hortelã.
Fê-lo mecanicamente, as mãos treinadas pelos anos de prática, desde que o gin virou moda em Lisboa no início do milénio. Perceber que a incolor bebida de origem neerlandesa daria cor às noites lisboetas desviou a rota do Cockpit e o bar descolou entre os mais jovens, conquistando os passageiros que anos depois ainda procuram um voo tranquilo após um dia de trabalho.

O bar que ganhou a rua
Como um legítimo cockpit, o bar de Pedro é compacto e fascinante, um desafio aos designers de interiores. A parte interna não chega a 25 metros quadrados, divididos em três pisos, onde se encaixam numa cave o balcão e a cozinha. No piso térreo, o mini lobby, armários e o caixa e, no mezanino, três mesas e a casa de banho.
É na esplanada, porém, que a noite desdobra-se, com as cadeiras e mesas distribuídas no passeio, protegidas pelo toldo preto.
“As pessoas querem rua”, resume Pedro que, numa conta de cabeça, calcula em 50 o número de assentos disponíveis nos dois ambientes, o número de passageiros que costumam diariamente fazer o check-in nas noites do Cockpit.
Quando frequentava o bar, nos anos 1980, era diferente. “Isto era um clube privado. Havia apenas a parte interna”, explica Pedro, levantando-se pela enésima vez, para servir uma mousse de chocolate a um dos clientes assíduos.
O bar ganhou a rua já sob a sua administração, quando o atual comandante abriu as portas para os vizinhos de Alvalade.
A esplanada não foi a única alteração da atual gestão. Na parte interna está em exibição uma ínfima parte da coleção particular de Pedro, cerca de 300 das três mil peças que colecionou, entre entre bibelôs de louças, miniaturas de metal e outras memorabilias, protegidas pelas vitrines que forram as paredes e dão um tom vintage à decoração do Cockpit.



O homem da noite de Alvalade
Montar o bar como um puzzle de si mesmo levou Pedro a procurar por outros pequenos prazeres para se distrair. Assim, passou a abrir bares em série nas proximidades do Cockpit que, quando alcançavam a notoriedade e a viabilidade financeira, acabavam a ser vendidos.
“Sou um grande dinamizador da noite de Alvalade”, afirma, sem falsa modéstia.
E não se pode negá-lo. Só na rua Augusto Gil, perpendicular à Sacadura Cabral, há três exemplos, o primeiro deles logo em frente, o República das Tapas, que costuma abrigar quem não consegue uma reserva no Cockpit. Seguindo cerca de 100 metros na mesma via, há ainda os atuais Club Zíngara, o sport bar e as mesas de bilhar do Magic Pool e o Clínica Bar.
Todos, em períodos distintos, abertos por Pedro e, posteriormente, quando conseguiam andar pelas próprias pernas, trespassados. Um hábito que se mantém firme.
Em paralelo ao Cockpit, gere o restaurante do Clube TAP, numa operação que é a antítese do bar do Areeiro, onde costuma produzir em ritmo industrial num espaço com mais de 200 lugares.
Uma rotina que o obriga a começar a jornada diária por volta das 11 da manhã no Clube TAP e estendê-la até o último cliente do Cockpit, às duas da madrugada. Sempre a correr de um lado para o outro, como nas inúmeras vezes em que se levantou da mesa para atender aos clientes. “Faço quilómetros de caminhada por dia apenas neste espaço”, calcula.
As turbinas de Pedro Maurício, porém, não param. Incansável, abriu há cinco meses um hub do Cockpit num quiosque na avenida de Roma e já planeia o próximo movimento. “Estou a ver um espaço em frente à residência de estudantes na Capitão Ramires para um club”, revela, antes de outra vez abandonar a entrevista, pois as ostras não podem esperar a serem servidas.
Afinal, o “senhor Pedro” tem uma reputação a zelar.
A atmosfera de um eterno sábado
A impressão de quem passa diante do número 18 da avenida Sacadura Cabral é de que é eternamente sábado.
Invariavelmente, a esplanada está lotada e quase nunca há espaço na parte interior do Cockpit. Pedro, porém, diz que as aparências podem enganar. “Após a mudança no estacionamento na área, tem sido difícil encher a casa”, garante. A mudança em questão foi a conversão do estacionamento apenas aos residentes, em vigor nos últimos meses, o que condicionou o fluxo dos clientes de outros bairros.
“A pandemia também mudou alguns hábitos, como o de as pessoas pedirem comida em casa. Isso nunca mais voltará a ser o mesmo de antes”, completa.

