Alfredo enche três quartos do copo com soda e o restante com a cerveja soprada da bica. A espuma transborda, o fio alvo serpenteia pela superfície suada de vidro como uma víbora albina.
“Um Panaché!”, anuncia Alfredo, balançando a generosa barriga de frade.
E a imperial batizada com soda viaja nas mãos da empregada de mesa, equilibrada na bandeja que corta o ar graciosa, como um tapete mágico.

A palavra Panaché, que se lê assim afrancesada, Panachê, é uma surpresa para os ouvidos brasileiros. Remete a um idílico e utópico destino, uma Xangri-Lá, uma Pasárgada, um refúgio, para onde parte em sonho quem não conseguiu sair de Lisboa no verão.
Afinal, o verão de quem não sai de Lisboa não tem azul, verde, mar, areia, praia fluvial e vento salgado no rosto. No máximo, a brisa insossa do leque nas mãos preguiçosas da espanhola de busto vasto, varrendo indolente o pó de um lado para o outro.
O verão de quem não sai de Lisboa não tem velas hasteadas nem barquinhos felizes nem o horizonte a perder de vista. O pôr do sol só aparece cortado entre os vãos dos prédios, o astro-rei enquadrado, o crepúsculo dos prisioneiros, visto das janelas gradeadas das celas.
O verão de quem não sai de Lisboa tem apenas os idílicos fins de tarde em Panaché.
Ainda bem.
Alfredo, o primeiro-ministro de Panaché, sabe disso. Alfredo sabe de tudo. Com os olhos espremidos pelas pálpebras eternamente húmidas, lê a alma dos homens de cotovelos sobre o balcão de vidro, de onde panados, rissóis e croquetes descolam numa frequência de fazer inveja à Portela.
“Só tenho dinheiro para uma Lambreta!”, anuncia o estafeta que acaba de chegar, ofegante, atirando três moedas para cima do balcão.
A Lambreta, aprenderia depois, é o meio de transporte mais utilizado em Panaché.
Alheio à pressa do homem, Alfredo lentamente puxa a alavanca da máquina de imperial e, num piscar de olhos, faz surgir por entre as mãos, como um mágico, o pequeno copo antes oculto, onde a espuma transborda agora abundante, os cabelos brancos de uma velha bruxa.
Ao meu lado, dois moradores de Panaché discutem a procedência do casal de turistas loiros de passagem pela cidade.
“São russos”, crava o primeiro. O outro não se convence: “Mas falam inglês”. E o primeiro, sem dar o braço a torcer, insiste: “Mas falam inglês com sotaque russo.”
Em Panaché é assim, os russos falam inglês com sotaque russo.
Enquanto outra Lambreta passa raspando por mim, Alfredo tenta solucionar o conflito diplomático com um poeta de boina, queixoso porque a cerveja preta acabou.
“O senhor não vai obrigar um preto a beber cerveja branca, vai?”, questiona o poeta que, viria a saber depois, não apenas traduziu Camões para o crioulo, como incluiu duas ou três estrofes da própria lavra para dar mais sentido à epopeia.
Quem leu, garante ter ficado bem melhor.
Em Panaché é assim, todos são poetas do seu jeito.
A cliente angolana que aguarda pelo copo de jeropiga parece discordar da contenda. “Nós africanos temos uma vida tão dura que não temos tempo para isso”, diz, antes de partir segurando a dose de jeropiga, a bebida com nome de cobra venenosa.
O poeta de boina, por sua vez, parece ter todo tempo do mundo para isso.
Impaciente, Alfredo diz que não é capaz de fazer surgir do nada uma cerveja preta. “Não sou o Pai Natal”, argumenta e a empregada de mesa com timing de stand up comedy, retruca: “Não é porque não quer, a barriga já tem.”
O impasse instala-se até o chefe de cozinha surgir do nada, o sorriso de pároco, o espírito de cavaleiro templário e, nas mãos, duas garrafas de cerveja preta, reluzentes como o Graal.
E a concórdia volta a reinar em Panaché.
Com exceção dos dois amigos ao meu lado.
Os turistas loiros de passagem por Panaché riem alto de alguma coisa e o primeiro insiste:
“Yah, São russos, sim, com certeza.”
É a hora de ponta e as Lambretas congestionam-se no balcão. Pela porta, surge um homem de barba branca de náufrago e a pele curtida pelo sol. Pede a Alfredo um ovo cozido. Diz que é para levar, mas recusa a embalagem e o ovo cozido termina no bolso da calça do forasteiro.
