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Quem a vê sem palas não dá nada por ela. Não é bonita nem inteligente nem talentosa nem engraçada. Não sabe programar, não faz scuba diving, nunca se atirou de um avião. Não percebe francês oral, não fala alemão. E tem uma queda à Foz do Iguaçu para desgraçar os dias.
Como toda a gente, um dia a Martinha apaixonou-se. Foi pelo Jorge. Eu achei bem, os meus amigos também, e surpreendeu-me até que um rapaz assim, alto e bom cantor, a tivesse escolhido e estragado o coração às fãs. Mas a coisa lá se deu, e ia bem até que a Martinha se meteu com o Zé. Como um bisturi, a relação de quatro anos foi ao ar, ia ser para nunca mais, e o Jorge estava inconsolável. Nem passou na prova cega do The Voice.
O Zé meteu-se com outra duas semanas depois e o Jorge voltou para o seu consolo. Não só a recebeu de braços abertos, ainda de olhos húmidos, como a pediu em casamento. Ela, toda ressabiada com o outro, que é sempre um bom motivo para casar, disse-lhe que sim. Três meses depois, lá estava ela de vestido branco, ele de fato. Ressabiada estava eu por achar que ele merecia bem melhor.
Ela, por sua vez, também achava que merecia melhor. O que ela merecia era o Paulo. O Paulo é que era um bom rapaz. Tinha cara de totó, é certo, e volta e meia deixava crescer um bigode meio estúpido, mas e depois? Pelo menos não cantava no banho o dia todo. O único inconveniente do Paulo era estar casado com outra há quatro meses e não ter comprado uma casa e um carro com a Martinha na semana anterior, assim como assinado um contrato vitalício.
Como em todos os grandes amores, a chama acendeu no chat do Facebook. Não se viam há dois anos, mas o amor não obedece ao tempo, muito menos à distância que um ecrã impõe. Encontraram-se longe da casa de uma e de outro e o Largo do Intendente abriu-se para os dois. Quarenta minutos de conversa – mal deu para o café arrefecer – e já tinham decidido que o para sempre prometido só teria durado aquele instante. Se o amor ali era uma chama, o amor eterno tinha sido um fogo-fátuo.
Ela voltou para Santos, ele lá seguiu para os Olivais. Os bairros de Lisboa uniam-se com a promessa dos amantes. A cidade era deles, o futuro também. Os cônjuges, ainda a cheirar a lua-de-mel, não faziam ideia de que recém-casado podia querer dizer quase-separado.
A Martinha e o Paulo meteram-se a amar sem complacências. Era tudo estratégico, tudo aproveitado – tudo tensão. E não é assim que a paixão tem mais força?
Um domingo, inventaram uma desculpa qualquer. Um congresso, uma amiga traída a precisar de um ombro, qualquer coisa. Feitos amantes a descobrir o mundo, apanharam uma camioneta. Horas depois, estavam na Covilhã.
Que dizer? Adoraram. A Covilhã era melhor do que Lisboa. Na Covilhã, não tinham de se esconder de ninguém. A Covilhã era o melhor sítio para fazerem uma família. Um T2 na Covilhã era tão barato. A vida na Covilhã era tão linda, as pessoas tão simpáticas, os carros tão fáceis de estacionar. Ficou decidido. Era só quebrarem os contratos, venderem as casas compradas com outros, decidirem o que fazer quanto ao carro, dividirem a mobília ou venderem-na no OLX e dizerem para sempre adeus a Lisboa. Lisboa não os merecia. Lisboa estava manchada pelo pó de outros passos. A Covilhã era fresca e nova e sonho.
Voltaram para Lisboa e que se lixassem as promessas feitas numa igreja qualquer. Que interessava terem jurado amor perante Deus? Pior era tudo o que faziam, mas aquilo era o rumo certo.
Ainda a areia da lua-de-mel não lhe tinha saído do cabelo, já a Martinha pedia o divórcio. O Paulo, com seis meses daquilo, já tinha muita vida, já era muito homem. Partiram os corações de alguém e ficaram livres um para o outro.
O Jorge, mais do que triste, ficou revoltado. Ainda curava as feridas da cabeça, já ela lhe espetava pregos, que é eufemismo para cornos. Tinha dado metade para a entrada da casa, os pais dela tinham arcado com o resto. Tinha dado sozinho a entrada para o carro. Fora ele sozinho a carregar os móveis comprados em segunda mão. Ele e dois primos, vá, mas ela não mexeu nem uma palha.
Aquela casa, que era dos dois, estava apenas nos seus ombros, e assim ficaria dali em diante. Não quis vender nada, não quis porra nenhuma, não quis voltar a vê-la. Disse-lhe – gritou-lhe – que se pusesse a andar, tiraram-lhe o nome da escritura, e ele ficou com as dívidas, mas sem ela. Antes as dívidas do que ela.
Quanto à história do Paulo com a outra, lamento, mas não sei. Sei que o Jorge acabou por se meter com uma miúda e saíram umas vezes. Um dia, conheceu-lhe a irmã. Era gémea, mas um pouco mais bonita e, não se sabe bem como, o desgraçado acabou por casar com a segunda, que deu à luz um bebé ruivo, apesar de eles os dois serem morenos.
