Na tarde de domingo passado, em espera pelo jogo que iria decidir se a segunda-feira seria de ressaca dos festejos do título do Benfica ou não, optei por assistir ao embate entre Real Madrid e Valência. Se já estava sonolento, ainda mais fiquei. O campeonato espanhol está mais aborrecido do que nunca e um jogo da equipa de Madrid contra outra que não seja o Barcelona ou o Atlético é uma seca descomunal, salvo pelos rasgos de genialidade e ousadia do jovem talento brasileiro Vinícius Júnior – aos 22 anos, é a superestrela da La Liga e estará no top cinco da Bola d’Ouro da época 2022/23, se os jornalistas da France Football não estiverem loucos.
Foi por isso que sintonizei nesse jogo, em vez de fazer uma sesta, mas foi por outro que despertei.
Aos 70 minutos, com o jogo interrompido por um incidente com duas bolas em campo, alguns elementos da claque do Valência insultaram o craque brasileiro com insultos racistas e gestos que imitavam um macaco. Se até aí podiam voltar a dizer que se tratava de um caso isolado protagonizado por um grupo pequeno de adeptos, daqueles mais radicais e associados à extrema-direita, não se podia dizer o mesmo do que aconteceu depois, quando milhares de adeptos, de vários sectores do Mestalla, cantavam em coro ofensas racistas dirigidas ao Vinícius. Na verdade, também não aceitaria que considerassem um caso isolado o momento anterior, porque é o que tem acontecido a cada jogo do Real Madrid fora de casa esta época.
O jogo lá acaba com a vítima expulsa por uma suposta agressão quando se livrava de um jogador do Valência, que lhe aplicava uma chave de pescoço. Logo depois enchem-se as redes sociais de denúncias do sucedido e cobranças de atuação à La Liga, incluindo do próprio Vinícius, desapontado por mais um episódio da série de violências racistas que vem sofrendo esta temporada.
Também surgem os negacionistas do costume. Um dos argumentos daqueles que não condenam diretamente o incidente é de que o jogador é um provocador e por isso os adeptos respondiam “na mesma moeda”. Para além da falsa equivalência, eu tenho uma certeza maior: o racismo não tem contexto e os racistas não dependem de um para o ser. Os que insultaram o jogador do Real Madrid e da Seleção Brasileira Vinicius de macaco já o eram antes de abrirem a boca. Também não esperaram pela insinuação de que iriam descer de divisão, feita pelo número 20 dos merengues, porque os insultos começaram bem antes do início do jogo, ainda nas imediações do estádio. Ou seja, completamente gratuito.
Desde figuras políticas, ao presidente da liga e comentadores desportivos, foram muitos os que usaram as suas plataformas para condenar as supostas provocações do jogador em vez dos insultos, que, entretanto, já eram virais. Do presidente da liga apenas tweets condescendentes, insinuando que Vinícius é que não sabe de quem é a responsabilidade nestes casos. Com isto percebemos que um dos líderes do futebol espanhol não sabe como responder ao racismo. Nem o próprio árbitro que, não só não acionou o protocolo vigente para estes fenómenos, não incluiu no relatório do jogo nenhum incidente relacionado com adeptos. Total omissão.
O sapateado não ficou por aqui. O apresentador do programa de futebol mais visto na nação vizinha, El Chiringuito, apressou-se a discordar da vítima, dizendo que Espanha não é um país racista. Vinícius, numa das publicações, diz que adora o país que o acolheu, mas, por tudo o que tem sofrido, não consegue negar que tenham uma cultura de racismo. De facto, Espanha não deve ser um país racista para quem não sofre diretamente. Para pessoas como o Vini, é difícil reconhecer da mesma forma. Se insultos como aqueles acontecem em frente a centenas de câmaras, a uma das caras do futebol mundial, o que é que acontece longe delas aos comuns mortais?
Eu já estive em Espanha algumas vezes e não fui ofendido daquela forma, nem de outra. Também não acredito que multidões se juntem em coro para ofender negros, ou outras minorias étnicas, aleatoriamente na rua ou no desempenho das suas profissões. O que podemos retirar daqui é que se criou no desporto, particularmente no futebol, um excecionalismo para este tipo de injúrias. Quem não insulta em bando um negro na rua e só o faz num estádio de futebol sente conforto para tal. As entidades responsáveis legitimam o racismo não atuando sobre ele. Os comentadores televisivos dão-lhe espaço relativizando e reproduzindo mensagens com o mesmo teor. Os adversários em campo alimentam-se dele beneficiando da desestabilização. O presidente da La Liga, Javier Tebas, deixa tudo como está, porque ganhou notoriedade como político de extrema direita. Essa mesma que ganha relevância no parlamento espanhol e regressa aos estádios de futebol. No caso da claque ultra fascista do Valência, Yomus, tinha sido banida do Mestalla em 2021 pelo novo dono do clube, Peter Lim, mas com os maus resultados desta temporada, voltaram a estar em cena. E que cena.
Enfim, o racismo não tem contexto em que não o seja, nem depende do contexto para o ser. Racismo é racismo e deve ser condenado em qualquer lugar e sentido. Por mais que o futebol o teime em legitimar, não pode ganhar essa luta. O Desporto Rei não é um ecossistema à parte da sociedade e das suas regras para que racistas possam sair impunes. O que está a ser atacado não é a camisola da equipa contrária, mas sim a identidade de um ser humano.
*Airton Cesar Monteiro é imigrante cabo-verdiano lisboeta, licenciado em Relações Internacionais (não praticante) e convicto agitador social. Dedicado a escrever sobre mudanças sociais, cultura e o que mais lhe apetecer.

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