O náufrago sem naufrágio anuncia sem que lhe perguntem que parte para Fátima. Vai a pé, como já foi outras vezes. Tenciona visitar a Cova da Iria, ou melhor, voltar à Cova da Iria, onde se sente atraído como um íman pelo magnetismo do lugar.
Alfredo concorda com a cabeça enquanto serra ao meio um pão carcaça.
“Vou contar-lhe o que sei por mim mesmo”, anuncia o náufrago com o ovo cozido no bolso, pois em Panaché é assim, todos são cientistas, ocultistas e teólogos do seu jeito. “Já viu as pequeninas pedras de ferro espalhadas pela Cova?”
Alfredo parece não ouvir, concentrado em finalizar a bifana à moda Panaché, reforçada com duas salsichas, mas continua a balançar a cabeça, em concordância.
“Para mim, aquilo foi aberto por um meteoro”, conclui o náufrago, antes de virar costas e partir para a sua jornada, alisando com a mão o bolso onde o ovo cozido jaz como um amuleto.
Na saída, quase esbarra noutro forasteiro.
O novato que entra apressado arregala os olhos rútilos, lê na placa o ano de fundação de Panaché e pergunta em voz alta: “Atenção, portugueses! Quem reinava em Portugal em 1840?”.
Diante do silêncio geral, responde ao próprio quiz, o fio de saliva a escorrer viscoso no canto da boca de lábios rachados: “Pois saibam que era a Dona Maria II”.
Ninguém duvida nem concorda, pois em Panaché é assim, cada homem é a sua história.
É tarde, o sol se vai na moldura entre vãos dos prédios. A angolana encantadora de jeropigas regressa para pagar a conta. “Ser angolano não é para os fracos”, garante, desaparecendo pela porta. O poeta de boina também está de saída e pede um café para rematar a jornada em Panaché.
“Um café com gosto para o poeta!”, pede Alfredo e a empregada de mesa, com seu humor peculiar, é a sinceridade em pessoa. “Café, tudo bem”, diz, enquanto tortura a máquina de expresso, que geme e bufa em protesto. “Com gosto, já não garanto.”
Da cozinha, o chefe reaparece com seu sorriso de pároco e uma bandeja. É a última fornada de croquetes chineses, saidinha do forno, o melhor croquete chinês de Panaché, garantem os antigos.
A iguaria fumegante é oferecida aos presentes como hóstias numa comunhão e todos comem em silêncio e contrição, preparando o espírito para o retorno ao verão sem sair de Lisboa.
O Almirante, um homem alto e sério, só saberia depois, marinheiro de um país africano sem mar, navios e marinha, confisca dois croquetes para os filhos. Ninguém protesta, pois o Almirante é sempre o portador de notícias tão quentinhas quanto os croquetes.
“Preciso ir, haverá um golpe de estado por esses dias”, avisa, convicto, sem dizer precisamente onde. “Complicado, complicado”, reforça, batendo uma continência antes de desaparecer.
Os visitantes loiros também partem. Quando passam, ouve-se que, afinal, conversavam em alemão.
“Não disse? Russos, sabia!”, insiste o rapaz ao meu lado, com ar vencedor.
O relógio derrete-se na parede, como num quadro de Dalí, e as mesas começam a virar, empilhadas de pernas ao alto, dando a sensação que o mundo está de cabeça para baixo.
Nessas horas, surge a vontade de falar com um velho ou um novo amor antigo, marcar um encontro sob o pretexto de devolver aquele Neruda eternamente relegado no fundo da mochila, o que se pediu emprestado e nunca leu.
Mas o corretor do telemóvel não reconhece o idioma oficial local, o panachés. Para falar panachés é preciso enrolar a língua e as pontas dos dedos.
O Neruda continuará relegado ao fundo da mochila até uma próxima vez.
Na partida, cogito chamar um carro pela aplicação, mas Alfredo, sempre solícito, oferece-me uma boleia.
Partimos os dois, cada um em sua Lambreta, de volta ao verão de quem não sai de Lisboa.
Com a certeza de que haverá sempre as idílicas tardes em Panaché para nos consolar.

Álvaro Filho
Jornalista e escritor brasileiro, 50 anos, há sete em Lisboa. Foi repórter, colunista e editor no Jornal do Commercio, correspondente da Folha de S. Paulo, comentador desportivo no SporTV e na rádio CBN, além de escrever para O Corvo e o Diário de Notícias. Cobriu Mundiais, Olimpíadas, eleições, protestos – num projeto de “mobile journalism” chamado Repórtatil – e, agora, chegou a vez de cobrir e, principalmente, descobrir Lisboa.
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