O que se passou a seguir com o Paulo e a Martinha não interessa a lisboetas, e este é um jornal para lisboetas. Passaram três meses na Covilhã e não gostaram. Mais tarde, vieram a dizer que a cidade era pequena e não conheciam ninguém. Não tinham como ter vida social, como se exibirem um ao outro. E nem sequer havia metro.
Voltaram para Lisboa, os pais da Martinha entraram outra vez com dinheiro. O Paulo ainda tinha uns trocos, compraram uma casa. Como ela ganhava mais do que ele, quando ele comprou uma mota de cinco mil e tal euros, meteram o seguro em nome dela. Quem o via a chegar aos Restauradores para o trabalho de Harley-Davidson, casaco de cabedal e capacete, achava-o uma bomba. Foi o caso da Márcia.
A Márcia adorou o Paulo. O Paulo adorou a Márcia. Ainda as malas da Covilhã não estavam no armário, já ele se preparava para sair. A Martinha confessou tudo aos pais, com a humilhação do amor traído e da adolescência, da crença que nasce não sei onde, vem não sei como e dói não sei porquê, e voltou para a casa deles depois de ter vendido a sua. Devolveu o dinheiro da entrada aos pais, durante meses só houve humilhação.
Mas depois da humilhação vem sempre o estalo. Depois de um amor há sempre outro. E quem trabalha em multinacionais tem sempre uma hipótese, e Lisboa agrega-as como nenhuma outra. Homens entram e saem, mulheres entram e saem, e o Joni entrou para nunca mais sair. A sorte não estava feita para o perder. Para além de usar sempre camisa social e ter a barba sempre aparada, sabia todos os resultados da selecção nacional desde a estreia do Ronaldo.
Foi tudo rápido, a vida é mesmo assim. Dois meses depois de se conhecerem, alugaram uma casa. Não era grande coisa, e era nos subúrbios, mas foi o que se arranjou com tanta pressa. Desta vez, nada de compras, o amor imprudente exige prudência e ela não ia cometer o mesmo erro. Mudaram-se. Metade da renda para cada. Ali havia igualdade e ela ainda tinha o seguro da mota do outro para pagar. Estavam felizes na Reboleira. Chegavam juntos do trabalho e cozinhavam como um casal a sério. À noite, de vez em quando, iam tomar café ao Fonte Nova com uns amigos de Benfica.
Ao fim de uma semana – u-ma se-ma-na –, o Joni achou que aquilo não era para ele. Estava habituado a outra coisa. Em casa da mãe, ela cozinhava, lavava-lhe a roupa, até a passava a ferro, trocava-lhe as lâminas de barbear quando ganhavam ferrugem, e ele com aquela vida andava muito cansado.
Disse à Martinha que não queria, que não sabia que a vida fora da saia da mãe ia dar tanto trabalho. Que isso de cozinhar todos os dias lhe roubava muito tempo, e depois ainda ia ter de lavar pratos, e era tão difícil passar calças a ferro. Mas gostava muito dela. A sério, gostava. E não queria que ela saísse dali, queria um ninho apenas deles, só não queria ter de o limpar.
Ela podia continuar, o salário bem lhe chegava para pagar a renda a sós, embora talvez não chegasse para a comida, e de qualquer forma os pais podiam ajudá-la, e ele ia voltar para a casa de sempre, e visitá-la-ia todos os dias depois do jantar, até porque o empadão da mãe era melhor. Assim foi.
Saía de Entrecampos às seis, ia para a casa da mãe, no Lumiar, e a seguir pegava no carro do pai para ir para a Reboleira. Passava entre quinze a trinta minutos em actividades físicas, metia-se no carro e voltava para trás. Aquilo é que era vida, mas passado um bocado também começou a cansar fazer tantos quilómetros e a gasolina ia-lhe ao bolso dia e noite. Acabou com a Martinha porque o amor podia ser forte, o amor podia ser tudo, mas quando há vidas incompatíveis não há nada a fazer.
No meio disto, uma coisa é certa: amor é o que não falta em Lisboa. Três anos depois, já a Martinha engravidou de dois homens diferentes. Terá amado cada um deles como nenhum até então. Voltou a viver com os pais, que a vida não chega para a renda, o seguro da mota, bibes e chupetas. Lisboa está cara e o amor não está barato.
Ainda assim, apaixonou-se no outro dia por um gajo que viu de piercing perto do estádio do Sporting. Explicaram-lhe que a suástica do braço queria dizer que não era flor para ter num jarro, mas ela acha que o amor cura tudo, que é possível amar canalhas, que a paixão em força bruta assola qualquer carácter. Será que tem razão?

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Ana Bárbara Pedrosa
Veio para Lisboa estudar Literatura em 2012. Daqui só saiu para o Brasil, onde, à portuguesa, teve saudades dia e noite. Regressada, escreveu Lisboa, chão sagrado e a cidade foi a diva onde se perderam personagens. Anos depois, numa casa em Benfica, foi ao Médio Oriente e escreveu Palavra do Senhor. No mesmo sítio, meteu a cabeça em Vizela e escreveu Amor estragado. Para os de cá, tem sotaque minhoto; para os de lá, engravatado.