Mário Quim e “Dog” contemplam os destroços daquelas que foram em tempos as suas casas: moraram grande parte da vida aqui mesmo, no bairro do 2º Torrão, ali deitado sobre uma das pontas da Trafaria, em Almada.
Um bairro precário, construído pelas mãos dos próprios moradores, e que no final do ano passado viu muitas das suas casas demolidas pela Câmara Municipal de Almada, o que terá sido à custa do risco de colapso. Um processo que ainda continua e que valeu críticas da oposição e de organizações como a própria Amnistia Internacional.

Foi aqui, neste bairro agora em ruína, que Mário e Dog construíram muitas memórias, e onde deram os primeiros passos no rap, essa linguagem que descobriram por brincadeira. Mário no grupo “Guetto Fam” e “Dog” no grupo “GUNS”, que se formou na primeira morada dele, o Cacém.
A história deles e de outros moradores da Trafaria, muitos aqui do bairro, fazem as memórias de um território que não se quer esquecido. Estão agora contadas no podcast “Contos da Trafaria”, um podcast criado pela artista Marta Miranda, no âmbito do projeto T-Factor da Universidade Nova de Lisboa. E que nasceu com uma só missão: unir Lisboa à Trafaria, através de contos reais.
“É que a Grande Lisboa só será grande quando as margens do Tejo não desunirem, mas unirem”, diz a criadora.
Como contar pode unir margens
“Contos da Trafaria” nasceu de uma ideia de Marta Miranda. Marta, que veio estudar teatro para Lisboa depois de uma infância passada a saltitar pelo Algarve e o Alentejo, escolheu Almada como casa.

“Eu não conseguiria enveredar por uma vida de criadora se estivesse em Lisboa, não teria visão para perceber o centro”, explica ela. “Almada para mim é esse posicionamento.”
Os anos a viver do outro lado do Tejo levaram-na a descobrir toda a história tantas vezes silenciada de Almada e, claro, da Trafaria, esse território à margem, tantas vezes tido como um “depósito de tudo quanto era indesejável para a margem direita do Tejo, onde reinava Lisboa, a capital do país”, como escreve Larissa dos Santos Malty na sua tese.
“A Trafaria é um território que guarda algo ainda de sagrado e precioso e que está a sofrer com a pressão imobiliária e a gentrificação”, diz Marta. “Este é um último paraíso e é preciso olhar para ele e descobrir quem nele vive para se perceber como se pode trabalhar o futuro, e isto diz respeito a todos os lisboetas.”

São muitas as histórias aqui contadas, muitas delas passadas no bairro do 2º Torrão. Como as de Conceição Ribeiro e Ana Catarina Grilo, fadistas do bairro. Ou de João Cão, investigador que aqui lançou um projeto de ciência cidadã. E como as de Mário, “Gi” (também do “Guetto Fam”) e Dog.
O episódio dos rappers do 2º Torrão
Nem o tijolo e o cimento desfeitos conseguiram destruir o sentimento de ligação ao bairro. “Uma pessoa tem de estar em casa para se sentir em casa.” O desabafo vem de “Dog”, como gosta de ser chamado, abreviatura de “Digra Oriundo di Guetto”, que ele traduz como “aquele que luta sempre pelos seus objetivos”.
O 9º episódio do podcast “Contos da Trafaria” conta com os dois amigos. Foi transmitido “ao vivo” no Largo da Associação, no bairro do 2º Torrão, onde se reuniu a criadora, os entrevistados e alguma da comunidade do bairro. Marcavam presença para ouvir a história destes dois artistas que deram música a este território.


