Hoje, são provavelmente os artistas portugueses que mais tocam com regularidade na América latina — o que não é coisa pouca. Mas foi na Quinta do Mocho, o bairro de Loures onde ainda vivem, que Miguel “Nunex” Batista e Fábio “Famifox” Miguel começaram a caminhada. Eles que são DJ e produtores e que juntos assinam como Studio Bros.
O percurso deles faz parte da história maior da “batida de Lisboa”, dos “sons do gueto” da capital portuguesa, movimento que tem vindo a ser cada vez mais celebrado.
Por estes dias, estão em destaque na Fundação Calouste Gulbenkian, no centro da cidade, no âmbito do Jardim de Verão — um ciclo de atuações musicais e conversas programado pelo projeto Lisboa Criola e por Dino D’Santiago. Os Studio Bros preparam-se para atuar no dia 7.
Como a música nasce na “quinta dos monstros”

Em setembro de 2006, era lançado um disco que seria revolucionário para a música nas periferias de Lisboa: Dj’S do Guetto Vol. 1 reunia uma série de produtores de vários bairros da área metropolitana, desde a Quinta do Mocho à Linha de Sintra, passando pela zona de Oeiras.
Contava com Marfox, Nervoso, NK, Pausas, Fofuxo e Jesse. Era quase como um supergrupo deste movimento musical em ebulição.
O disco foi tão impactante que, este ano, será reeditado em vinil pela editora Príncipe. E enquanto a música se começava a alastrar, uma nova geração de miúdos ia crescendo com referências.
É o caso de Nunex e Famifox, hoje com 29 e 28 anos. Começaram por volta dos 13 a dedicar-se à música. “Eu fazia batuques com o caixote do lixo”, relembra Nunex. “Depois, um amigo meu disse-me: vamos a minha casa e mostro-te um programa que faz músicas. Desde esse verão de 2006 que nunca mais larguei o FL Studio.”

Acabaria por conhecer Famifox não muito tempo depois, na casa de uma prima no bairro, onde já existia um computador. Num domingo, pela hora de jantar, Fábio Miguel passou por lá e deu de caras com os instrumentais rudimentares que Miguel Batista estava a criar no programa. “Como é que se faz isto? Como é que fizeste aquela mistura? Basicamente o meu professor foi ele.”
Na Quinta do Mocho, por vezes descrita como “quinta dos monstros” pela quantidade de talento que tem gerado para o mundo, as influências eram diversas. “Por mais que quisesses estar na tua, ouvias a música alta do vizinho, fosse semba ou kuduro. Apanhavas sempre alguma coisa. Aqui tens a mistura: cabo-verdianos, angolanos, guineenses, são-tomenses…”, diz Famifox.
“Isto nasceu por não haver kuduristas em Lisboa. Não havia pessoal a cantar, então focámo-nos mais na batida e misturámos com outras coisas”, acrescenta Marfox, sublinhando que esta música só poderia ter nascido na capital portuguesa. “Se cresces em Angola também vais ouvir música congolesa ou sul-africana. Aqui, vou ouvir música portuguesa, techno do norte da Europa… Foi essa fusão toda que originou isto.”

Enquanto Nunex assumia mais a vertente de produtor musical, Famifox apostava em tornar-se DJ e começou a tocar em festas do bairro durante a adolescência. Em 2007, com um amigo chamado Ed, criam o grupo Alto Nível Produções, ao qual Nunex depois se juntou, até ficarem só os Studio Bros.
Marfox, o pai dos “Bros”
Por volta da mesma altura, o DJ Marfox entrou em cena e tornou-se numa espécie de mentor. Vindo da Portela, o DJ e produtor mudou-se para a Quinta do Mocho, para o prédio em frente de onde vive Famifox, e o seu grupo já era bastante conhecido junto dos jovens daquela comunidade.
“Os Dj’S do Guetto foram o grupo que mais inspiração deu para todos os produtores que estão aí agora”, defende Famifox. “E víamos que não era algo só do bairro: havia uma fusão entre várias zonas. Por um lado, sentíamos que a nossa música era muito difícil de ser ouvida lá fora. Por outro, tínhamos essa força que nos dava esperança. Se fosse algo só daqui, talvez não tivesse havido aquela inspiração para continuarmos. E aí a mentalidade tornou-se: não quero ficar preso aqui, também quero andar por aí a tocar.”
Marfox é outro dos curadores dos palcos da Gulbenkian e também vai lá tocar no dia 9 de julho. Ele que é nome sonante na Quinta do Mocho. Não há quem lá não conheça Marlon Silva.
Mantém ali o estúdio, no antigo quarto, na casa da mãe, onde produz música e promove workshops com jovens ansiosos por desenvolver a sua arte. Não só do bairro, mas de vários sítios — neste momento até tem um aluno que vem de Santarém. E os Studio Bros são um dos melhores exemplos de artistas que cresceram sob a sua alçada.

