De forma intermitente, já escrevo para jornais há uns anos e, sem interrupções, leio jornais desde a adolescência, mas ainda me surpreende como os fazedores de opinião elaboram a suas prosas.
Como são influenciados? Os intelectuais desenvolveram uns conceitos pomposos para tratar os triviais mecanismos da influência, como a “angústia da influência”, de Harold Bloom (o artista está sempre a responder aos seus artistas que se impuseram), o “desejo mimético”, de René Girard (queremos o que o vizinho exibe), ou até a psicanálise, de Freud (de certo modo, uma terapia para nos livrar das influências parentais).
Este problema atinge um cúmulo mediático nas tertúlias televisivas generalistas, onde quase nunca há mais de duas opiniões para distribuir pelos três ou quatro membros do painel, e como nenhum se sente autorizado a dizer “faço minhas as palavras do meu colega”, geralmente lida-se com esta influência ignorando-a, acabando por se dizer o mesmo que algum outro parceiro anterior, ou seja, as notas preparadas em casa, como se nada tivesse sido escutado.
Na opinião escrita sucede o mesmo, sem a atenuante do confronto directo. Por causa da rapidez com que as notícias hoje circulam e das reacções imediatas nas redes sociais, mesmo o primeiro colunista a tratar o tema na imprensa já escreveu a sua crónica a par da opinião pública. E todos os outros desenvolverão o tema já depois de terem lido o que alguns colegas escreveram.
Porém, ao contrário do que sucede na literatura académica, em que atribuir a autoria das ideias ou expressões com que trabalhamos é uma prática sagrada, na opinião publicada quase nunca se menciona o que um outro colega escreveu, a menos que seja para se discordar dele, sempre veementemente, claro.
Esta profunda assimetria entre a repressão da concordância e a exploração do dissenso promove a polarização que o leitor procura. Será, por isso, clarificadora e cumpre o que o mercado deve assegurar, ou seja, a satisfação do cliente, mas ficamos sem saber se, numa ilha deserta, o colunista escreveria a mesma coluna. É uma dúvida legítima. Porque a dispensa de identificar as concordâncias cria uma ilusão de originalidade que só convence os tolos ou os iludidos do individualismo.
Além desta aversão à concordância, o colunista, sobretudo se não for um académico já formatado pela prática profissional, tende a ser parco nas referências ao que leu, em parte porque não quer ser vítima da sempre iminente acusação de que é um “pseudo-intelectual”.
O resultado desta combinação de forças faz com que a opinião do colunista pareça emanar da sua cabeça por geração espontânea. Na realidade, o colunista está sempre a reagir ao ecossistema da opinião pública e publicada.
Uns procuram fazer a síntese e expressar a perspectiva moderada, sem preocupação com os poucos “likes” e “partilhas” com que a moderação é castigada, nem com a acusação de que são uns frouxos ou uns “situacionistas”. Outros preferem alinhar com as massas, tornando-se cabeças de cartaz da “indústria da indignação”. Há ainda os que cultivam a pose do “contrarian”, por gosto de provocação ou genuíno desejo de reequilibrar o tabuleiro. E há aqueles que preferem as tangentes e a estética, meio alheados do mundo, como um pianista a tocar Mozart quando tudo explode ao seu redor.
Estas diferentes abordagens apresentam-se tão mais tentadoras quanto mais incontornável é o tema da actualidade. E por estes dias ninguém pode evitar o tema do “altar-palco” para a Jornada Mundial da Juventude (JMJ).
Espetando o dedo no ar para sentir como sopra o vento, parece claro que o tom geral é de condenação.
Porque a despesa pública num altar-palco (até 6 milhões) de uso futuro incerto e a despesa pública total num evento que durará poucos dias (estão anunciados 80 milhões de dinheiro público) indigna um povo esmifrado pela Euribor e a inflação. Porque há uma descoordenação evidente entre os diversos – digamos – stakeholders. Porque Marcelo não consegue, desde o momento do anúncio da atribuição da organização desta JMJ a Portugal, conter o seu voluntarismo, confirmando-se que o catolicismo é a kryptonite do Presidente. Porque a arquitectura das maquetes do altar-palco de Beirolas e daquele do Parque Eduardo VII, com os múltiplos desníveis, é tributária de uma visão classista, em que há lugares de primeira, segunda e terceira categoria, seguramente muito à medida de uma Igreja Católica Apostólica Romana, mas pouco fiel ao cristianismo original. E porque há um novo-riquismo parolo nestes planos que choca com o pensamento e a prática do Papa Francisco.
