Estou de Erasmus em Bolonha. Este fim de semana fui passear com um grupo muito internacional de amigos – Dinamarca, Bélgica, Países Baixos. Poucas coisas me fazem tão feliz como viajar, conhecer novos locais, sentir-me mais rico e concretizado do que quando parti. A caminho de casa, preso no trânsito da autoestrada entre Florença e Bolonha, contudo, não conseguia pensar noutra coisa que não fosse o jogo marcado para as nove e um quarto de domingo: o Estrela da Amadora estava prestes a disputar com o Marítimo a segunda mão do play-off de acesso à Primeira Liga portuguesa, o nosso carinhosamente apelidado “Tugão”, depois de uma vitória por dois a um na primeira mão, num Estádio José Gomes tão cheio de gente e vida que lembrava noites de há vinte ou trinta anos.

Felizmente, conseguimos ultrapassar o trânsito e chegámos a horas. Aqueci umas sobras que tinha para o jantar e liguei o computador para ver o jogo. Os meus colegas de casa não ligam muito a futebol. Na cozinha estava com os nervos à flor da pele. Ir à Madeira, àquele estádio sempre cheio e com adeptos locais aguerridos não é tarefa fácil para os grandes do futebol português, muito menos para quem apenas há coisa de meia década estava no terceiro escalão distrital da Associação de Futebol de Lisboa.

A bem dizer, o Estrela não é o mais local dos meus clubes. Sim, mesmo acima dessa última divisão, na divisão superior do futebol lisboeta, onde os clubes do povo que toda a vida viveram à sombra dos grandes, populada por nomes históricos como o Oriental, Olivais e Moscavide, Sacavenense, AD Oeiras ou o saudoso “Fofó” (Futebol Benfica), joga um clube onde em miúdo treinei antes de perceber que não tinha de todo jeito para a bola: o Atlético do Cacém. Ainda ocasionalmente visito o estádio, nem que seja só para passar no Rui dos Pregos. 

Mas não tenho com eles os mesmos laços familiares e de infância que tenho com o Estrela.

O Sporting ou o clube distante

O meu primeiro clube, o meu maior amor, por vezes a maior das cruzes que carrego, mas uma das minhas maiores paixões e lealdades incondicionais, é o Sporting Clube de Portugal. Desde miúdo que vou a Alvalade, com o meu pai muitas vezes, ocasionalmente com um dos meus avôs (o outro também era sportinguista, mas não gostava de ir ao estádio porque se emocionava muito). Sou sócio há muitos anos, já vi o melhor e o pior dos leões, cresci a venerar jogadores como Nani, Matías Fernández ou Bruno Fernandes, vibrei com os golos do Slimani, do Bas Dost e do Pote, chorei agarrado ao meu irmão quando vi finalmente o Sporting ser campeão sem o meu pai e os meus avós ao meu lado.

É uma novela cheia de intrigas, traições, ódios de estimação e amores mais ardentes que os que já tive por algumas pessoas, apoiar esse clube verde e branco. Menos zénites que os que se esperariam, mais nadires que os desejáveis, mas sempre e incondicionalmente grandes e dignos.

Mas a minha ligação com o Sporting sempre foi distante, de certo modo, do âmago do clube. Nunca participei nas claques, embora tenha amigos lá. Nunca vi um jogo na Curva Sul no meio do Diretivo ou da Torcida. As direções do clube quase sempre foram compostas de políticos ou pseudo-políticos de uma certa casta social a que nunca pertenci e que nunca realmente foram o tipo de adepto “popular” que vê no desporto – porque o Sporting é muito mais que só futebol – uma identidade de grupo, uma comunidade imaginada andersoniana na qual se pode inserir para escapar à alienação reinante na sua vida quotidiana. 

O futebol também é para eles, claro, mas é mais uma forma de entretenimento do que um estilo de vida. Para mim, o Sporting ocupou, talvez, um espaço de socialização entre família e amigos, mas nunca um sentido de pertença a raízes populares comuns. Muitos criticam, em críticas nas quais me revejo plenamente, precisamente essa desconexão entre a base de apoio do clube, ou seja, os adeptos, gente comum, trabalhadora, e as direções sucessivas do clube. Há uma divergência. Há o Sporting popular e o Sporting dos doutores e dos engenheiros. Não há união. Por vezes, parece nem haver rumo. Apenas um grupo de gente que se martiriza a apoiar uma equipa na qual se identifica menos e menos, à medida que se resvala para uma posição primordial, da qual o clube surgiu, do clube da aristocracia, antes da popularização do futebol em Portugal.

