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“Aqui é só carros, sempre, todo o dia e poucos fregueses. É muito barulho, mas uma pessoa já está habituada. Quando chego a casa é um silêncio.” Quem o diz é Guilhermina Pinto e pode ser um bom retrato do que é o Largo do Rato.
À frente de uma papelaria na Avenida Álvares Cabral, já a chegar ao Largo, esta senhora de 79 anos viu as “várias mudanças que [ali] foram feitas”. Desde o tempo em que no Largo havia “várias árvores e umas escadinhas no centro e onde todos andavam a pé” até à situação atual, em que o carro (e não o povo) é quem mais ordena.
“Antigamente, passavam aqui os elétricos e havia muito mais gente na rua. As pessoas andavam a pé, era bom para o negócio. Hoje quase ninguém anda a pé.” E quem anda, anda com pressa e com medo.

Ainda recentemente, Carlos Moedas afirmou que não costuma ir de bicicleta de casa (na zona das Amoreiras) para a Câmara porque tem de passar pelo Largo Rato. “O Largo do Rato, infelizmente, não está preparado como devia para os ciclistas”, disse o presidente da Câmara Municipal de Lisboa.
Mas não é só para quem usa a bicicleta que o Rato é um lugar hostil. Para quem anda a pé também é perigoso: demasiado trânsito e velocidade excessiva dos carros e pouco tempo para atravessar os vários semáforos, para além do declive e da largura dos passeios.
Os peões atravessam as passadeiras a correr, com medo, quer o semáforo (há 37 semáforos, 19 dos quais para os peões) esteja verde ou vermelho, com medo dos carros. Os vários atravessamentos tornam as deslocações no próprio Largo demoradas.
Por exemplo, para ir da Rua das Amoreiras até à Rua da Escola Politécnica, ou seja, de uma ponta para a outra do Largo, é preciso fazer vários atravessamentos. Com os semáforos no vermelho, a jornalista da Mensagem demorou mais de quatro minutos a fazer este percurso.
As bicicletas e as trotinetas não têm espaço no Rato. À falta de ciclovias, as que por ali passam, tentam furar o trânsito.
A tudo isto acrescenta-se o ruído intenso que torna este lugar da cidade muito desagradável. Aliás, é difícil manter uma conversa sem interrupções nas esplanadas do Rato devido ao barulho dos autocarros, elétricos ou carros.
A requalificação do Rato ainda não aconteceu
Já foram feitos vários planos para requalificar a composição atual do Rato, mas até hoje tem-se mantido igual. Aliás, em 2014, a Câmara Municipal de Lisboa (CML) apresentou o programa “Uma Praça em cada Bairro – intervenções em espaço público” e o Largo do Rato estava incluído no programa, mas nada foi feito. Este plano de requalificação estava previsto acontecer até 2021.
O plano previa, entre outras questões, o alargamento da zona pedonal, novos percursos pedonais, a introdução da mobilidade suave, a reposição da carreira de elétrico n.º 24 (já reposta em 2018) e a possibilidade de uma rotunda.
Questionada pela Mensagem sobre o porquê de o Largo ainda não ter sido intervencionado, a Câmara afirma que tal se deve “às características desta zona e à grande complexidade na solução a apresentar”. Para além disso, “as questões de mobilidade e as condicionantes de subsolo exigem uma análise detalhada”.
A CML diz ainda que a intervenção no Largo do Rato é “uma das prioridades do atual executivo, e como tal, continua prevista a intervenção, fora do âmbito do Programa “Uma Praça em Cada Bairro”. Apesar de estarem obras previstas, “não existe ainda data para o início de obra”.
Rita Castel’ Branco, arquiteta, urbanista e especialista em mobilidade urbana, afirma que à data do plano de 2014, “a filosofia era outra, reordenava-se o tráfego sem o diminuir e a bicicleta ainda nao era vista como um modo essencial”.

Para Mário Alves , engenheiro e especialista em transportes e mobilidade, “não vale a pena estar a planear rotundas ou ciclovias”. Aliás, isso é “ver o problema ao contrário”. “Primeiro, temos de ver qual o objetivo para a praça. Se queremos que a praça tenha menos carros e menos velocidade, não vale a pena estar a pensar já em segregar o trânsito das bicicletas e trotinetes.” Esta decisão é, na ótica do especialista, “política antes de ser técnica, porque é da política da cidade”.
Com planos ou sem eles, o certo é que o que se passa no Rato afeta quem lá vive ou trabalha.
A experiência relatada por Guilhermina é o tema do livro Pedonalidade no Largo de Rato. Nele, o investigador Aymeric Bôle-Richard traça a história e a evolução urbanística do Rato e percebe-se que este espaço nem sempre foi um sítio de mera passagem como é atualmente, embora nos anos 30 do século XX se tenha tornado num espaço feito para os carros. Nas palavras do próprio (num outro livro, The Walker and the City), o Rato transformou-se num “esgoto rodoviário a céu aberto”.
Durante estes anos, escreve Bôle-Richard no livro, os peões ainda podiam atravessar o Largo “sem medo e sem grande risco de atropelamento”. Mas esta segurança duraria pouco tempo.
Em 1934, o Largo foi intervencionado. Os declives foram corrigidos e foram feitas cotas que permitiram que o trânsito automóvel circulasse em vias diferentes, ou seja, os peões viram os carros aumentar na praça.