Tudo isto se vai lendo por aí (e.g., Paulo Mendes Pinto, João Miguel Tavares, Carmo Afonso e António Capinha) e as críticas serão pertinentes. Mas embora concordando com a substância, sobretudo nas redes sociais, onde a opinião é mais crua, discordo do tom de muitas críticas, que vem animado pelo anticlericalismo.
Comecemos didacticamente. A laicidade não proíbe o uso de dinheiro dos contribuintes para benefício de confissões religiosas, como oportunamente esclareceram alguns dos nossos constitucionalistas mais reputados. Houve dinheiro público na construção da nova mesquita de Lisboa e a CML cedeu o direito de superfície de uma zona nobre da cidade à associação Hagadá para a construção do museu judaico.
Sobram essencialmente duas questões: ficará a cidade beneficiada pela reabilitação que a JMJ aparentemente exige? E poderá esta iniciativa ser rentável? Creio que ninguém tem uma resposta clara a estas questões, em grande parte por culpa dos seus promotores, mas acredito que ambas as respostas serão positivas.
O que este caso tem de mais absurdo é a discussão estar centrada num equipamento (o altar-palco) cujo orçamento é menos de 10% de uma obra de requalificação da parte Oriental de Lisboa. Surpreende a incapacidade de comunicação das câmaras envolvidas, porque qualquer autarca se lambe por anunciar obras e os planos para esta obra podem ser encontrados, mas só por quem se der ao trabalho.
E o que se lê é o plano de uma verdadeira reabilitação, que inclui zonas verdes, ciclovias, um nó intermodal, um metro de superfície, um passeio ribeirinho, a construção de uma escola, etc. Será intervenção capaz de prolongar no espaço e no tempo a recuperação da zona Oriental da cidade dos anos 1990, o que aproxima a JMJ mais da bem sucedida reabilitação urbana da Expo 98 do que do Euro 2004 de mérito duvidoso.
Quanto à JMJ como oportunidade de negócio, também ninguém sabe se os divulgados 160 milhões (80 milhões de dinheiros públicos e 80 milhões da Igreja) vão gerar um saldo positivo. Se vier um milhão e cada pessoa gastar 500 euros numa semana em comida, dormida e diversão, são 500 milhões, mas divisas a entrar na economia serão menos porque o evento terá muitos portugueses, e não se viu ainda nenhum estudo sério que, por exemplo, avalie se este milhão de visitantes previsto para a JMJ, por saturação da capacidade hoteleira da capital, perturbará o turismo que Lisboa habitualmente recebe no Verão.
A minha esperança é que o arrendamento por privados esmifrados e sedentos de algum rendimento que lhes pague as férias de Verão no Algarve seja suficiente para aumentar a oferta de camas e albergar o grosso dos jovens da JMJ. Ninguém gosta de arrendar a sua própria casa a estranhos, mas dizem-me que estes serão jovens “castos” e não os habituais frequentadores dos festivais de Verão, de higiene e líbido preocupantes, a quem ninguém cederia o seu próprio colchão.
Se nada parece perdido e Lisboa ficará mais rica, correndo o evento bem ou mal, como se explica o tom de crítica? Concordo com o que ouvi no último Bloco Central: estamos viciados na polémica e os políticos jogam hoje à defesa, com medo da opinião pública. Mas esta é apenas a causa próxima. A causa última é o velho anticlericalismo.
Houve um tempo em que expressar uma opinião anticlerical era demonstração de ousadia. Mas as sociedades ocidentais foram-se afastando do catolismo (a IVG e os direitos dos homossexuais), sendo depois os escândalos de pedofilia na Igreja a estocada final.
