Era um lugar de liberdade e expressão que eles procuravam quando deixaram o seu país, atravessando fronteiras até chegar a Lisboa. E foi nesta cidade virada para o Tejo, no dia em que Portugal saía à rua para celebrar o 25 de Abril de 1974, que dez homens e mulheres vindos de vários cantos do mundo viraram atores das suas próprias histórias reais, que contaram em cima de um palco da Casa dos Direitos Sociais – auditório Fernando Pessoa, em Marvila.

Foi no dia da liberdade que a luta por um “sítio” ganhou voz na peça “Natiki” – o título de uma das histórias preferidas de Nelson Mandela, sinónimo de superação, resiliência. Um espetáculo dinamizado pelo CEPAC (Centro Padre Alves Correia), em parceria com a MOVEA (Movimento Português de Intervenção Artística e Educação pela Arte).

Um espetáculo diferente, por fazer uso do “Teatro do Oprimido”, um método teatral criado por Augusto Boal entre os anos 1950 e 1960, para se recriar uma realidade a ser pensada e debatida por uma comunidade. Neste caso, falamos da comunidade imigrante acolhida pelo CEPAC, que trabalhou uma vertente deste método: o chamado Teatro-Fórum, baseado na improvisação para se criarem cenários de opressão.

No palco, surgiram histórias daqueles que atravessaram oceanos num barco, que passaram noites nas ruas, que palmilharam Portugal de Norte a Sul, ouvindo-se as sonoridades de Cabo Verde e da Guiné-Bissau, em músicas cantadas por estes atores. São histórias como as de Djicu Sano, da Guiné-Bissau, em tempos bailarina, e que viajou para Portugal à custa de um coração partido. Ou como a de Cipriano Sanca, também da Guiné-Bissau, que veio para Lisboa depois de um acidente de trabalho lhe ter roubado um braço.

“Eu sempre gostei de teatro, mesmo no meu país”, diz Cipriano. “Lá, eu formava a peça e ensaiava as pessoas”. 

O regresso ao teatro comunitário

Esta não foi a primeira vez que o CEPAC apostou no teatro comunitário com os utentes e o Teatro-Fórum era já uma metodologia utilizada em sessões do programa de integração no mercado de trabalho. “Aí, trabalham-se questões como a resiliência, a autoestima, a autoimagem”, esclarece Ana Mansoa, diretora-executiva do CEPAC.

Mas a ideia de se recuperar esta iniciativa surgiu no âmbito da comemoração dos 30 anos do CEPAC, e foi graças ao financiamento do Programa de Apoio em Parceria – Interculturalidade, um protocolo entre a Direção-Geral das Artes (DGArtes) e o Alto Comissariado das Migrações (ACM), que se conseguiu levar o projeto a bom porto. 

Tudo começou em outubro, com um processo de partilha. “Foi a primeira vez que eles se expuseram perante os outros, a primeira vez em que muitos deles verbalizaram a sua história: falaram sobre medos, solidão, discriminação. E só isso é que lhes deu a força para estarem em cima do palco”, diz Ana Mansoa.

“Começámos com exercícios de conhecimento, jogos de quebra-gelo para colocá-los à vontade, despi-los de preconceitos…”, explica o encenador Duarte Silva. Depois, passou-se à construção propriamente dita, tudo a partir dos relatos e escolhas dos participantes.

Aquele que foi um processo de transformação e de construção culminou, então, em “Natiki”.

Empoderar comunidades através do palco: porquê?

“O nosso propósito era trazermos algumas pessoas que têm dificuldade em contar as suas histórias de vida”, explica Ana Mansoa.

Estas dez histórias de quem chega a um país, sem saber para onde ir. E a irmã Rosa, voluntária do CEPAC, explica o porquê desta iniciativa ter sido tão importante para esta comunidade: “Vale a pena, porque eles se sentem valorizados, acolhidos…”. 

teatro natiki auditório Fernando Pessoa
A irmã Rosa, o ponto do espetáculo, Foto: Rita Ansone

É talvez esse sentido de valorização que importa aqui. E por isso é que por Lisboa já se têm multiplicado experiências como estas, do “Teatro do Oprimido”. Na tese de mestrado de Maria Inês Ventura Neves sobre o impacto do Teatro do Oprimido em comunidades mais vulneráveis, usa-se mesmo um outro termo: “empowerment” (empoderamento). 