Parte do sucesso em manter a casa cheia praticamente a semana inteira vem da fidelidade da clientela, alguns dos quais já na segunda geração. Ou até mais. “Há clientes que vieram no colo dos pais e hoje trazem os filhos de colo”, diz Pedro, de volta de mais uma incursão até à porta para acomodar quatro mulheres numa mesa.
Uma clientela fiel e madura, a maioria a girar entre os 40 e os 60 anos de idade, composta em grande parte por profissionais liberais, empresários e servidores públicos.
“Não tenho problema em dizer que, até pelo perfil do bairro onde está, entre Alvalade e o Areeiro, os clientes são maioritariamente de classe média beta”, diz, sem temer ferir suscetibilidades.
Para além de advogados, professores universitários, assessores parlamentares e jornalistas, obviamente também pousa no Cockpit a tripulação original de comissários, comissárias, pilotos e copilotos, que aproveitam as escalas para rever antigas e fazer novas conexões, entre doses de ostra e de gin.
Mantêm a tradição do início, mesmo em novas mãos.
A aceitação entre quem vive nas nuvens foi tanta que partiu dos funcionários da aviação a sugestão para que Pedro assumisse o restaurante do Clube TAP. “Foi um par deles que me falou da disponibilidade e outros insistiram para que assumisse o local”, conta Pedro, que fechou o negócio após um rápido voo de reconhecimento.
O abstémio que é especialista em gin
O cheiro de tosta e de hambúrguer invade o radar da entrevista. As iguarias voam sobre as bandejas nas mãos da empregada de mesa e pousam na mesa de quatro felizardos. Apesar da cozinha caprichada, porém, não há como escapar que a grande atração da casa nos últimos anos tem sido a imensa variedade de gin, expostas nas garrafas enfileiradas sobre o balcão.

“São cerca de duzentos tipos de gin”, orgulha-se Pedro, indicando no menu as duas dezenas de coquetéis disponíveis, uma lista que costuma sofrer alterações de tempos em tempos, apresentando sempre novidades. Entre elas, o “gin do dia”, como o nome indica, uma sugestão da casa que varia de acordo com o dia da semana.
No dia da entrevista, por exemplo, o gin sugerido, testado e aprovado foi à base do rótulo Hendrix Neptunia, servido com laranja e lascas de pepino.
A aposta no gin como carro-chefe aconteceu no início dos anos 2000, quando Pedro percebeu que a bebida tornar-se-ia uma tendência na noite de Lisboa e pôs nele todas as fichas.
Não perdeu a aposta.
Apesar da expertise e da variedade, Pedro nunca provou nenhum dos seus gins, seja do dia ou sugeridos pela carta. Aliás, nunca experimentou nenhuma das bebidas alcoólicas do Cockpit ou de outro bar recente: há 28 anos, o dono da noite de Alvalade não coloca uma gota de álcool na boca. A perseverança é uma forma de contornar os riscos do retorno à uma indesejada adição que lhe provocou turbulências na juventude.
O cuidado abstémio não evita a entrega a outros vícios, como o cigarro constantemente aceso entre os dedos, e o da velocidade: se o dono do Cockpit não pilota aviões como os antigos proprietários, não se pode dizer que não esteja habituado a voar por Lisboa guiando um motor que pode alcançar as centenas de quilómetros por hora.
Nas noites de sexta-feira e de sábado, é impossível não notar a paixão de Pedro estacionada em frente ao Cockpit, um reluzente e pouquíssimo discreto Porsche… verde alface. “Gosto muito dos Porsche, mas a cor foi por acaso, não para chamar a atenção”, disfarça, enquanto os olhos brilham ao mirar a máquina em frente ao bar.
O bar onde Pedro Maurício, ao contrário de quando guia o seu veloz Porsche verde alface por Lisboa, há quase três décadas vê lentamente passar a noite de Alvalade e que, a partir do seu Cockpit, convida os senhores e senhoras passageiros a um tranquilo voo na companhia de um gin.

Álvaro Filho
Jornalista e escritor brasileiro, 50 anos, há sete em Lisboa. Foi repórter, colunista e editor no Jornal do Commercio, correspondente da Folha de S. Paulo, comentador desportivo no SporTV e na rádio CBN, além de escrever para O Corvo e o Diário de Notícias. Cobriu Mundiais, Olimpíadas, eleições, protestos – num projeto de “mobile journalism” chamado Repórtatil – e, agora, chegou a vez de cobrir e, principalmente, descobrir Lisboa.
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