Nos anos 1940, é construída a A5 e chegam os autocarros da Carris com duas carreiras a passarem pelo Largo. Com isto surgem as passadeiras e os peões passam a ter de atravessar o Largo em pontos específicos, já sem liberdade, refere o livro.
Nos anos 1960, o trânsito intensifica-se ainda mais com a abertura da Ponte 25 de Abril e a inauguração da A2 e nos anos 1970 surgem constantes congestionamentos que tornam a situação “caótica”.
Excesso de trânsito
No fundo, “aquilo que deu a origem a esta confluência que é o Largo do Rato é aquilo que hoje em dia também é a sua complexidade: são todos estes caminhos que deixam de ser para pessoas e passam a ser para carros”, diz Rita Castel’ Branco.
De facto, o Rato é um ponto importante em termos de trânsito automóvel, mas também de transportes públicos e, por ser um ponto de ligação entre vários pontos da cidade, o trânsito torna-se excessivo, intenso e complexo de resolver.

Para Mário Alves é importante pensar na quantidade e na velocidade do transito automóvel que se quer que circule no Rato. Este é o ponto chave. “Quantos carros queremos aqui? Assim é que não pode ser. O ruído é extremamente intenso”, critica o especialista. E a Mensagem testemunhou isso mesmo: enquanto conversava com o engenheiro, no Rato, a conversa foi diversas vezes interrompida devido ao barulho dos carros e autocarros.
Vitor Ferreira, morador no Rato há mais de 30 anos, sabe bem o que é viver com o barulho. “É de noite e de dia. De noite, passam carros com a música alta que vêm do Bairro Alto. Às vezes, estou quase a adormecer e acordo com a música ou a velocidade das motas. Não há limites”, queixa-se. “Durante o dia é ainda pior, o trânsito não para”.
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Mário Alves acredita que se o trânsito diminuísse no centro da cidade, a começar pela zona histórica, o tráfego diminuiria no Rato e noutros pontos da cidade e os cidadãos começariam a fazer outro tipo de viagens, usando mais os transportes públicos.
O investigador dá, aliás, o exemplo de Pontevedra. A cidade retirou o trânsito automóvel do centro histórico e este tornou-se mais atrativo e seguro para os cidadãos que começaram a usar a mobilidade suave e os transportes públicos e o centro histórico ganhou outra vida.

A redução do trânsito à volta do Rato é igualmente importante para Rita Castel’ Branco. Como o Rato é um sítio de ligação é “importante que se analise uma área mais ampla da cidade”, de forma a perceber a confusão que ali acontece.
A especialista refere que muito do trânsito do Rato tem origem na Rua D. João V e poder-se-ia pensar noutras alternativas de trajeto que não obrigassem a esta passagem. Aliás, o trânsito que tem origem nesta rua vem com “velocidade excessiva” e é intenso, confluindo no Rato.
Para além disso, “a ligação entre a Rua D. João V e a Rua Alexandre Herculano é para automóveis que vêm da autoestrada e que querem ir, por exemplo, para a Avenida da Liberdade. Esse tráfego podia ir pelo Túnel das Amoreiras e, assim reduzia-se substancialmente o trânsito no Rato”, sugere.

Podia também existir uma ligação entre a Rua de São Bento e a D. João V gerida com semáforos. A Rua de São Bento poderia ter um só sentido, de modo a “criar um bom passeio”, diz a especialista.
A forma como a Rua do Sol ao Rato está organizada também não facilita a situação no Rato. Esta rua é uma ligação para Campo de Ourique e está pressionada porque é usada como uma ligação à autoestrada. “De repente, uma rua pequena é um acesso à autoestrada”, afirma Rita Castel’ Branco.
Veja o vídeo:
Retirar algumas paragens de autocarros e colocá-las, por exemplo, na Rua Alexandre Herculano, poderia também reduzir a complexidade do Largo, na perspetiva da arquiteta. “Eu não posso redesenhar o Rato e voltar a acomodar tudo o que aqui está. Tenho de pensar no que é que pode ser retirado daqui”.

Maus passeios
Para além da confusão que é o trânsito, também os passeios são desorganizados. Se o Rato é um interface, “é importante que esteja bem interligado em termos de passeios e não está”. A especialista destaca como importantes eixos sem condições pedonais a Rua de São Bento e a Rua do Sol ao Rato.
“A Rua do Sol ao Rato tem passeios miseráveis e as pessoas andam sempre na rua. Se com estas péssimas condições pedonais temos tantos peões a andar neste eixo, como é que seria se esta rua tivesse boas condições?”, questiona Rita Castel’ Branco.
Para além disso, há passeios gradeados que obrigam ao desvio dos peões. “À saída da Rua de São Bento, como a passadeira está deslocada da linha de desejo, o passeio está gradeado. E como o passeio tem cerca de um metro, as pessoas tentam gerir a sua circulação”. Ou seja, desviam-se para a estrada, num local em que carros e autocarros estão muitas vezes em pára-arranca, por causa dos semáforos da Avenida Álvares Cabral, que condicionam o fluxo.

