Encorajado pela última vaga de calor que nos fritou a carne e o espírito como bifanas no tacho ou quem sabe intoxicado pela nuvem de fumo que cruzou o oceano vinda do Canadá e cobriu Portugal como uma manta macabra, deixei de lado meus achaques de bicho dos trópicos para mergulhar de cabeça numa experiência para mim até então metafísica, transcendental.

Mergulhar de cabeça no sentido literal, já que no tranquilo espelho d’água salgada de Sesimbra, após sete longos verões em Portugal, pela primeira vez consegui tomar um banho de mar completo, daqueles da cabeça aos pés. 

Eu sei, eu sei, dirão vocês, meus quatro ou cinco incrédulos leitores, mas como é possível? 

Não sei, só sei que assim foi.

Em sete verões portugueses – oito se contar que cheguei em meados de um setembro – ainda não havia mergulhado de corpo inteiro numa praia portuguesa. Nunca cheguei nem perto disso, para ser sincero. O máximo que submergi foi até à cintura, mas quando a linha d’água me cumprimentou as partes sensíveis com o seu glaciar toque, bati em retirada.

Mais do que uma vitória pessoal, o banho de mar total numa praia portuguesa foi uma epifania. Só agora percebi o simbolismo de mergulhar a cabeça do bebé na água durante o batismo, quando era mais fácil o padre enfiar os pés do menino aos prantos na pia de pedra. É que o mergulho de cabeça tem a sua pedagogia, a sua mística, o seu milagre.

Assim, nas calmas águas de Sesimbra, senti que mergulhei de cabeça num segundo batismo.

E tive a certeza de que foi naquele instante, e não quando recebi a carta da conservatória, que realmente virei português.

Não foi uma tarefa fácil e rápida, é bom que se diga. Qualquer nascimento pede a sua gestação e entre o primeiro contato com a água e a imersão total levaram-se quarenta e cinco minutos. Um tempo de uma partida de futebol para virar o jogo, para voltar do intervalo do confronto entre eu e comigo mesmo, um outro homem, refrescado e confiante. 

Sentia-me, por fim, completo, livre, sem amarras.

O caminho até a redenção, porém, é feito de provações e também de humilhações. Enquanto avançava a cinco minutos por centímetro mar adentro em curtos pulinhos, um velhinho aproximou-se lépido de mim. Era um homem atarracado, com seus oitenta anos, os olhos espremidos num rosto oval, onde surgiu um simpático sorriso enquadrado por rugas.

— Força, rapaz! — disse, num misto de comando e incentivo.

Como não reagi à ordem dele, resolveu mostrar como se faz. Com a experiência de oitenta verões em praias portuguesas, o velhinho agachou-se e usou as palmas da mão para banhar o próprio corpo, molhando os braços, o tórax e as costas. Devidamente, aclimatado, mergulhou de uma só vez, desaparecendo sob a água, para emergir dois metros adiante, vitorioso.

Nem Hemingway sonharia com esse velho, nesse mar.

Agora, quem se sentia um octogenário era eu, com meus ridículos pulinhos, entre caretas a cada vez que a água tocava uma parte ainda seca do meu corpo. Mais à frente, flutuando com a barriga branca de um cachalote para cima, o velhinho me observava com um olhar triste de quem sabia estar diante de um caso perdido.

Mal desconfiava o cachalote de fato de banho que não iria desistir.

Para um homem de sangue e mares quentes, a frieza das praias de Portugal era um desalento. A minha experiência nos sete (ou oito) últimos verões não incluía um banho e até agora, como acontece nas melhores lavanderias, tinha sido uma praia a seco. 

Ir à praia resumia-se a permanecer em terra firme, protegido por um chapéu de sol tamanho família, onde às vezes era polvilhado por uma ventania que arrepiava as páginas do livro e enchia de areia os meus olhos e boca, como um Laurence das Arábias sem camelo. 

De vez em quando, reunia coragem e aventurava-me até à beira da praia, onde as ondas arrebentavam timidamente, e esticava o dedão do pé para sentir a temperatura da água. 

A temperatura da água ou a falta dela. 

Em seguida, retornava pusilânime para o meu abrigo sob o chapéu de sol, os ombros caídos ante o peso de mais um fracasso, para observar de longe, consumido pela inveja, a bravura de quem enfrentava o gélido abraço do mar português com desfaçatez, principalmente os intrépidos que partiam em carreira do areal e saltavam na água polar num plástico flecheiro.

Nobre povo, nação valente aquela que mergulha destemida do frio de seu mar.

Quando muito, com as águas no tornozelos, parecia caminhar biblicamente sobre o mar, em busca do caminho das pedras para o fatídico mergulho, saudoso de uma praia do Recife ou de qualquer outra nordestina, de temperatura morna, como se tivessem acabado de fazer chichi.

No fim da tarde, voltava para casa com a pele e a alma ressequidas, com a sensação de não ter ido à praia e a certeza de que os verões em Portugal nunca seriam iguais aos do Brasil.

Até que…

Até que o milagre se deu. Como os marinheiros de Ulisses, fui sendo atraído para dentro mar. Enfeitiçado pelo canto de uma invisível sereia, segui com meus pulinhos ridículos vendo a água superar o inédito limite da cintura, subir para a sensível linha dos rins, depois sem dificuldades banhar-me o tórax, alcançando a sempre dramática fronteiras dos ombros.

Foto: Ulisses e as Sereias, pintado em 1891 pelo pintor inglês John William Waterhouse

Do seu ponto de observação naval, o cachalote de sungas não queria acreditar no que via. Mexendo agilmente as pernas como uma rã, aproximou-se para não perder o grand finale e não o decepcionei. 

Prendi o ar nos pulmões, dobrei os joelhos e fui engolido pela imensidão do mar português.

Não durou mais do que alguns segundos, mas o tempo suficiente para que as cenas de todos os verões a seco passassem diante dos meus olhos, como num filme. Quando emergi, o velhinho batia palmas freneticamente. Não era mais um cachalote, e sim, uma efusiva foca. 

Sorri pelo apoio moral daquele desconhecido e ele sorriu de volta. Como um anjo da guarda que havia cumprido o seu dever, saiu lentamente da água e desapareceu por entre a selva de chapéus de sol na areia.

Permaneci por uns momentos submerso até o ombro, ora mergulhando a cabeça, enquanto refletia que o batismo em Sesimbra era a metáfora da experiência de adaptação de um imigrante.

O imigrante que em vez de mergulhar de cabeça de uma só vez, como o velhinho português, deve caminhar em outro ritmo, sentindo a água subir lentamente, até chegar o momento em que entrará, sem riscos, de corpo inteiro nessa nova realidade.

O mesmo mar que também proporcionou uma experiência aos europeus, que dele veem surgir rostos diferentes, de cores diferente, passados diferentes, memórias de fome, de guerra, de perda, de dor, histórias tristes em busca de um final feliz.

E que, deste lado da margem, vivem também um novo batismo.


Álvaro Filho

Jornalista e escritor brasileiro, 50 anos, há sete em Lisboa. Foi repórter, colunista e editor no Jornal do Commercio, correspondente da Folha de S. Paulo, comentador desportivo no SporTV e na rádio CBN, além de escrever para O Corvo e o Diário de Notícias. Cobriu Mundiais, Olimpíadas, eleições, protestos – num projeto de “mobile journalism” chamado Repórtatil – e, agora, chegou a vez de cobrir e, principalmente, descobrir Lisboa.

alvaro@amensagem.pt


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