A primeira vez que Marfox visitou a Gulbenkian foi em 2007, a propósito do programa 9 Bairros, Novos Sons. Tinha produzido um instrumental de funaná para o cantor Kotalume. “Ele foi lá cantar e eu estava a simular que estava a tocar, com um DJ set falso com vinil”, conta, recordando aquele episódio, enquanto se ri. “Coisas de miúdos, acontece.”
O mais importante foi que conheceu lá a estrutura da promotora Filho Único, que mais tarde viria a formar a editora Príncipe. Foi fulcral para editar a música eletrónica de inspiração africana criada nas periferias da cidade, espalhando-a por todo o mundo.
“16 anos depois, estou na Gulbenkian a ajudar na curadoria de algo que acredito que vai mudar a cidade e o país”, assume Marfox com orgulho.
“Estive lá no ano passado e fiquei espantado ao ver tudo misturado. Não tínhamos algo assim em Lisboa”, refere Nunex sobre as performances que ocupam os jardins da fundação e que têm acesso gratuito. “É importante até porque vamos ter outro tipo de público”, acrescenta Famifox, relembrando que continuam muito ligados à comunidade PALOP em Portugal, ainda que já tenham uma carreira internacional de sucesso.
“Nós não somos só da Quinta do Mocho, não é? Somos portugueses, lisboetas, também queremos fazer parte dos espaços. Deixem-nos trabalhar, estar nos sítios, nós fazemos parte. Respeitando toda a gente, levando a nossa cultura e a nossa visão, para haver mais espaço para todos de forma igualitária. E haver mais artistas como estes a tocar na Gulbenkian já é uma vitória”, resume Marfox.
De Loures para o mundo
Hoje, os Studio Bros vivem da sua música e tornaram-se também eles referências no seu bairro. Em plataformas como o Spotify, atraem mais de 60 mil ouvintes por mês.
“Fiz o meu papel, inspirei pessoas, e essas pessoas estão a inspirar mais pessoas, e isso vai continuar a acontecer”, diz Marfox. Não é por acaso que muitos dos DJ e produtores deste tipo de música usam o sufixo “fox” — Marlon Silva foi um pioneiro que inspirou todos os outros, embora ele próprio tivesse referências, como o já mencionado DJ Nervoso, cujo rosto está pintado numa das paredes da Quinta do Mocho, num mural criado por Vhils.



Durante vários anos, os Studio Bros insistiram e trabalharam porque também queriam pertencer à Príncipe. Marfox, qual mentor verdadeiramente interessado em proporcionar uma hipótese de sucesso a Famifox e Nunex, disse muitas vezes “não vão por aí”. “E eles, sozinhos, chegaram lá e construíram aquilo que é mais importante: a sua própria identidade. E têm o seu público, que é diferente do meu, e estamos aqui no mesmo bairro, trabalhamos juntos em Lisboa e toda a gente se dá.” Foi Marfox que os convidou para tocarem na Gulbenkian.
Os Studio Bros começaram a levar a música mais a sério na última meia-dúzia de anos, sendo que se estrearam com uma atuação internacional no Luxemburgo, onde existe uma grande comunidade portuguesa e dos PALOP. “E desde o último ano que conseguimos abrir portas junto do público latino. Fomos várias vezes à Venezuela, chamaram-nos para o Chile, Peru ou para o Panamá. E depois fomos até aos Estados Unidos”, diz Famifox. “Um dos melhores foi quando tocámos no Coliseu dos Recreios, no festival de tributo ao afrohouse”, salienta Nunex.
Hoje, os adolescentes da Quinta do Mocho podem olhar para Marfox, para os Studio Bros ou para outros artistas locais (desde Firmeza a Dadifox) como referências, como pessoas que cresceram em contextos difíceis mas conseguiram vingar com a sua arte.
“Para provar à minha mãe que era capaz, que não estava só a perder tempo na música, levou muito tempo”, admite Nunex.
“Não sou um exemplo a 100%, mas acho que somos portas para as quais eles podem olhar e dizer: aquela porta ali é segura. É preciso ter dedicação, amar muito o que se faz, e não é fácil. Mas é possível”, acrescenta Marfox. Como está escrito no muro em frente do seu antigo prédio, “sonhar é grátis”.
Onde a celebração não se concretiza por falta de “condições”
O movimento em torno da batida de Lisboa foi bastante alimentado no próprio bairro da Quinta do Mocho através de festas regulares organizadas pelos DJ do bairro. Mas o fenómeno desvaneceu-se quando vários dos artistas encontraram validação junto do circuito internacional e nos grandes clubes e festivais portugueses. Nos últimos anos, os eventos “abrandaram” ainda mais, como explica Nunex, por conta da pandemia e da emigração de muitos locais.
Perante este cenário, os Studio Bros e Marfox assumem uma grande vontade de organizar ali no bairro um evento de grandes dimensões. Contam que já tiveram diversas reuniões com a Câmara Municipal de Loures, mas que não sentem do lado da autarquia a “vontade” necessária para poderem concretizar uma festa com todas as condições.

“Não vamos fazer as mesmas festas que fazíamos há 10 anos”, explica Famifox.
“Temos de ter as mesmas condições de alguém que faz um evento em Loures ou Sacavém: um bom palco, luzes, um ecrã, barreiras de festival, casas de banho públicas, bancas para os cafés locais, segurança, um plano de emergência, também queremos isso. Tem de ser uma coisa bem estruturada. Como é que vou dizer às pessoas daqui, que ficam contentes por irmos tocar a todo o lado, que nos dizem que nos safámos e que vivemos da música, e depois vamos tocar no mesmo palco que tocávamos há não sei quantos anos? Se for para fazer alguma coisa, vamos fazer algo que dignifique o nome do bairro. Que se diga: estes miúdos foram, venceram e hoje estão a dar-nos algo que nunca tivemos. Com todo o respeito pela câmara e pelas instituições, não nos têm dado as condições certas”, acrescenta Marfox.
“Queremos misturar públicos e fazê-lo cá também.” Como se o sonho da Gulbenkian se mantivesse vivo ao longo da Quinta do Mocho.
*Ricardo Farinha nasceu em Lisboa e sempre viveu nos arredores da capital, periferias que lhe interessam particularmente. Conta histórias em modo freelance, sobretudo ligadas à área da cultura.

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