O Estrela, para mim, foi sempre o oposto. 

Herdei este amor também do meu pai, amadorense de gema, criado na Venda Nova, num apartamento na Rua Elias Garcia. Ele e os amigos da idade dele iam muitas vezes ao José Gomes ver as partidas do Estrela, estivesse na Primeira, na Segunda Divisão, ou abaixo, até. Era uma experiência diferente de ir ver o Sporting e comer uma bifana na roulotte antes da partida, dizia. Ia para a bancada, mesmo em cima dos jogadores, puxava pela equipa, ouvia os gritos dos treinadores e dos jogadores, encontrava-se com os vizinhos e com os colegas da escola, não havia a pressão eterna que vem com o rótulo de “Grande”, sentia que ali se jogava, como ele dizia “futebol a sério, sem loucuras de salários, milhões, agentes” e todas as outras chagas que viriam a culminar no advento do negócio milionário do futebol moderno.

O Estrela, amor de casa

Em 1990, o Estrela venceu a Taça de Portugal. O meu pai também era sportinguista de gema, como disse, mas nunca deixava de sorrir quando me contava isto, quando me falava do Paulo Bento e como todos sabiam que ele iria ser um bom jogador. Porque também era, de certo modo, ter orgulho nas suas raízes, na cidade onde cresceu e onde quase toda a vida viveu. É um laço que nos une, de certo modo. 

Fui criado pelos meus avós, também. Andei na escola primária na Brandoa, na EB1/JI no Alto da Brandoa. Sei o que é e o que significa ser da Amadora, embora seja do Cacém. Fui muita vez com o meu avô Zé Vilão ao café do Sr. Anselmo no alto da Brandoa. Passei muitas horas em brincadeiras de miúdo no Parque Central e no Parque Aventura, que antes era um bairro clandestino – e ainda me lembro bem disso -, e como todo o bom amadorense vejo no Babilónia a capital do mundo. 

E, de qualquer modo, como debati com amigos internautas no Twitter no dia da vitória do Estrela, qualquer pessoa a leste de Sintra propriamente dita tem muito mais em comum com a Amadora do que com a vila de Sintra, com Colares e com a Praia Grande. De certo modo, até poderá ser um espelho das minhas paixões desportivas. Roubo a analogia perfeita do Miguel Brito: o Cacém é um amigo, e Sintra é um irmão, que a gente a família não a escolhe. E adapto-a às minhas paixões futebolísticas – o Estrela é um amigo, o Sporting no seu estado atual é um irmão.

Mas a minha história com este clube é diferente. Comecei a redescobri-la numa altura em que a minha mãe estava a dar aulas na Escola Secundária da Amadora e o Estrela ainda era Clube Desportivo Estrela, clube fénix (que é como quem diz, que renasce das cinzas do clube anterior, como o caso do AFC Wimbledon em Inglaterra), que andava pelos distritais a tentar voltar a subir aonde pertencia, aos escalões profissionais do futebol português. 

Um percurso trilhado recentemente por equipas como o CF “Os Belenenses”, esse histórico, um dos poucos campeões nacionais que Portugal tem na sua história, e que equipas populares como Salgueiros, Felgueiras ou Atlético Clube de Portugal continuam a percorrer. 

Na altura, ainda não frequentava os jogos; seguia os resultados nas redes sociais. Ocasionalmente havia emissões na TV local. A qualidade do futebol não era a melhor, as bancadas ainda parcamente compostas, mas havia um sentido de força e vontade que permeava a equipa. Os bons resultados teimavam em (não) aparecer, também pela estrutura ainda algo subdesenvolvida do clube.

Contudo, sentia-se a identidade, a raça, aquilo que unia a Linha de Sintra, um pouco como o Estoril representa as gentes trabalhadoras da Linha de Cascais, ou o Vitória em Setúbal, o Amora, aquela imensidão de clubes populares da Área Metropolitana do Porto, de moradores de bairros periféricos de centros económicos e industriais, enfim, tantos exemplos.

