Há uma angústia intrauterina nesta espera. A impotência dentro do carro, tendo como fronteira a traseira do carro da frente. Vogando no líquido diáfano dos pensamentos como o feto preso à vida por um cordão, comecei a calcular o tempo de pára-arranca em função do ponto exato da cauda da fila.

Antes da paragem, 25 minutos; na passadeira, meia hora; na curva do elétrico, 40 minutos. Só me engano por pouco. Depois de mim, chega mais um. Agora é que não há escapatória.

Atrás e à frente, rostos conformados como o meu ao volante, o mesmo desejo de – num gesto libertário – alongar os gémeos, falhar o ponto de embraiagem e deixar deslizar sem olhar pelo retrovisor, encolhendo os ombros às consequências. Ou apenas abandonar o veículo, como quem abandona uma sombra, aqui no meio da estrada.

Há semanas houve uma tímida resistência a esta via-sacra de pais a aguardar o momento em que, já em frente ao portão do colégio, avistam o rosto familiar dos filhos como náufragos que avistam um barco.

Uma mulher alta, de gestos ocupados – melhor dizendo, gestos próprios de uma cabeça ocupada – sugeriu que se privilegiassem outras formas de locomoção das crianças. A mais antiga, por exemplo, tem sido fiável desde que atingimos o bipedismo. Foi assim que ela falou. Ri-me muito, claro, mas para dentro.

Estava sentada ao lado da esposa do médico, a Vitória, que escrevinhava o nariz-de-cera de outro abaixo-assinado. Começam todos com as palavras: “Defendendo o florescimento saudável no seio de uma comunidade em prol da família, da prosperidade e do respeito mútuo…” Soergueu o olhar para avaliar a minha reação. Encontrou-me com a mesmíssima expressão de estuque, fria e muda.

O diretor do colégio concordou que o exercício físico não faria mal aos petizes, que desentupindo as artérias de gorduras desentupiriam também de carros a subida para a escola.

Entre opiniões pouco consensuais, identificou-se nas traseiras do edifício, que abre para o largo, uma nova zona de transbordo, poupando aos pais uma hora, em média, por dia dentro dos carros. Dei por mim a pensar que se tivesse canalizado esse tempo para os cursos online já saberia falar chinês. Eles são muito detalhados nos anúncios do Facebook. Quatro horas por semana e falará fluentemente ao fim de um ano, dizem.

“E era com isso que te irias ocupar?”, duvida o Joaquim a olhar para os talheres. “A estudar chinês?”

Percebo que para aquelas mães, que dividem o tempo entre tiranizar empregadas domésticas e beber copos de vinho às escondidas, esta espera seja uma ilha de utilidade no seu dia-a-dia amorfo. Uma espécie de penitência. Mas o que diriam as gerações futuras se nos vissem aqui presos nestas cápsulas de metal, uma hora por dia, para irmos buscar de carro pessoas que já aprenderam a andar há pelo menos três pares de anos? Todos somos cidadãos de Pompeia sendo cidadãos de Lisboa. Fossilizados pela rotina da espera.

A tímida resistência à via-sacra esboroou-se na primeira semana quando uma trotineta chegada não se sabe de onde serpenteou entre alunos e deitou um dossiê ao chão. E se fosse uma criança?, questionaram vozes alarmadas. As folhas e o medo esvoaçaram e, no dia seguinte, voltámos ordeiramente a esperar os meninos em fila, dentro dos carros.

Uma atitude diferente teria consequências: o degredo social a que são votadas as mães irresponsáveis, anátema que, mais cedo ou mais tarde, cai também sobre os ombros da criança. Nem o copo de vinho a meio da tarde me saberia bem se tivesse de ouvir:

“Porque que é que não me vais buscar de carro como fazem todas as outras mães?”

Ser diferente das outras mães não era coisa que me passasse pela cabeça.

Afundei-me mais no assento, sem me aperceber, tinha vestido uma camuflagem, o sobretudo era da cor dos estofos. Um contrato de sobrevivência – a camuflagem. Ela – a Vitória – avançava de janela em janela com a pasta das petições. Acenava, sem bater no vidro, e logo lhe escancaravam a disponibilidade. Podia ler-lhe nos lábios as palavras de sempre: “Defendendo o florescimento saudável no seio de uma comunidade em prol da família, da prosperidade e do respeito mútuo…” Outros poupavam-lhe o esforço, assinavam indiferentes ao que assinavam.

Ela estava a cinco carros de distância, quando vi pelo retrovisor a ambulância em contramão a descer a rua. As rotativas preenchiam as sombras de azul intermitente, mas as sirenes estavam desligadas.

Quem passava ali todos os dias mais ou menos àquela hora, como era o caso dos condutores de ambulâncias, sabia que teria de ultrapassar em contramão a longa fila de pais. Chegado ao cruzamento, deixaria passar à vez outros veículos que, em sentido contrário, tinham ultrapassado em contramão a outra fila de pais que subia até à artéria do colégio.

A nossa via-sacra tinha assim dois afluentes, que se juntavam lentamente no caudal principal até à porta da escola. Dada a inclinação, os condutores dos veículos mais altos agiam por instinto quando desciam a rua, levados às vezes pela urgência aceleravam e eram pouco cautelosos.

Foi num desses ângulos mortos que o corpo da mulher do médico foi atingido. A pancada não foi seca como descrevem os livros. Pareceu-me um sibilo de ossos, como quando chocalhamos um chaveiro. As folhas do abaixo-assinado voaram e uma, que aterrou no vidro da frente, ficou presa ao meu para-brisas. Pude ler o cabeçalho. Desta vez, pugnava pela proibição das trotinetas.


Filipa Martins

É escritora. No seu primeiro romance, descreve a plumagem do Passeio Público e, no segundo, as saudades dos que partiram do Cais das Colunas. Os cafés de Lisboa são escritórios convenientes e o rio o repouso dos olhos.

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