“Um jogo!” Fez-se Eureka na cabeça de três investigadoras que, cansadas de ver só os políticos e académicos a ler relatórios, procuravam uma solução para partilhar os resultados de um estudo sobre espaço público na cidade do Kuwait, o centro económico, político e cultural do emirado.

Uma delas era portuguesa: Alexandra Gomes, investigadora no centro internacional LSE Cities, da London School of Economics. Asseel-Al Ragam, professora de arquitetura na Universidade do Kuwait e Sharifa Alfsharan, arquiteta e investigadora do Kuwait, tinham conduzido o estudo no âmbito do Kuwait Programme do LSE Middle East Centre (um centro de investigação do Meio Oriente da London School of Economics and Political Sciences).

Era um estudo sobre uma cidade e como torná-la melhor. Por isso, para elas, os resultados tinham de ser alvo de discussão. E apelar sobretudo aos mais novos, “aqueles que vão decidir o futuro das cidades”, como diz Alexandra.

As três investigadoras nunca estiveram juntas.

Um jogo seria, então.

Foi assim mesmo que nasceu o Kuwaitscapes, um jogo criado em plena pandemia através de chamadas Zoom.

Um jogo de cartas com base no tal relatório sobre o Kuwait e com design da consultora em regeneração urbana, a indiana Tanushree Agarwal.

É um jogo que se debruça sobre a realidade desta cidade habitada por dois tipos de população: a cidadã e a não cidadã. “2/3 da população do Kuwait é não cidadã, e vive em condições muito diferentes da população kuwaitiana”, explica Alexandra Gomes.

Kuwaitscapes
As quatro mulheres responsáveis pelo Kuwaitscapes, aqui representadas como personagens do jogo.

As diferenças entre não iguais: cidadãos e não cidadãos

Uma das principais diferenças entre estes dois grupos é precisamente a forma como usam o espaço público: enquanto os kuwaitianos recorrem sobretudo ao carro para as suas deslocações, os não kuwaitianos veem-se obrigados a contornar os desafios das ruas, onde faltam “passeios, passadeiras, semáforos, parques, jardins…”.

A cidade do Kuwait, com os seus problemas de mobilidade. Foto: Jan Dommerholt/ unsplash

E por isso o jogo, tal como o relatório, retratam dois bairros distintos da cidade do Kuwait, que abarcam estas duas realidades:

  • Quortoba, um bairro habitado maioritariamente por famílias kuwaitianas em moradias, com supermercados, clínicas, escolas;
  • Salamiya, um bairro com apartamentos para a população não cidadã, com uma universidade, escritórios e uma área de comércio e também moradias para famílias kuwaitianas

Qual a missão para os jogadores?

“Se conseguires melhorar uma área da cidade e a vida de uma das personagens, ganhas!”, diz Alexandra, com entusiasmo.

YouTube video
Regras do Kuwaitscapes. Vídeo: LSE Cities

E como se joga ao Kuwaitscapes?

Tudo começa com os jogadores a tirarem uma “Area card” (carta de área).

Estas cartas foram desenhadas segundo a realidade das ruas do Kuwait. “Tivemos atenção ao desenho das casas, à arquitetura… são detalhes que de certa forma são importantes para a contextualização do Kuwait”, explica a investigadora.

Há seis “area cards”, três para cada bairro.

São elas:

  • Carta do bairro;
  • Carta de uma rua do bairro;
  • Carta do espaço público do bairro;
“Area cards”. Fonte: Kuwaitscapes

E claro que, em cada área, faltam infraestruturas diferentes.

Por exemplo, no bairro de Salmiya, faltam terrenos vagos, áreas de lazer e jardins nos telhados, casas de banho públicas e uma biblioteca.

Já numa rua de Qortuba, faltam bebedouros, passeios largos, iluminação de rua, passadeiras e ciclovias.

Para além de uma “area card”, o jogador também tem de tirar uma “character card” (carta de personagem). No total, há catorze personagens.

Foram personagens pensadas de acordo com a população típica dos dois bairros. “Tentámos ser o mais diversos possível”, diz Alexandra. “Temos uma avó, crianças, uma rapariga que gosta de futebol, um rapaz em cadeira de rodas, mães com crianças, o varredor de ruas, o motorista…”.