O ponto de viragem do Estrela

Foram trilhando o seu caminho até 2020. E aí, deu-se o que já é, e promete continuar a ser, o maior ponto de contenção para os dissidentes e descontentes com esta ascensão meteórica do Estrela – a fusão com o Sintra Football. O Sintra Football era um projeto de amigos com um grande rendimento desportivo, que garantira a permanência no Campeonato de Portugal devido ao fim precoce da época por motivos pandémicos. O Estrela ainda militava pelas distritais – terceiro escalão -, e embora dessem tudo dentro de campo, ainda estavam bastantes furos abaixo do que seria necessário para voltar tão rapidamente aos primeiros escalões. 

O Sintra Football tinha um plantel competitivo, mas jogava num campo anexo ao estádio do “rival” Real Sport Clube, em Monte Abraão. Chegou a eliminar o Vitória SC da Taça de Portugal. Era um projeto com o cunho de uma pessoa – Dinis Delgado -, com grandes ambições e que exigia esforços inumanos. Quando surgiu a oportunidade, entraram investidores e aproveitaram a oportunidade: fundiram-se os clubes e o projeto desportivo do Estrela recebeu uma dádiva digna do mais moderno que o futebol pode oferecer. 

Presente? Sim. Envenenado? Será sempre usado como arma de arremesso, possivelmente de forma justa, contra o clube.

Não é, e nunca será, uma forma ética de subir. Não é desportivo, não é uma decisão feita dentro das quatro linhas, não é o resultado de épocas de sangue e suor a viajar entre a Lourinhã e a Malveira da Serra para disputar encontros com as equipas locais. Isto é bastante claro e, parece-me, indiscutível. Mas não creio que tenha sido uma alteração negativa no futebol português, ou no espírito do desporto no geral. Não me querendo alongar muito sobre esta temática, que me parece vir a dar imenso pano para mangas durante este verão, quando os jornais finalmente se derem conta do regresso do Estrela da Amadora a alguns dos palcos mais belos do futebol europeu, como os Estádios da Luz, Alvalade ou Dragão, tendo a achar que os benefícios ultrapassaram, e muito, os prejuízos.

O Sintra Football não tinha tantos adeptos nas partidas. Os parentes e amigos dos atletas apoiavam-nos. O Real SC ajudava-os com infraestruturas. A direção desse clube concordou com a direção do CD Estrela. Houve um entendimento tácito de parte a parte, facilitado pelo investimento externo. Os sócios do CD Estrela aprovaram a medida em Assembleia Geral. Quem saiu prejudicado, naturalmente, foram alguns dos adversários diretos – e aí, sim, diria que têm toda a razão em apontar este problema, esta maleita do futebol moderno, ao Estrela, a partir daí Club Football Estrela da Amadora (CFEA). 

Mas o benefício veio para a massa adepta do Estrela. O crescimento notou-se logo: juntamente com o CD Trofense, foram promovidos na última época do antigo formato do Campeonato Nacional de Seniores à Segunda Liga portuguesa de forma direta. Claro, o investimento veio de figuras perenes da área, profundamente divisivas. A estrutura apostava em manter o clube na Segunda Liga e eventualmente vendê-lo a um grupo de investidores com um projeto desportivo a médio-longo prazo. Atualmente, esses investidores estão à frente de outro histórico do futebol português, o Varzim Sport Clube.

A primeira época na Segunda Liga veio, e com ela o fim do futebol a portas fechadas, pandémico, que, gozam as más-línguas, terá dado o título ao Sporting. Fiz-me sócio de vez, depois de frequentar os jogos ocasionalmente antes disso, já com a disponibilidade de andar pela faculdade e de por isso passar todos os dias pela Reboleira, e com o atrativo de ver um nível de futebol de qualidade bastante superior: embora a excitação e a paixão da proximidade pelos jogadores continuasse aguerrida, como nunca deixara de ser, pelo que sempre ouvi dizer, pelo que sempre me contaram, nos tempos de Primeira Liga. 