Hoje, o anticlericalismo é a forma mais rápida de conquistar simpatia nas redes sociais. O declínio da popularidade do catolicismo deveria satisfazer este ateu que vos escreve, mas só se o avanço do secularismo fosse também o triunfo da razão. Ora, não há sinais de que sejamos mais racionais do que há umas décadas.
Os nossos governantes aprovaram há ainda poucos anos legislação que legitima práticas anti-científicas (as “terapêuticas não convencionais”), o que é praticamente (a prazo) um crime de homicídio por negligência. A COVID-19 revelou uma predisposição para acreditar nas mais manhosas teorias da conspiração, desde que legitimadoras do nosso egoísmo. Os programas televisivos de day-time continuam a promover astrólogos, quiromantes e toda uma infindável série de charlatães. E o declínio da influência dos párocos foi acompanhado pela entrada em cena de psiquiatras e psicólogos, que cumprirão um papel importante na preservação da saúde mental, mas também da nova fauna dos life coaches e motivational speakers, sendo Cristina Ferreira a mais nova representante deste grupo.
Se o leitor tiver oportunidade, ouça uma qualquer gravação do evento “Cristina Talks”, um festival de mediocridade intelectual e pornografia das emoções, em que Cristina Ferreira conta episódios banais da sua vida convencida de que o discurso irritantemente pausado enche de gravitas uma existência que ela julga transcendente por ser uma pessoa extraordinariamente bem sucedida na profissão. Estamos perante um proto-culto com laivos de ética protestante do trabalho laicizada e apimbalhada, muito à medida das expectativas de uma plateia de gente remediada e carente de orientação espiritual.
Um ateu realista sabe que é impossível eliminar a religião. No século XIX, no início do positivismo, ainda terá feito sentido alimentar a esperança numa sociedade exclusivamente materialista e racional. Duzentos anos passados, só podemos concluir que, para uma parte considerável da população, algum tipo de religião é essencial e que, para estas pessoas, a arte e as relações humanas, suficientes para os mais materialistas, não chegam para dar sentido à existência. Daí a imprudência de querer acabar com as religiões. Porque o enfraquecimento do catolicismo é o fortalecimento da IURD e outras seitas (sempre à beira de um escândalo sexual) e também dos motivational speakers da moda.
Um ateu realista tem de ser um conservador no que toca a religiões, porque não há progresso na religião, só tentativas de charlatanismo medíocres que o tempo e a crítica ainda não vergaram em práticas com um módico de virtude. Em resumo, antes a pior das homilias do que o melhor dos discursos de Cristina Ferreira.
O que desconsola neste tiro livre ao altar-palco é a exibição de uma pulsão anticlerical que parece concentrar todos os ódios. Marx estava errado. Hoje, a religião é o ódio do povo, para alegria de uns quantos patifes. No Euro 2004, gastou-se muito mais dinheiro, e em antecipadamente comprovadíssimos elefantes brancos, mas com muito menos barulho.
Enfim, talvez ainda haja um final feliz. Imagino o altar-palco a ser arrendado durante 10 anos por uma quantia choruda a Cristina Ferreira, que todos os domingos utilizaria aquelas rampas, a pala e talvez até a cruz, como só uma grande profissional do audiovisual sabe fazer, na promoção do novo catecismo.

Vasco M. Barreto
É biólogo. Nasceu em Lisboa, cresceu nos Olivais Sul durante os anos 70 e 80, viveu uns anos no Lumiar e depois seguiu para Paris, onde se doutorou, e a seguir Nova Iorque. É casado e tem duas filhas. Árvores plantadas. Livro a caminho.

Lia Ferreira
Nasceu em Lisboa em 1974 e ali cresceu e fez a sua formação artística. É pintora, ilustradora e retratista. Mãe de 4 filhas, leva a vida na Arte.

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As obras da Igreja e para a Igreja não estão dispensadas de observar o 7 mandamento. E lembrar isso não é anticlericalismo.
Fico satisfeito que ache 7 milhões pouco dinheiro. Para mim serão vários anos de trabalho.
Não sei que sondagem foi feita para se afirmar que os portugueses acham estes valores razoáveis para um visita do papa, mas gostaria de conhecer a ficha técnica.