Algumas das personagens do Kuwaitscapes.

E cada uma das personagens enfrenta diferentes desafios em espaço público.

Por exemplo, para a personagem Mama Muneera, uma senhora de idade, são necessárias rampas, estradas e comunidades de jardinagem.

Mas para a Jana, uma criança, faltam antes equipamentos desportivos, um parque infantil e uma biblioteca.

Num grande baralho, estão as cartas mágicas, capazes de mudar as ruas e as vidas das personagens: são as “tool cards” (cartas de ferramentas).

Do baralho das ferramentas, cada jogador tira cinco cartas. Se a área e a personagem que tiver calhado ao jogador pedirem uma ou mais das cinco ferramentas, o jogador poderá fazer correspondência entre ferramentas, personagem e área.

O jogo termina quando a primeira pessoa conseguir fazer cinco correspondências.

Mas não é assim tão simples…

Ao longo das jogadas, caso não haja correspondências para fazer, o jogador vai tirando cartas do baralho… e, no meio das ferramentas, estarão algumas “action cards” (cartas de ação).

Alexandra Gomes chama-lhes mesmo “as cartas corruptas” em tom de brincadeira. São as cartas que podem ser usadas para tramar o jogo dos adversários.

“Action cards”. Fonte: Kuwaitscapes

Alguns exemplos: a carta “Mayor for a day” (Presidente da Câmara por um dia) permite ao jogador fazer uma correspondência (note-se que a Presidente da Câmara é uma mulher!). Já a carta “Snatch” (tirar) permite ao jogador “roubar” uma ferramenta a cada jogador.

E, por fim, temos as “nudge cards” (cartas que “dão um empurrão”).

Estas são cartas para suscitar a discussão entre jogadores, colocando perguntas como:

  • Que mudanças introduzias no teu bairro para incentivar as pessoas a andar a pé ou de bicicleta?
  • Que mudanças introduzias no teu bairro para incentivar as pessoas a descansar e a relaxar em espaço público?

Em breve… Kuwaitscapes 2

Alexandra viajou até ao Kuwait para apresentar o jogo numa escola, mas rapidamente se apercebeu de uma falha: “Uma grande percentagem de crianças do Kuwait não fala inglês”.

Entretanto, as cartas foram traduzidas para árabe, e estão prestes a fazer parte de uma feira do livro do Kuwait. “Quem comprar um livro, leva as cartas”, conta Alexandra.

kuwaitscapes jogo marcadores desenhos
Apresentação do jogo numa escola do Kuwait.

Claro que o Kuwaitscapes pode ser jogado para além do Kuwait. Crianças de Londres chegaram a testá-lo. “Claro que as realidades são diferentes”, avisa a investigadora. “As crianças começaram a questionar ‘mas porquê tantas passadeiras, semáforos e ciclovias?’, porque para elas não é algo que esteja em falta”.

Depende da cidade, claro. Em Lisboa, não será tanto assim. E o jogo poderia ser adaptado a outras cidades, claro – houve até uma entidade na Palestina a pedir isso mesmo.

“O importante é perceber qual o contexto da cidade em que estamos a trabalhar e haver um projeto que chame atenção para as prioridades de intervenção na utilização de espaço público”, diz ainda.

Com a adesão de vários públicos, novas ideias vão surgindo para uma nova versão do jogo. Até porque tem-se levantando uma preocupação: a de que as crianças não se apercebam das questões do espaço público, por estarem tão focadas em ganhar. “Embora inconscientemente a mensagem passe sempre”.

Por isso a equipa está a pensar num Kuwaitscapes 2 em que, em vezes de competirem uns com os outros, os jogadores se entreajudam. “Já pensámos em fazer as cartas em formato digital, para as crianças jogarem numa app“, diz Alexandra. “E até mesmo em criar um jogo com interação entre as personagens!”.

O desafio está lançado – para quando Lisboa?

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Ana da Cunha

Nasceu no Porto, há 26 anos, mas desde 2019 que faz do Alfa Pendular a sua casa. Em Lisboa, descobriu o amor às histórias, ouvindo-as e contando-as na Avenida de Berna, na Universidade Nova de Lisboa.

ana.cunha@amensagem.pt

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