Comecei a levar amigos às partidas. Na época passada, fui com um amigo de faculdade, o Pedro, grande gaiense, portista de coração, ver o Estrela disputar a última partida do campeonato com o Sporting da Covilhã. Sérgio Conceição filho capitão, Sérgio Conceição pai na bancada. Jorge Andrade, outro jogador que passou nas Antas, nome incontornável do futebol português, no banco, como diretor técnico. Não foi um bom resultado para o Estrela, mas a permanência estava assegurada. 

Os Leões da Serra, por seu lado, conseguiram manter a presença por mais um ano no segundo escalão. Não me esqueço da festa que os adeptos fizeram no setor dos visitantes. É algo que se vê muito pouco no futebol português, eternamente dividido a três, exceto em Braga e Guimarães, talvez, mas que ainda existe.

Nesta época, que terminou agora, houve novos investidores, pois, como planeado. A equipa foi remodelada. Saíram jogadores que deixarão saudades, o “outro” Paulinho ponta-de-lança que jogava na “minha” equipa foi para a Dinamarca num negócio milionário, entraram novas caras e o clube parecia diferente no papel. Na prática, a experiência foi a mesma. Não vou a um jogo desde janeiro, não vou ao Del Negro beber uma imperial desde janeiro, mas tenho tido o privilégio de ver (muitos dos) jogos à distância, porque a Segunda Liga tem muita cobertura televisiva. 

Que frustração foi não ganhar ao Farense e enterrar o machado de uma vez por todas com uma promoção direta! Começaram a jogar bem, a ganhar quando importava, a perder pouco e a empatar muito. O Régis e o Ronaldo Tavares foram excelentes, o Miguel Lopes que antes vi no Sporting foi um líder nato, o Bruno Brígido veio do Feirense e salvou a equipa quando importava… Houve de tudo para todos. Terminámos a época em terceiro, lugar de acesso ao play-off de acesso à Primeira Liga. Como dito, o nosso adversário seria o Marítimo – equipa que conseguiu ganhar ao Sporting nos Barreiros e frustrar muitas equipas do topo da tabela com o seu futebol defensivo eficaz e astuto.

Não estava particularmente confiante. Era o meu lado sportinguista a falar, o pessimismo que também me varreu até ao último penalty contra o Arsenal, esta época, que o Nuno Santos marcou e que me lançou numa correria desenfreada pelo meu quarteirão enquanto ouvia o Nuno Matos na Antena 1 a comentar, a vibrar com toda a festa e a emoção de eliminar, de novo, o líder da Premier League e uma das melhores equipas da Europa na Liga Europa. 

Mas o meu lado estrelista, a minha costela muito mais fixada às raízes, de quem vai ao Bogotá e ao David da Buraca, de quem mora num bairro da periferia e é condenado à periferia e às piadas secas de quem nunca cá viveu e que acha que a Amadora é o faroeste ou um sítio de onde não se sai, para onde as pessoas vão apodrecer em apartamentos manhosos… esse meu lado sabia que havia uma boa hipótese de vencer.

Ajudou ler as notícias e ver que havia investidores americanos prestes a comprar o clube, patrocinados por um grande, um enorme ícone do futebol mundial, o lendário Patrice Evra, que conhecerá a Amadora da sua convivência com o Nani no Manchester United, e que lançou vídeos nas redes sociais a falar em português (onde é que já se viu? Um francês a aprender a língua de Camões e de Jorge Amado!), a apoiar o Estrela, vestido a rigor. 

Também há mil opiniões a ter sobre isto – mas o Estrela não é o primeiro clube onde isto acontece em Portugal, basta ver o investimento qatari no Braga ou da família Platek no Casa Pia, que lhes permitiu ascender meteoricamente pelas divisões, ajudados também por um tal Rúben Amorim, de investidores israelitas no Famalicão, ou a quantidade absurda de dinheiro que Jorge Mendes movimenta nos três grandes e que leva todos os anos a saídas milionárias de Sporting, Benfica e FC Porto. 

Que seja um nome grande finalmente associado ao Estrela – e não o mito urbano do Ronaldinho Gaúcho não ter vindo para cá por não lhe terem arranjado casa e, por isso, ter preferido o PSG. Uma pessoa com paixão pelo futebol e com o pedigree de anos e anos ao comando do eterno Sir Alex Ferguson, será para mim uma coisa sempre positiva. E lá estava ele, aperaltado a rigor, na bancada, na primeira mão, na Reboleira, em que o Estrela venceu por 2-1 o Marítimo. 

