Há uns vinte anos, trabalhava eu como editora no grupo Bertelsmann quando me veio parar às mãos um romance argentino intitulado Inglaterra: Uma Fábula, da autoria de Leopoldo Brizuela; era uma obra notável e, não fosse alguém passar-me à frente, logo avancei com uma proposta para a sua publicação em Portugal.

A agente literária do autor, ao receber o meu e-mail, revelou-me que só podia ser um bom auspício: é que Leopoldo Brizuela estava justamente em Lisboa por esses dias e assim poderíamos encontrar-nos e discutir tudo pessoalmente.

Com efeito, o escritor hospedara-se na Pensão Londres ao Bairro Alto, onde, de resto, decorreu o nosso primeiro almoço; e, longe de ter sido um encontro de negócios, foi sobretudo o princípio de uma amizade que me levaria a visitá-lo em Buenos Aires e La Plata no ano seguinte.

Porém, a maior descoberta que fiz nesse longínquo dia de Novembro foi a de que Brizuela era um fanático de fado desde a noite em que vira Amália a cantar ao vivo no seu país: “Uma mulher toda de preto e apenas com dois guitarristas conseguiu cativar e manter anestesiado um teatro inteiro”, dizia ele, elogiando a força daquele canto.

O escritor viera também a Portugal para fazer investigação sobre a diva; ao livro já referido pretendia que se seguisse Lisboa: Um Melodrama, romance que teria como tempo a Segunda Guerra Mundial (durante a qual Lisboa fora ninho de espiões e refugiados) e que incluiria um encontro ficcionado entre Jorge Luis Borges e Amália Rodrigues.

A ideia era boa e conseguimos-lhe um apoio da Fundação Calouste Gulbenkian para a necessária pesquisa, que acabou por ser feita mais tarde, quando o escritor veio lançar o primeiro romance a convite das Correntes d’Escritas e acabou por passar dois meses inteirinhos em Lisboa.

E foi nesse período que pudemos ir juntos aos fados numa noite verdadeiramente memorável em que ouvimos, entre outros, Argentina Santos (o nome da fadista contribuiu para a escolha do local) que, na Parreirinha de Alfama, não só cantava, como cozinhava umas belas enguias fritas e contava pessoalmente o dinheiro ao fim da noite, guardando-o num pequeno cofre.

O Leo, como ficaria conhecido entre os amigos, estava verdadeiramente exultante e, depois de cada actuação, nunca deixava de sublinhar que o fado era realmente esse enigma deslumbrante que fazia com que uma voz e pouco mais enchessem tudo à sua volta.

Nas vésperas de regressar à pátria, numa entrevista a Carlos Vaz Marques no saudoso programa Pessoal e Transmissível, terminou a cantar A Rua do Capelão com a sua voz pequenina; ele sabia as letras dos fados todas de cor e era uma alegria ouvi-lo (a tristeza é ter-se perdido a gravação).

O romance Lisboa: Um Melodrama, que ainda levou anos a ser escrito, foi publicado em português em 2011, mas dessa vez o autor não veio a Lisboa nem pudemos voltar juntos aos fados.

Em 2019, veio a terrível notícia: Leopoldo Brizuela morria com 56 anos acabados de fazer. 

Quando às vezes assisto a um concerto de fado em que produtores e artistas decidem encher o palco com teclados, bateria, percussão e violinos, não posso deixar de me lembrar com saudade imensa do meu fadista argentino, que vivia maravilhado com o verdadeiro milagre que conseguiam apenas uma voz e duas guitarras.


Maria do Rosário Pedreira

Nasceu em Lisboa e nunca pensou viver noutra cidade. É editora, tendo-se especializado na descoberta de novos autores portugueses. Escreve poesia, ficção, crónica e literatura infanto-juvenil, estando traduzida em várias línguas. Tem um blogue sobre livros e edição e é letrista de fado.


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