O mesmo se passa no fim da Rua da Escola Politécnica. “As inúmeras guardas inviabilizam os atravessamentos pedonais fora das passadeiras. É uma péssima maneira de resolver o facto de a passadeira não estar na linha de desejo dos peões”, diz Rita Castel’ Branco.
Os passeios pecam por segurança e conforto. Mas tanto Mário Alves como Rita Castel’ Branco acreditam que estes poderiam ter o seu potencial aproveitado e ser uma ajuda na dinamização da economia local.
“Estas esplanadas são pouco rentáveis, porque pouca gente gosta de estar aqui. Se houvesse menos carros, haveria umas 50 ou 60 pessoas. Até para a vitalidade económica da cidade, é fundamental acabar com este esgoto a céu aberto”, diz Mário Alves, citando Bôle-Richard.
“Com passeios mais amplos, as esplanadas seriam muito mais agradáveis e as lojas podiam ter expositores”, acrescenta Rita Castel’ Branco.
Um espaço inseguro também para bicicletas e trotinetes
A falta de ciclovias e o declive acentuado são fatores que inibem Carlos Moedas e outras lisboetas de passarem ou irem para o Rato de bicicleta ou de trotinete.
Se o trânsito diminuir, há espaço para bicicletas e trotinetes. Mas para isso, é “necessário garantir que existe uma rede ciclável consistente nos eixos em volta e que o Rato não representa um ponto de ruptura”, explica Rita Castel’ Branco
E a falta de ciclovias no Rato tornam-no num ponto de rotura. “Este Largo tem todas as condições para que uma pessoa não se sinta segura. O volume e a velocidade de tráfego no Rato não são compatíveis com andar de bicicleta”, diz a arquiteta.
Sobre o declive, a especialista afirma que “a bicicleta elétrica aplana os declives” e, portanto, “passa a ser uma não-questão” para as bicicletas.
Combater a poluição com mais árvores
Por causa do excesso de trânsito, o Rato é um local poluído. Um relatório de 2020 da Câmara Municipal de Lisboa sobre a qualidade do ar concluiu que o eixo Largo do Rato / Marquês de Pombal / Av. da Liberdade é dos locais mais poluídos da cidade devido ao trânsito.
Uma das formas para fazer face a isto pode ser tornar o Rato mais verde. No entanto, é preciso ter em conta que “mesmo que o trânsito diminua haverá sempre trânsito”, esclarece Rita Castel’ Branco. Assim, “convém ter árvores que criem uma barreira verde e aliviem a pressão rodoviária”.
Para além de fazerem face à poluição, as árvores seriam também uma forma de combater “a ilha de calor” que é o Rato, refere Mário Alves. No verão “com tanto calor é impossível atravessar o Rato”, critica Guilhermina, a dona da papelaria, que “gostava de ver mais árvores”.
Para se avançar para uma mudança efetiva no Rato, é necessário “comunicar às pessoas que vão ter de reduzir o uso do carro, andar mais a pé, usar mais transportes e bicicleta”, diz Mário Alves, sugerindo que se os cidadãos pudessem visualizar uma nova composição do Largo, ficariam mais conscientes e abertos a uma mudança no Rato.

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* Daniela Oliveira nasceu no Porto, há 22 anos, mas a vontade de viver em Lisboa falou mais alto e há um ano mudou-se para a capital. Descobrir Lisboa e contar as suas histórias sempre foi um sonho. Estuda Ciências da Comunicação na Católica e está a fazer um estágio na Mensagem de Lisboa. Este artigo foi editado por Catarina Pires.
Sugiro à Mensagem que faça uma reportagem semelhante sobre a via que atravessa o Jardim do Campo dos Mártires da Pátria proveniente da Alameda dos Capuchos em direcção ao Paço da Rainha. uma via alcatroada que fura o jardim, junto a um campo desportivo, que mais parece uma via rápida, uma incongruência total.
Infelizmente, este não é o único esgoto rodoviário da cidade. Ao contrário do que se observa um pouco por todo o mundo, pouco foi feito em Lisboa para se conseguir a essencial redução drástica das deslocações em automóvel. Pior, se algum progresso houve até 2021, tudo indica que o autarca que não passa pelo largo do Rato de bicicleta porque este tem demasiado trânsito, nada fará para o reduzir e, provavelmente, até contribuirá para o aumentar.
Cruzar o rato desde a rua das amoreiras até à rua da escola politécnica em 4 minutos….FALSO o atravessamento pode se feito pelo metro e é muito mais rápido e seguro.
Retirar o trânsito do rato e limitar…..ERRADO, à que limitar a entrada de carros em Lisboa, isso sim, resolveria todos os problemas de poluição e trânsito na capital.