Não veio à segunda mão, na Madeira. Tinha um compromisso já há mais tempo – o jogo de caridade da Soccer Aid, anualmente realizado em Inglaterra, com receitas a reverter para a Unicef. Contudo, não deixou de lançar nas redes sociais um pedido de desculpas e uma mensagem de apoio em português aos adeptos do Estrela. O nome mais sonante a passar na Reboleira desde 2009: ainda ecoam as passadas de gigantes como Aimar, David Luiz, Lucho, Hulk, Liédson ou João Moutinho nesse estádio, na última época do Estrela no topo do futebol português.

A verdade é que, na minha opinião, a Linha de Sintra precisa destas vitórias. A Linha de Sintra precisa desta união.

A Linha de Sintra, isto é, as gentes que dividem a sua vida entre os seus bairros e as suas cidades, a partir do Algueirão até às Portas de Benfica, e a cidade de Lisboa ou a sua periferia onde trabalham e estudam, precisa de algo que a una, que represente a sua identidade cada vez mais volátil numa Lisboa cada vez mais incendiada numa política de terra-queimada pela especulação imobiliária, por nómadas digitais que roubam a identidade da cidade e obrigam os alfacinhas a ir para Monte Abraão ou para a Tapada das Mercês, para o Casal de São Brás ou para Alfornelos, de algo que acolha o que tem verdadeiramente sido ser “lisboeta” nos últimos vinte anos, com toda a diversidade que é o fio condutor entre o Julinho KSD e o Conan Osiris. 

A cidade que viu crescer Rui Costa e Nani une agora benfiquistas e sportinguistas, diria, no apoio às suas raízes, ao que têm em comum, ao que os une de uma forma talvez mais forte do que uma camisola vermelha ou verde-e-branca.

Uma vitória sofrida

Foram muito mais as vozes que gritaram ontem pelo Estrela do que as que fizeram a viagem até ao Funchal ou mesmo que aquelas que estavam diante do estádio a ver, num ecrã gigante, o jogo mais importante das últimas décadas do clube e da cidade.

Fomos todos nós, em nossas casas ou até no estrangeiro (e que estranho que é, ser um linha-de-sintrense em Bolonha, que não tem dimensões para periferias deste peso!), a sofrer durante 90 minutos de uma das partidas mais excitantes da história do fundo da tabela do Tugão, a gritar com o golo do Miguel Lopes, a dar um metafórico murro na mesa quando o avançado do Marítimo, Chuchu Ramírez (com muita classe e mérito!) marcou nos descontos, a aguentar o prolongamento a roer as unhas, a ver os penalties… 

E já passava da meia-noite aqui, o meu colega de quarto já dormia do outro lado do quarto, a suprema infelicidade de uns, o supremo heroísmo de outros, a defesa do Bruno Brígido, qual Ricardo no Euro 2004 e no Mundial de 2006, a vitória e a festa do Estrela, infelizmente às custas do Marítimo, cujos jogadores deixaram tudo em campo a lutar heroicamente contra a despromoção.

Mas o futebol é assim – e eu bem o sei! -, feito de reveses e arrecuas, de celebrações e êxtases. Dei pulos na cozinha. Não parecia ter andado quase vinte quilómetros naquele dia. Estava nervoso e triste durante todo o jogo, mas tudo se apagou com o último penalty. 

O Estrela estava de volta à primeira! Tínhamos ganho, porra! A linha de Sintra tinha ganho!

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O metro ganhava mais uma paragem da Primeira Liga, o Colégio Militar\Luz e o Campo Grande juntavam-se à Reboleira, ou esta é que se juntava a eles, o comboio suburbano voltava a parar com mais ânimo por aquelas andanças, a cidade voltava a estar nas bocas do país por melhores razões que piadas racistas e de mau gosto! Por pouco não acordei o Haruki, que de futebol português não percebe nada, menos o que já lhe incuti com a minha t-shirt do Sporting e o meu amor pelo Hidemasa Morita. 

