Como o filho nasceu uma semana antes do previsto, o Zeca ainda não estava pronto para ser pai. Essa semana deve ter deitado tudo a perder – depois disso, ainda demorou cinco anos até se habituar. Mais ou menos até à altura do divórcio.

Até então – já o miúdo estava prestes a entrar para a escola primária –, o Zeca tinha conseguido a proeza de nunca ter mudado uma fralda, nunca ter dado um banho e nunca ter preparado um lanche. Acho que nem reparava que, fora o jantar, o miúdo também tinha o costume de comer. É que a vida dele, coitado, era outra coisa: sub-director financeiro de uma empresa com sede no Saldanha, tinha muitas obrigações, muitas influências, muita gente a contar com ele. E, no trabalho, bem sabiam que podiam contar para tudo: telefonemas fora de horas, trabalho nocturno até às tantas, qualquer convívio para fortalecer os laços de equipa. Desde antes do parto, a Bia percebeu que não podia contar com ele para nada.

Como moravam no Rato, quando ele por acaso se despachava do trabalho mais cedo do que o costume, fazia tempo com os colegas para dar à Bia tempo para dar banho ao miúdo e meter o jantar na mesa. Se, ao chegar, ainda via os tachos a fumegar, e a via com uma criança aos berros ou papa espalhada pela parede, dizia assim: “Então mas isto ainda está um pandemónio?” De pessoa a mãe e empregada doméstica foi um tiro, e escusado será dizer que não partilharam a licença de parentalidade, que o ónus esteve nela desde o primeiro dia, que o filho nem sabia o que era brincar com o pai e que, mesmo depois da licença, ela voltou ao trabalho e continuou a sós com a casa toda. Nunca passou pela cabeça do pai que o miúdo não voltava sozinho da escola e nunca lhe passou pela cabeça a ideia de ir buscá-lo. Mas também, coitado, era um gajo muito importante no trabalho. Quem o visse de fato a descer de elevador e ir sacar limonadas com os colegas ao quiosque da esquina do antigo Monumental que o dissesse. Eram demasiadas responsabilidades, demasiada gente às costas, e mãe e filho tinham de entender.

Lá houve um dia em que ela se cansou. Não de ser mãe, mas de fingir que o gajo, que tinha cada vez mais pança, servia para alguma coisa. Isto de fazer uma família fica bem no papel, mas acompanhar o miúdo às consultas era uma história bem diferente. Além disso, iria lá ele para quê? Nem sabia o tipo de sangue nem as alergias nem os hábitos nem o historial clínico nem as vacinas tomadas nem nada. No máximo, fazia-lhe uma festa na cabeça ao chegar a casa, mas depois de um dia de trabalho queria era ver televisão sem que o miúdo o cansasse. Quem poderia apontar-lhe o dedo?

Talvez ela. E pumba, chegou o divórcio. O homem, que não passava mais do que vinte minutos por semana com a criança, resolveu que agora ia ser tudo ao meio. Dizia que era amor de pai, mas a coisa sabia a vingança: “Então não era o feminismo? Não era o feminismo?”, dizia quando o ia buscar, nem olhava para o miúdo e se esquecia de lhe pegar no casaco de Inverno. O discurso era feito aos solavancos ressabiados com os colegas de trabalho, com quem desdenhava e fazia o peito que os medíocres fazem: ela que não pensasse que, depois de lhe dar com os pés, ainda lhe ia roubar o filho – o filho que era a luz dos olhos dele, o filho que era o maior amor do mundo. Já tinha o desplante de cometer aquela afronta a um homem tão bem reputado, e depois ainda tinha a lata de achar que quem se ia lixar era ele?

Depois de ir cada um para seu lado, o miúdo andou a trocar de casa aos sábados: quando estava na do pai, os telefonemas da mãe não eram atendidos; quando estava na da mãe, o pai nem se lembrava de ligar. Nas semanas ímpares, o Zequinha nunca levava o lanche para a escola, e havia peças de roupa que nunca estavam lavadas, e passar a ferro uma camisa para quê? E ninguém morria por andar de sandálias à chuva. Além disso, o que interessava mesmo era que o Zeca conseguisse chatear a mãe.

Cinco meses depois do divórcio, quando a Bia arranjou outro, caiu o Carmo e a Trindade: ela usava o dinheiro dele para encontros com outros (e eles com guarda partilhada, sem trocas monetárias), ela trocava de homem a torto e a direito (e tinha sido só aquele), ela expunha o filho dele a qualquer gajo perigoso (e o tipo nem conhecia o miúdo). Quis ir à luta, falou dela a todos os amigos, reclamou com isto e aquilo. Regra geral, sentava-se a uma mesa, dizia “Ai que a Bia etc.” e o miúdo andava por ali ao deus-dará sem que o pai lhe metesse um olho em cima. Se dava um pontapé a alguém e faziam queixa ao pai, ele encolhia os ombros e dizia: “Que queres que faça? Isso é com a Bia. Fala antes com ela. Mas está mais preocupada em andar a sacar outros.”

Aquilo deu tanta confusão que a Bia acabou com o engate. A paz mental de uma casa vale muito, e a estabilidade de um filho ainda mais. Durante uns tempos, o Zeca acalmou, mas ainda fazia tudo o que podia só para a irritar. Quando as palermices que ele dizia chegavam aos ouvidos dela, a resposta era sempre a mesma: “Ele que arranje uma vida.”

E lá arranjou. Com a nova vida, veio outra mulher. Com a nova mulher, veio outra casa. E com a outra casa veio mais um filho. Como da vez anterior, nem fraldas nem lanches nem nada. E, a partir do momento em que a Margarida entrou em cena, o Zeca pareceu nunca mais se lembrar da Bia – com isso, também se esqueceu do aniversário do Zequinha. A guarda partilhada transformou-se num jantar de vez em quando, quando lhe dava jeito, porque de resto era sempre um “Ouve lá, tenho tido muito que fazer na empresa, tu é que és a mãe do puto.”

*A cronista escreve com o antigo Acordo Ortográfico


Ana Bárbara Pedrosa

Veio para Lisboa estudar Literatura em 2012. Daqui só saiu para o Brasil, onde, à portuguesa, teve saudades dia e noite. Regressada, escreveu Lisboa, chão sagrado e a cidade foi a diva onde se perderam personagens. Anos depois, numa casa em Benfica, foi ao Médio Oriente e escreveu Palavra do Senhor. No mesmo sítio, meteu a cabeça em Vizela e escreveu Amor estragado. Para os de cá, tem sotaque minhoto; para os de lá, engravatado.


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2 Comentários

  1. Porque é que tenho a sensação de que as últimas crónicas terminam, como dizer, a meio?…

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