É protegido pelas sólidas muralhas do Castelo de São Jorge que o último menestrel brasileiro, prepara-se para voltar aos palcos de Lisboa. Depois de 50 anos de carreira e 30 discos, o cantautor Alceu Valença cumpre a rotina de duas vezes por ano trocar as residências no Rio de Janeiro e em Olinda pela capital portuguesa, para descansar e inspirar-se.
Um descanso que não dura muito, pois o palco não demora a chamar.
“Venho para descansar e curtir a cidade, mas não consigo parar muito tempo, não. Fazer shows me alegra. Costumo dizer que o show é a minha vitamina”, confessa o pernambucano de 77 anos, nascido em São Bento do Una, nos limites do sertão de Pernambuco.
Um nordestino como tantos outros que, no início dos anos 1970, cumpriu o rito de migrar para o “Sul Maravilha”, não para engrossar a mão de obra que ajudou a erguer os arranha-céus do Rio de Janeiro e São Paulo, mas um jovem com espírito de trovador, disposto a usar as mãos nas cordas de uma guitarra – ou violão, como o instrumento é chamado no Brasil – como um talentoso operário da canção.
Vem também dos anos 1970 o encanto por Lisboa. “Vim pela primeira vez para cá em 1979 e, quando conheci o castelo, fiquei doidinho”, recorda Alceu.
Ele que costuma chamar a si mesmo de “anjo avesso”, uma referência ao espírito pueril que o adulto preserva dos tempos de “moleque” quando, cavalgando o seu cavalo de pau, levantava a poeira do árido chão nordestino.
O homem que deu um hino à democracia
Cavalo de Pau e Anjo Avesso são justamente os títulos dos álbuns que ergueram o nome de Alceu Valença no cenário da música brasileira no início dos anos 1980, vendendo juntos mais de quatro milhões e meio de cópias. É de Anjo Avesso, de 1983, o hit Anunciação, acolhido pelos brasileiros como o hino da retomada democrática no país, que concretizar-se-ia em 1985.
Na canção, no meio de “brumas leves da paixão que vem de dentro“, a voz de um anjo anuncia num sussurro o retorno de uma alegria há muito aguardada. “Tu vens, eu já escuto os teus sinais”, canta o refrão, que voltou a ser entoado nas ruas brasileiras durante as presidenciais de 2022, na iminência da vitória e do retorno de Lula da Silva ao cenário político.
Apesar dos 100 milhões de acessos no Spotify, Anunciação não está no top das mais tocadas do cantor na plataforma. A honra é de La Belle de Jour, com um milhão de cliques a mais, uma letra romântica de 1992 que versa sobre os veranis encontros amorosos com a “moça mais linda de toda cidade” na praia da Boa Viagem, em tardes de um domingo azul no Recife.
Um romantismo que foi sintetizado e engarrafado para ser servido como vinho no Brasil, também disponível nas mesas dos lisboetas, nas versões em tinto e branco de La Belle de Jour, por enquanto servidas nos restaurantes Cícero Bistrot e Dalí, em Lisboa.
Para agora ouvir Alceu como quem brinda.

Alfama como urbi paralela da amada Olinda
Uma fila estende-se da entrada do castelo que deixou Alceu “doidinho” até quase em frente à porta da sua casa em Lisboa. Apesar disso, o turismo alucinante da capital não tira o humor do músico. “Pior é na minha casa em Olinda, que virou ponto turístico local”, explica Alceu, que costuma refugiar-se do assédio dos fãs em longas temporadas no Rio de Janeiro.
Não é um exagero.
Em Olinda, a casa do cantor na rua de São Bento é passagem obrigatória dos guias turísticos, onde olindenses e fãs de outros cantos do país aglomeram-se até que Alceu surja na varanda do prédio em estilo colonial para reger a pequena multidão que canta os refrões de Bicho Maluco Beleza e Morena Tropicana, entre outros sucessos.
Em Lisboa, porém, a atração turística é outra. Mesmo assim, o frenesim dos turistas em frente ao Castelo de São Jorge alterou a rotina do músico que, beneficiado pelo estatuto que permite o acesso livre aos residentes, costumava cruzar a rua para visitar o vizinho ilustre. “Agora, está impossível. Só o vejo daqui, da janela”, lamenta.
Viver em Alfama não foi escolhida por acaso. O castiço bairro lisboeta é o que Alceu costuma chamar de uma urbis paralela de Olinda, com seu casario, igrejas e ladeiras.
“Parece muito com Olinda e é por isso que gosto daqui. Gosto de passear, de ver os nomes das ruas, que também lembram as ruas do meu Recife de antigamente”, conta.
Duas dessas ruas homónimas às do Recife, as ruas da Saudade e de Limoeiro, que se cruzam nos limites da Sé de Lisboa, inspiraram poemas de Alceu Valença, dois dentre tantos outros exemplos da inspiração que a cidade evoca no cantor. Versos e letras de música que surgem nas noites insones ao pé do castelo, quando o compositor converte o tempo de sono em arte.
Parte dessa produção noturna foi reunida no livro O Poeta da Madrugada (Editora Chiado), publicado em Portugal em 2015, que traz também alguns poemas escritos quando o ainda jovem estudante de direito Alceu nem sonhava que futuramente trocaria a toga e os tribunais pelo figurino colorido que o acompanha nos concertos e os palcos.
O próprio Alceu virou livro com a recente publicação de Pelas Ruas que Andei (Cepe Editora), a biografia escrita pelo jornalista Júlio Moura, assessor do cantor, que costuma acompanhá-lo nos seus périplos por Portugal. O lançamento no Recife, com mais de 800 exemplares vendidos apenas na sessão de autógrafos, e no Rio de Janeiro, esgotaram as edições.
Assim como acontece com o vinho, em breve os passos pelas ruas que Alceu andou estará disponível para os leitores portugueses.