O que é que tiramos disto tudo?

Talvez uma lição sobre a importância do futebol popular na vida de uma comunidade.

O futebol que está para lá dos clubes galácticos, que são entidades com um poder de agregação muito mais compreensível à escala global que à escala local, que ultrapassa a dimensão dos “vinte e dois gajos suados a correr atrás de uma bola” e a receber milhões por isso.

O futebol dos bairros e das comunidades, torna-se no seu alento, na sua esperança, na sua voz. 

Nápoles explodiu de alegria e festa com cada campeonato que celebrou. Antes, Maradona; hoje, Kvaratskhelia. Deuses estrangeiros de um futebol que se tornou para essa cidade do sul de Itália muito mais que só um desporto.

Em Nápoles, o futebol é uma religião. Significa muito mais que o sucesso desportivo. Significa a identidade napolitana, a rebelião contra um norte que continua a menosprezar o sul, a atirar insultos de “terrone”, a desprezar a língua local.

O futebol em Nápoles é união e solidariedade, paixão e vida, seja na Serie C, disputando partidas em aldeias da Calábria contra equipas amadoras, ou na Liga dos Campeões e nos maiores palcos do futebol mundial. Resolve, não sem as suas tensões e contradições, o paradoxo entre os milhões que têm os que por lá passam, e os milhões que faltam aos habitantes da Campânia.

Diria que a Amadora também teve a sua explosão de êxtase naquele último penalty. Também teve o seu momento de união, de pertença e de identidade num sentido positivo: a identificação com a realidade imediata da qual o cidadão do subúrbio vive geralmente alienado, como já escrevi alhures.

Bruno Carvalho, o jornalista amadorense, também o descreveu com uma analogia a Nápoles. Faz demasiado sentido que assim o seja, neste país onde a vida paralela e subalterna gira em torno dos subúrbios das grandes cidades.

O futebol popular, pois, aquele que aproxima os locais dos estádios, os adeptos dos jogadores, que lhes dá voz e importância, é o que celebro com o regresso do Estrela ao saudoso Tugão.

O futebol em Portugal, como explico aos meus amigos estrangeiros de países mais tépidos e temperados, é muito mais que um desporto. É, para o bem e (sobretudo) para o mal, política. São ciclos noticiosos infindáveis, é projeção, é o encontro de vivências e de experiências noventa minutos por semana, mais descontos. 

É já raro que as equipas tenham jogadores locais, como antigamente; é já raro que as equipas até tenham locais fixos, como se vê quando a SAD do Vilafranquense muda o seu projeto desportivo para a Vila das Aves após passar épocas a jogar em Rio Maior.

Mas os jogadores vão-se tornando locais, com jeito, e nas ocasiões certas. E não importa a grandeza ou a estranheza da cultura – é belo ouvir um norte-macedónio como Stefan Ristovski a falar português, ou um Krasimir Balakov, um Nemanja Matic, um Axel Witsel. Tornam-se heróis, alguns de ouro pelo seu talento incontornável, outros de mero latão, santos da casa, pelo apreço que lhes nutrem os adeptos, mesmo que nem sempre os melhores.

Os adeptos escolhem os seus preferidos quando estes sobem à altura da ocasião, mas não basta saber jogar bem. (Se assim fosse, haveria muito sportinguista apaixonado pelo Rafael Leão!)

O Estrela não precisa de ter uma equipa com onze moços da Amadora para ser do povo.

Suspeito que não fosse tarefa difícil, tendo em conta que um dos melhores centrais da atualidade, Rúben Dias, chegou a dar uns toques em criança com uma camisola do Estrela. Mas nem nas últimas distritais isso acontece. Ser futebolista amador não é uma tarefa fácil e há trocas frequentes de clubes. O que precisa, e o que, a meu ver, tem conseguido, é de uma relação palpável entre a equipa e a massa adepta. É isso que puxa os adeptos ao estádio, que os faz cantar, que enche de vida uma cidade. 

Como escreveu Eduardo Galeano no seu Futebol ao Sol e à Sombra: “Não há nada menos vazio que um estádio vazio. Não há nada menos mudo que as bancadas sem ninguém.”