Mário Quim começa por contar como chegou de Angola ao 2º Torrão, com apenas treze anos. Só aqui chegado descobriu a música que o faz vibrar. “A música sempre fez parte da minha vida. Cresci com música, especialmente a música brasileira, o sertanejo.”
Hoje, é um dos rappers do 2.º Torrão e deixa nas letras a vida difícil que o bairro leva.
O percurso que este menino, vindo de Angola, fez não é caso único na história da Trafaria: depois do 25 de Abril, este bairro transformou-se com a chegada dos emigrantes e retornados da ex-colónias portuguesas, que aqui ergueram centenas de casas de madeira.
Em pequeno, lembra-se de encher os cadernos da escola com rimas, de escrever sobre as “coisas pelas quais estava a passar”. E essas rimas musicais, que surgiam como “um grito no fundo do poço”, acabariam por ganhar corpo ao tornarem-se música da banda “Guetto Fam”, criada por cinco membros do Bairro do 2º Torrão.
A música tornou-se para eles, miúdos do bairro, “uma arma” mas também “um escudo”, diz Mário.
Dog, que também nasceu em Angola mas viveu com a mãe na Holanda até aos 16 anos, veio para Lisboa com essa idade conhecer o pai, que vivia no Cacém. Foi lá que descobriu o rap numa banda que formou com amigos, os GUNS.
“A música, se eu for ser sincero, está no sangue de qualquer africano, nós mexemo-nos à base da batida, da música. Os meus pais têm música dentro deles, mesmo não sendo artistas”, diz Dog.
A música que ele vive em tantas línguas. No holandês, no qual escreveu as suas primeiras rimas, no inglês, no português e no crioulo – essa língua cabo-verdiana, que tanto se fala nas ruas do Cacém, e que continua a ser aquela que ele prefere para se expressar.
A vida trá-lo-ia até ao bairro do 2º Torrão, onde criou a sua própria família, e onde conheceu outros rappers como Mário. Este bairro clandestino tornou-se a casa dele. E é sobre ele que a última música dos GUNS, “Pé Fincado”, fala. Do bairro erguido e da sua demolição.
A comunidade que resistiu à demolição
Hoje, a música ainda reverbera no bairro do 2º Torrão. Essa música que Marta Miranda quis abrir ao mundo. Ela, que ainda tem uma vaga memória da primeira vez que aqui veio:
“Era de noite e pensei: ‘espera aí, onde é que estou?’, mas nunca tive uma reação de sentir medo”, recorda. “Conectei-me com as pessoas. O importante é perceber quem são as pessoas que vivem nos sítios que nós pensamos que são perigosos, é uma questão só de conhecer.”

Essa comunidade que ainda hoje existe aqui, neste bairro da Trafaria, mesmo que hoje tantos deles vivam noutros lugares distantes, afastados uns dos outros. “Basta passares uma tarde neste bairro para perceberes esse sentido de comunidade”, diz Marta.
Uma comunidade que todos recordam, inclusive aquele que afirma ser o maior fã dos “Guetto Fam”, um antigo morador do bairro conhecido por “Vasquinho”: “Vivi num quinto andar durante alguns anos, e nunca conheci nenhum vizinho”, diz ele. Mas no bairro do 2º Torrão, a história não era, não é, essa. Aqui, os vizinhos continuam a ser família. Esses vizinhos que vêm de todos os cantos de Lisboa.
“A originalidade deste bairro não vem só dos africanos”, conta Dog. “Vem do ‘people’ de Alfama, de Alcântara, Mouraria, Casal Ventoso, temos muito ‘people’ antigo de Lisboa. E eu em Lisboa estou em casa, posso garantir.”
Dog prova que as margens estão mais unidas do que pensam. É o que Marta Miranda sonha para estas histórias: que sirvam de lembrete para todos.


Ana da Cunha
Nasceu no Porto, há 26 anos, mas desde 2019 que faz do Alfa Pendular a sua casa. Em Lisboa, descobriu o amor às histórias, ouvindo-as e contando-as na Avenida de Berna, na Universidade Nova de Lisboa.
✉ ana.cunha@amensagem.pt

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A história do segundo torrao tem de ir as origens, em 1942,foi fundado pela minha familia,marinheiros, como local de veraneio e fins de semana,começou por ser autorizadas as barracas de madeira como para guarda de apetrechos de pesca. Muito a contar e em detalhe…
Senao as memorias perdem- se!