A sonoridade lusitana no HD da memória
Para além das ruas e da atmosfera que remontam a sua urbi paralela Olinda, evocadas nas noites insones na companhia do castelo, Lisboa inspirou a prosa poética de Alceu Valença através dos desassossegos de Fernando Pessoa, apresentado ao jovem Alceu por um parente.
“O meu tio Lívio era uma espécie de meu mentor e um dia cheguei à casa dele e ele estava ouvindo um disco na radiola de trinta e três rotações com os poemas de Pessoa declamados pelo ator português João Villaret. Fiquei fascinado e, a partir dali, comprei os livros e passei a ler tudo dele”, conta.
Uma inspiração que acabou tresandando na música de Alceu, desde o primeiro disco, com Portugal novamente exposto ao futuro músico pelas mãos de um ente da família.
“A árvore da minha família lá em São Bento do Una tem vários ramos portugueses. Além de Valença, sou Oliveira, sou Paiva, Rodrigues, Alves e Almeida. Meu avô Adalberto tocava bandolim e essa sonoridade lusitana ficou no HD da minha memória e quando compus Borboleta, no meu primeiro disco, dei conta dessa influência”, lembra.
Alceu diz ainda que, depois de ter consciência disso, passou a perceber como muito da música brasileira segue a mesma influência lusitana. “Não só na minha música, mas em outras há uma forte ligação com a cultura portuguesa. Basta trocar o samba-canção ou o baião pela guitarra portuguesa que vira fado”, explica.


De volta a Lisboa, 40 anos depois do Avante
Parte desse repertório de afinidades poderá ser ouvido pelos portugueses nos concertos da digressão Alceu Dispor: depois de ter passado pela Figueira da Foz e pelo Porto, estará em Lisboa esta quarta-feira, 4 de outubro, no Casino Estoril, e ainda nos palcos de Madrid, Barcelona, Palma de Maiorca, Paris, Berlim, Londres e Amesterdão.
Uma volta ao palco quatro décadas depois da estreia em Lisboa, durante o Festival do Avante, em 1983. “Estava de passagem, após gravar um disco na Holanda e convidaram-me para cantar no Avante. Depois disso, já fiz concertos solo, apenas do meu violão e até acompanhado de uma orquestra.
Para quem tiver um pouco de sorte, é possível ainda encontrar Alceu Valença pelas ruas de Lisboa, onde costuma passear, atento à toponímia que remonta às ruas do Recife e de Olinda. E daí, quem sabe, o ouvir o último menestrel brasileiro recitar o verso que usou pela primeira vez no disco Anjo Avesso e ainda costuma repetir ao cruzar o arco de entrada do seu vizinho Castelo de São Jorge.
“A história do anjo avesso, tem começo em Portugal. São Jorge, santo guerreiro, no seu cavalo de pau.”

Álvaro Filho
Jornalista e escritor brasileiro, 50 anos, há sete em Lisboa. Foi repórter, colunista e editor no Jornal do Commercio, correspondente da Folha de S. Paulo, comentador desportivo no SporTV e na rádio CBN, além de escrever para O Corvo e o Diário de Notícias. Cobriu Mundiais, Olimpíadas, eleições, protestos – num projeto de “mobile journalism” chamado Repórtatil – e, agora, chegou a vez de cobrir e, principalmente, descobrir Lisboa.
✉ alvaro@amensagem.pt

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