A Reboleira cheia de gente enche a Amadora e preenche os nossos corações. É a diástole que nos dá ânimo para voltar aos nossos trabalhos, para nos enfiarmos no comboio, no metro, no autocarro, no carro, para voltar para casa depois de um dia longo de trabalho ou de estudo, e termos algo a que nos agarrar que não esteja em casa connosco. É o nosso terceiro espaço e é o cultivo das nossas raízes locais, o apreço pela comunidade suburbana que se mostra sempre tão atomizada.

É a forma de conhecermos os nossos vizinhos. É a forma de nos juntarmos a eles, de fazer algo mais que um cumprimento ocasional na ombreira da porta ou a passear o cão. É a criação de uma relação que entretanto havia desvanecido com o espaço local, de nos voltarmos a apaixonar por ele, de voltarmos a lutar pela sua melhoria, pela sua preservação, pelos nossos direitos.

O Estrela representa isso para a Amadora e, num sentido mais lato, para a Linha de Sintra no geral. (Já tivemos o Real SC na Segunda Liga há alguns anos, o 1º de Dezembro ganhou inúmeras vezes o campeonato nacional de futebol feminino antes da profissionalização e da entrada de Sporting e Benfica, quem sabe se estes clubes não voltarão a experienciar algumas melhorias a jusante desta ascensão meteórica?)

Concedo, talvez, que o Estrela se tenha afastado da matriz do futebol popular de onde renasceu, e tenha mergulhado de cabeça numa ascensão vertiginosa cujas dimensões viremos a constatar nos próximos anos, para o bem e para o mal, entre o Sintra Football e o Patrice Evra.

Mas não foram esses eventos que definiram o apoio incondicional dos amadorenses ao Estrela. Não foram esses eventos que tornaram o Estrela numa das melhores apoiadas equipas da Segunda Liga, apenas atrás do Farense e do Académico de Viseu esta época, equipas que, pela sua maior distância geográfica e até cultural aos grandes do futebol português, sempre puderam cultivar uma base de apoio tradicionalmente grande e leal.

Não foram esses eventos que nos passaram pela cabeça quando celebrámos o Estrela de primeira, quando vimos a festa na Amadora. Não são esses eventos que nos passam pela cabeça quando a levantamos, finalmente, para dizer, com orgulho: sou do Estrela e da Amadora; e não de Sintra, vila turística de castelos e palácios, ou de Lisboa, a capital. 

Pode o sub-valorizado falar? Pode, pois! E que levante a voz e diga bem alto que é da Amadora, que é do Cacém, que é de Massamá, que é de qualquer uma daquelas paragens que os turistas fazem entre Lisboa e Sintra, que é da sua terra, do seu bairro, que é dali que veio e que é dali que surgem as suas raízes, muito mais cosmopolitas e cultivadas que o que qualquer um pode pensar. 

Que não faça como um certo Primeiro-Ministro que tinha vergonha de onde morava; que não faça como fomos ensinados na escola a dizer de onde éramos para evitar piadas com crimes e estereótipos. E quanto ao Estrela, que nos continue a dar muitas e muitas alegrias. De preferência sempre ao lado dos amadorenses.

Aprendiz de médico cacenense a tirar o Erasmus de Medicina em Bolonha. Adepto de transportes coletivos. Militante pela defesa da imprensa estudantil e apaixonado por Saúde, ética, política e o que sobra. Sou mais interessante ao vivo.

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1 Comentário

  1. Muitos parabéns por este excelente texto, que representa na totalidade aquilo tenho sentido ao longo dos últimos dias com o regresso do Estrela à primeira divisão. Esta promoção é mais um passo para reduzir o estigma associado à linha de Sintra, e em particular à Amadora. Viver na Amadora é aceitar a diferença, é não querer saber da estratificação social, é abraçar a multiculturalidade… Mas não é assim em todas as grandes cidades atualmente?

    Tenho o privilégio de estar no percentil 99.99% de rendimentos para a população portuguesa, e apesar de poder escolher viver em qualquer lugar do nosso país, nunca pensarei em sair da Amadora/linha de Sintra, pois esta é a minha origem!

    MUITO OBRIGADO POR ESTA CRÓNICA, DO MELHOR QUE LI EM MUITO TEMPO.

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