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Na semana passada, a Maria casou. Isto dos casamentos é fácil resumir: é a Maria que quer muito o Manel, é o Manel que quer muito a Maria. Quiseram-se um ao outro, e quiseram os amigos também. Como o casamento foi arranjado meio à pressa, só se meteu lá o núcleo duro.
Lixámo-nos para a marcha do 25 de Abril, e ainda bem que assim foi, que no rooftop do Carmo soprava uma brisa. Era uma brisa tão valiosa que, para além de não pôr os engravatados a suar, ainda fazia com que uma Coca-Cola zero nos tirasse três euros e meio ao bolso.
Assim que cheguei, no meu melhor fato, até por ser o único, vi, ainda antes da noiva, a minha rival. Filha da mãe de gaja. Para além de estar mais bem vestida do que eu, ainda tinha um ar mais cool, descontraído. Calças de fato, colete de fato, nada por baixo – perfeita mistura entre formalidade e não-quero-saber-vírgula-sou-cool-de-qualquer-jeito. Eu, para fazer boa figura, ali estava de sapatos tórridos, calças que tinha passado a ferro de manhã (mal), a minha melhor camisa a pedir a abertura de uns botões. Achei que era o ponto de rebuçado para aquele dia – chique, mas não totalmente chique; aprumo, mas não demasiado aprumo –, mas, afinal, até a senhora de avental do bar fazia melhor figura.
A minha maior rival nunca me fez mal nenhum, mas quando há disputa não há simpatias grátis. E a Maria sempre soube manipular o trio, uma best friend forever de um lado, uma amicíssima outra do outro. A outra, a quem chamaremos aqui Rival Caeiro, tem a vantagem dos anos e de ter vivido na mesma casa que o nosso eixo, e de se terem conhecido numa associação de estudantes quando ainda eram jovens e tinham a vida à frente – é difícil competir com alguém que traz em si o perfume do futuro. Já eu tenho a vantagem de morar na mesma cidade que a Maria, pelo menos até à trágica notícia da promoção do namorado, depois noivo, agora marido, que a vai levar para longe de mim, do outro lado do mar, perdida entre bagels, a ver ratos em Manhattan. Se me vai custar tê-la tão longe e não poder levá-la aos jogos Estoril-Vizela? Pois. Se vai ser difícil não irmos sacar pad thais ao almoço, perto da Avenida da Liberdade? Óbvio. Se nunca mais vou ter roupa nova porque ela não me poderá levar às compras? Claro. Mas nem tudo é mau, e pelo menos ela com a outra também não poderá andar. Se é para não estar comigo, que pelo menos não possa estar com mais ninguém.
Enfim, cheguei, ignorei a Maria. De olhos duros, que são os meus, virei-me para a Rival. Ela, reconhecendo-me, levantou-se – e então enervou-me logo por ter mais vinte centímetros do que eu. Imagine-se a minha figura, eu a querer armar-me em esperta, com a superioridade de quem ama os amigos, e a não passar de uma mísera anã a pôr-se em bicos de pés metidos em sapatos. Fiz de conta que aquilo não incomodava, fui directa ao assunto: “Então a minha grande rival és tu?” Usei a minha voz mais rouca a ver se dava para assustá-la.
Ela nem se deu ao trabalho de fingir que não. Disse que sim, perguntou se íamos andar à porrada. Eu disse-lhe que, por ela, era melhor não, que eu tinha ido aos treinos de jiu jitsu – e aqui descrevi coisas que só vi fazer no YouTube, mas isso ela não tinha como saber, até porque eu tenho sempre um ar sério, de confiança, e nunca gabarolas. Ela lá se furtou à luta, pôs um sorriso simpático e marcou pontos assim: “Então bem-vinda!” Eu queria tanto passar pelo dislate de ter alguém a dar-ME as boas-vindas ao casamento da Maria como queria ser atropelada por um camião-TIR incendiado no Chiado. Calei-me sem resposta, fiquei a pensar em como raio ia dar a volta às coisas, recuperar a dignidade, ser alguém na vida – reganhar o meu lugar de honra. Mas a sério, naquela altura do campeonato, qual lugar de honra? Se pudesse, sei lá, atirá-la do rooftop ao chão, talvez pudesse ter vantagem, mas com ela morta quem é que eu venceria? E ir quinze anos para a prisão ia cortar-me a carreira contributiva. Só um insensato facilita em Portugal, onde os governos vão sendo PS e PSD à vez.