E a autora escreve mesmo:

“Uma das ideias do Teatro do Oprimido é precisamente (…) sobre a metáfora da árvore, a ideia de multiplicação. Ou seja, a ideia é entrar e sair de uma comunidade deixando frutos”.

O Teatro do Oprimido em Lisboa

Pela cidade, o teatro-fórum já semeou frutos. Inês Neves avaliou precisamente o impacto que esta prática teve em quatro comunidades de Lisboa, impulsionadas pelo trabalho do GTO Lx, um grupo de teatro que surgiu em 2002 com o propósito de servir as comunidades mais vulneráveis da área metropolitana.

Os grupos avaliados:

  • DRK – Doutores de Rua. Um grupo de jovens dos bairros da Cova da Moura e Zambujal que em 2013 lutou pela mudança da lei da nacionalidade e/ou lei de entrada, permanência e saída de território português com o espetáculo “Sonhos de Papel”;
  • Valart. Um grupo de jovens do bairro do Vale da Amoreira, na Moita, mais focado em questões ligadas à sexualidade;
  • Mira Kapaz. Um grupo de jovens do Casal da Mira, focado em questões sociais;
  • Muda Gosi Fasil. Um grupo de jovens do bairro da Adroana, em Cascais, que convidam a comunidade a refletir sobre os seus problemas.

Os resultados deste estudo mostraram que uma grande parte dos inquiridos (seis em oito) sentia que, com o teatro comunitário, ganhara uma melhor capacidade de expressão.

Uma capacidade de expressão também ligada à capacidade de se defenderem através do conhecimento e da argumentação em situações de conflito, injustiça e discriminação racial.

Quatro dos oito entrevistados afirmaram ainda que passaram a ter uma maior capacidade de ação e de reivindicação dos seus direitos, ou seja, uma cidadania mais ativa. O crescimento pessoal, “a capacidade de escolher o próprio destino” e um maior sentido de responsabilidade foram também mudanças sentidas. 

“Por exemplo quando integrámos o Teatro Fórum, eu e outro amigo voltámos a ir para a escola estudar. Já estávamos há um ou dois anos sem estudar nem nada, e percebemos que tínhamos de ir estudar para não perpetuar a vida dos nossos pais (trabalhar em obras ou limpezas). Os exercícios, os jogos e espetáculos contribuíram para isso”.

Entrevistado nº5.

“Eu não quero ser mais uma jovem que vai para onde a onda te leva. (…) Ganhamos consciência (…) queremos ser uma pessoa diferente (…) eu não quero ser como os meus pais, não quero ser como a minha amiga, eu quero ser diferente, e esse diferente é tu seres capaz de dizer que queres ser diferente aqui, aqui e aqui, porque os meus objectivos são este, este e aquele. Eu acho que tu consegues ganhar isto fazendo este tipo de teatro (…) também não quero dizer que este teatro é um milagre (…) tu também tens que entregar (…). ”

Entrevistado nº4.
CEPAC auditório Fernando Pessoa natiki
No auditório Fernando Pessoa, celebrou-se o poder do teatro comunitário. Foto: Rita Ansone

Recordar no teatro

O que aconteceu no passado 25 de abril no auditório Fernando Pessoa voltou a repetir-se na Igreja de Santa Maria, em Agualva-Cacém, e na Igreja do Catujal, em Unhos. Lugares onde se viveu um grande sentido de “compromisso e envolvência”, descreve Ana Mansoa.

Cipriano Sanca, hoje já com uma prótese no lugar do braço e a fazer fisioterapia, diz a sorrir: “Foi muito bom o processo, correu muito bem”. E Djincu tem fé em relação a um regresso ao mundo das artes: “É mais experiência que eu tenho, eu quero ainda mais. Eu quero ser profissional!”.

Para Ana Mansoa, encontrar estas histórias em palco foi um momento de catarse. E não só porque ficou a conhecer melhor as histórias de superação de cada um dos atores – é mais que isso:

“A minha história de vida também se cruza de alguma forma com a deles, as minhas origens são na Guiné-Bissau e a história da minha família é uma história de luta e de sobrevivência, e por isso identifico-me com os testemunhos deles”, diz Ana.

E é também essa missão do teatro: a de recordar, a de encontrar nos relatos dos outros um pouco de nós.


Ana da Cunha

Nasceu no Porto, há 27 anos, mas desde 2019 que faz do Alfa Pendular a sua casa. Em Lisboa, descobriu o amor às histórias, ouvindo-as e contando-as na Avenida de Berna, na Universidade Nova de Lisboa.

ana.cunha@amensagem.pt


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