Há uns quinze anos, no lançamento do romance de estreia de João Tordo, na já desaparecida Livraria Bulhosa de Entrecampos, recebi um convite inesperado de uma grande figura.

Carlos do Carmo estava ali naturalmente por ser um velho amigo do pai do escritor, mas era também afilhado de casamento dos meus pais e visita de nossa casa havia várias décadas.

Nesse fim de tarde, confidenciou-me que lhe andava a custar o facto de os poetas contemporâneos, com honrosas excepções, não escreverem para fado; e depois referiu que, se em muitos deles não vislumbrava realmente uma alma fadista, noutros lhe parecia que o desafio para que tentassem fazer uma letra haveria de dar frutos – se não maduros, pelo menos doces.

Alegremente desencaminhados que tinham sido Fernando Pinto do Amaral, Nuno Júdice e José Manuel Mendes, chegara pelos vistos o momento de juntar uma mulher ao grupo – e, sim, aceitei o convite para colaborar num disco que viria a chamar-se “À Noite” sem saber bem o que me esperava.

Combinou-se então uma ida a casa do fadista para cada poeta escolher duas melodias tradicionais entre as várias seleccionadas pelo Carlos e ir para casa meter as palavras nesses belos armários.

A mim tocaram-me umas sextilhas de Joaquim Campos e um fado com refrão de Armando Freire e comecei por escrever para o Armandinho, pois já conhecia a versão do Fado Mayer que a Amália cantava e, na minha inocência, calculei que fosse mais fácil escrever em cima de uma letra pré-existente; depressa, porém, me rendi à evidência de que, para inventar uma história em versos tão curtinhos, iria precisar de mais traquejo.

E, com efeito, assim que me pus a trabalhar para o Fado Castanheira (mesmo sem rede, porque para este não conhecia qualquer letra), as palavras fluíram sem ferir métrica nem rimas, já para não falar de um certo tom trágico, de amor fracassado, que eu acreditava combinar lindamente com aquele género musical.

Fui toda ufana levar a letra ao Carlos, esperando aplauso; mas, nas coisas da arte, não se fazem favores nem mesmo a quem praticamente se viu nascer – e, para que tudo corra bem, a sinceridade é o único remédio.

Por isso, se ia nos píncaros, logo desci à terra aos sacões com o veredicto:

– Ó Rosarinho, mas eu não posso cantar isto. Vê-se logo que é de uma mulher.

Quem sabe sabe, e logo ali aprendi que a minha autobiografia não soaria de modo algum autêntica na voz de um senhor respeitável; e, se um poema pode ser lido várias vezes e entendido de cada uma de maneira diferente, um fado tem mesmo de soar verdadeiro enquanto está a ser cantado.

Pus-me então na pele do homem maduro que era o nosso Carlos e lá me saiu o Pontas Soltas. Encaixou tão bem na voz do mestre que, além de ter sido uma faixa do «À Noite», foi também escolhido quer num álbum de duetos, quer no último Best of do Carlos, e ainda hoje há quem diga ser o melhor fado que escrevi.


Maria do Rosário Pedreira

Nasceu em Lisboa e nunca pensou viver noutra cidade. É editora, tendo-se especializado na descoberta de novos autores portugueses. Escreve poesia, ficção, crónica e literatura infanto-juvenil, estando traduzida em várias línguas. Tem um blogue sobre livros e edição e é letrista de fado.


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