No meio disto, lá tentei dar alguma atenção à Maria. Fiz boa figura ao oferecer-lhe um bolo da Landeau – que ela não só não abriu como se esqueceu de levar no fim. E depois, em vez de comentarmos todos quem estava, começámos a ver quem faltava. Não me acusem de ser possessiva em relações de amizade, sempre é coisa melhor do que ir à missa ou usar calças azuis com sapatos pretos. E, na nossa inimizade, eu e a Rival lá nos unimos. Valeria mesmo a pena gastarmos tanto ódio uma na outra? Ela não seria amiga da Maria se fosse mesmo uma besta. Claro que o que me incomodava era que ela pudesse ser menos besta do que eu.
Mas a questão aqui era outra, e volta e meia é bom abrir os olhos, roubar a alegria aos dias, fixarmo-nos nas 30 vitórias ao invés do único empate do campeonato. É que houve uma altura da vida, éramos nós jovens, em que éramos três a disputar o coração da Maria – esse mesmo, que afinal foi roubado pelo Manel, daqui direitinho para um T0 qualquer a cinco estações de Times Square.
Éramos três, e somos duas. Separou-se o trigo do joio, ficámos nós, talvez com o trauma de uma das rivais não ter resistido ao tempo. Tão atirada foi para a prateleira, que nem para o casamento foi convidada. Enquanto eleitas, à Rival e a mim cabia a sobranceria da vitória. E era uma sobranceria do mais sobranceiro que havia: nem chegávamos a valorizar o ouro e a prata no pódio, porque já nem havia bronze. Era o mesmo que ganharmos os primeiros lugares numa competição em que só estávamos nós. E, por isso, o pódio lá se alinhou um pouco, mantendo a paz. Comentámos, pesarosas: “A Falecida, coitada, lá se foi. Ninguém ouve falar dela. Como é que se chamava mesmo? Era Defunta?”
Mas nós sabíamos perfeitamente que a Falecida Defunta Morta Enterrada e Cremada era a Sónia, mas chutá-la para o anonimato só nos dava mais nome. Amiga de infância da Maria, desde a pré-primária, tinha ido de férias com os pais dela, e a Maria também tinha ido de férias com os Srs. Perecidos da Silva. Se eu já sentia a superioridade de quem vinha dos tempos da Universidade, imaginem o que era ouvir os risinhos das palermices da escola primária, a cumplicidade que nós não podíamos ter, as piadas que nos passavam ao lado, as memórias de um gajo qualquer expulso da escola a meio do quinto ano por andar no pátio a passar droga. Nas nossas escolas, nem droga havia. Na minha, por exemplo, o maior escândalo de sempre foi que um casal tivesse perdido a virgindade antes de chegar ao nono ano. Ainda por cima, acabaram três anos depois, foi amor de pouca dura.
Com dez anos, a Maria e a outra tinham tentado fazer uma directa, deitadas na cama, durante umas férias em Vila Praia de Âncora. Desistiram quando a irmã mais velha da Defunta as mandou dormir às duas. Com onze, tinham tido a primeira discussão, isto porque a Morta tinha começado a dar atenção ao Zezinho. Com doze, foram juntas a treinos de andebol. Com treze, foram expulsas da aula de Estudo Acompanhado por andarem a passar cromos da Operação Triunfo – uma preferia o Filipe Gonçalves, a outra o David Ripado. Mas, como eram tão amigas, até aquilo conseguiu sobreviver. E por aí fora até aos 26.
Nessa altura, a Esquecida fez o que a condenou a ser Olvidada: sacou o irmão da Maria numa noite no Algarve, que ainda por cima era mais novo. Depois mentiu, disse que não, ainda que tivessem sido vistos, meio bêbedos, a sair de uma casa de família já depois das sete da manhã – e não para ir surfar nem para ir à missa. A Maria engoliu, depois tentou andar para a frente. O para a frente chegou e os gajos continuavam enrolados. Aos poucos, a irmã foi trocada pelo irmão. Andam três mesinhos nisto. Depois foi cada um à sua vida, mas a corda já nem fiapo era, e laço não havia. O que havia para morrer morreu naquela cama.
Felizmente, o irmão – aquele palhaço do Nuno – não meteu os pés no casamento. Virou gay no ano passado, foi para Singapura com um chinês e só voltou a falar com a Maria numa videochamada na véspera de Natal. Por mim, tudo tranquilo, e pela Rival também: menos um a roubar-nos atenção.

Ana Bárbara Pedrosa
Veio para Lisboa estudar Literatura em 2012. Daqui só saiu para o Brasil, onde, à portuguesa, teve saudades dia e noite. Regressada, escreveu Lisboa, chão sagrado e a cidade foi a diva onde se perderam personagens. Anos depois, numa casa em Benfica, foi ao Médio Oriente e escreveu Palavra do Senhor. No mesmo sítio, meteu a cabeça em Vizela e escreveu Amor estragado. Para os de cá, tem sotaque minhoto; para os de lá, engravatado.

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